Do interesse pelo primitivismo e suas manifestações artísticas
- Uma visita guiada em 22 junho de 2024
A exposição “Problemas do Primitivismo a partir de Portugal”, que pode ser vista até novembro no Centro Internacional das Artes José de Guimarães (CIAJG), resulta de um trabalho de pesquisa de cerca de dois anos entre as curadoras Marta Mestre (diretora artística do Museu) e Mariana Pinto dos Santos (investigadora e editora). A confluência de campos de investigação desenvolvidos por ambas as historiadoras da arte materializa-se nesta exposição, com design de Sofia Gonçalves, como um momento não só de atualização ou estado da arte, mas indagando caminhos como um projeto exponencial em curso.
As múltiplas direções ou problemas levantados a partir do Primitivismo foram agrupados em seis temas desenrolando-se por salas distintas. “Mar Português”: “O imaginário primitivista que exoticizava lugares e culturas distantes esteve presente nesta ideia alargada de mar, quer em contexto colonialista e celebratório, como em exposições de propaganda do império, quer denunciando o colonialismo, como em Mário Cesariny e Eduardo Batarda, quer comido e cuspido de volta por Oswald de Andrade e Tarsília do Amaral”. Civilização: “foi também um termo indissociável da construção da modernidade. A distinção entre “civilização” e “barbárie”, ou “primitivo”, estabeleceu uma hierarquia entre povos, argumentando-se que a Europa teria uma suposta “missão civilizadora”, que serviu de justificação para ocupar, explorar, extrair, pilhar”. Museu: o olhar com surpresa e maior detalhe para uma cultura do outro, ou estranha, correu paralelamente ou em inter-relação com a descoberta da cultura interna de um outro.
“First and foremost, the manifold, and often contradictory, manifestations of primitivism in Iberian and transatlantic modernisms bring in a notion of the “primitive” that not only looks outwards to the colonised “others”, but also looks inwards to the putatively uncivilised, belated “self”1.
A etnografia e a etnologia desenvolveram-se a par dos museus desde o século XIX. O interesse pelo primitivo, os objetos, hábitos e culturas das sociedades rurais ou pré-industriais despoletou mecanismos de estudo, inventariação e musealização. Destes processos, não esteve ausente a construção de identidades, coincidente com o período de afirmação dos Estados-nação e, na Europa do Sul, a constituição de regime autoritários de feição nacionalista. No caso português verificou-se a apropriação do primitivo/ingénuo para uso de propaganda política (a invenção de um povo que “vivia habitualmente” / “política do espírito” de António Ferro).
Marta Mestre refere, em entrevista ao Público, que 2: “usa o Museu como caixa de ressonância [do projeto que é a exposição]. E é uma exposição que, estando circunscrita a determinadas salas, reflete sobre o museu e nomeadamente sobre a construção de alteridade a partir de uma noção que diz muito à história das artes visuais. Ora aqui, essa noção é pensada em relação com aspetos políticos, sociais, documentais, históricos. Estamos a falar de uma exposição que mobiliza vários tipos de documentos visuais, uma exposição de cultura visual. Não se trata apenas de uma exposição de artes visuais”.
O vento sopra do sul e o Museu do Dundo
Os artistas Ilídio Candja Candja (Maputo, 1976) e Ludgero Almeida (Santo Tirso, 1989) acompanharam a visita e intervieram junto das suas obras, criações contemporâneas escolhidas para dialogar com a exposição. “O vento sopra do Sul” (2014‒2023), que integra o núcleo “Extração” da exposição, diz-nos Ilídio Candja Candja tratar-se do resultado de uma já longa pesquisa pessoal que implica recuperar elementos e significados da materialidade da cultura do seu território de nascença, apagados ou subsumidos pela longa presença colonial. Referiu ainda que os seus trabalhos, de cores vibrantes e com muitos elementos associados remetem nesta adição para recoleção de objetos e materiais que, de forma regular, os habitantes dos bairros de autoconstrução trazem para acrescentar à sua habitação, tornando estas casas ou bairros uma parafernália colorida e inesperada.
A adulteração dos elementos materiais da cultura foi abordada também por Nuno Porto (curador das coleções Sul Americana e Africana do Museu de Antropologia da Universidade da British Columbia) na exposição que fez sobre a criação, as vicissitudes e peripécias do Museu do Dundo. Criado em 1936 pela Diamang, Companhia de Diamantes de Angola, para preservar o património dos povos Tchokwe, ao mesmo tempo que destruía, com a implementação das minas, fábrica e o seu regime de exploração, as bases que tornavam possível a vida e a cultura do mesmo povo.
[Em Angola, o Museu Regional do Dundo, que já beneficiou de trabalhos de restauro de peças do seu acervo pelo Museu Real de África Central/AfricaMuseum, da Bélgica, irá assinar, em breve, um memorando de entendimento com este museu, com vista à cooperação no domínio da inventariação e tratamento do património de origem angolana.] António Pinto Ribeiro, Restituição: o regresso do exílio, Público, 29 janeiro de 2023
Do Vale do Ave às Plantações
As Instalações multimédia de Uriel Orlow (Zurique, 1973), de Elo Veiga (Huelva, Espanha, 1967), e de Rogerio López Cuenca (Nerja, Espanha, 1959), “The Islands” (2019), são outras obras de Extração. Ludgero Almeida falou-nos sobre o seu processo criativo em os “Destruidores de Máquinas” (2024). Ao percorrer as fábricas de têxtil do Vale do Ave, deparando-se com os despojos e abandono, entrelaçou as relações entre estes objetos (os materiais, os arquivos, as máquinas) e as matérias-primas que chegavam dos territórios coloniais onde também se extraía a força de trabalho com outros níveis de coerção. O filósofo Aimé Césaire (faz parte da lista extensa e eclética de autores citados e referidos pelas curadoras) terá sido o primeiro a estabelecer esta relação passível de se tornar uma aliança, entre o proletariado europeu nas fábricas a transformar as matérias primas e os trabalhadores colonizados que as extraíam.
Para além desta lista de autores (de que José de Almada Negreiros, José de Guimarães, José Augusto França, Karl Marx, Kaúlza de Arriaga, Achille Mbembe, Oswald de Andrade, Mário Domingues, Pêro Vaz de Caminha, Rosa Ramalho, Michael Hardt e Toni Negri são alguns exemplos) e para além dos documentos pesquisados em múltiplos arquivos, as curadoras da exposição convidaram autores de diversas disciplinas (antropólogos, historiadores, artistas) a escrever 13 pequeninos textos que se encontram distribuídos ao longo do percurso expositivo. Em “indústria portuguesa, matérias-primas africanas”, Tiago Saraiva lembra que “não se escreve a história da indústria têxtil portuguesa sem a história do algodão em Moçambique”. Em “Os destruidores de Máquinas”, Ludgero Almeida constrói delicadamente uma paisagem restaurando matérias e materiais em novos objetos que recuperam memórias e constroem novas leituras sobre elas.
Também na música a modernidade
Na sala Jazz Band analisa-se a receção do jazz nos meios nacionais, nomeadamente o fascínio por Josephine Baker, e de que forma a relação com a descoberta da nova música se fez acompanhar pela exotização e mesmo fetichização dos corpos negros.
Mariana Pinto dos Santos explica como a palavra é “problemática, porque tem implícita uma hierarquia que devemos sublinhar. Mas, ao mesmo tempo, foi definidora e operativa durante quase todo o século XX. A palavra primitivo está lá, nos finais do século XIX, no século XX e até perto de nós, no sentido de estar associada a primevo. Ora com um carácter positivo, ora com um sentido pejorativo ou negativo, mas nunca deixa de estar lá.3”
É deste modo paradoxal que se dá a a ligação entre o primitivismo e os modernismos. Daí a palavra Problemas no título da exposição. As ligações, aqui essencialmente estabelecidas através da cultura visual, chamadas pelas curadoras de curto-circuitos, em múltiplas camadas, não são unívocas. Tal como os próprios modernismos nas artes, são contaminadas pela crença no progresso e no novo, dominante na Europa, EUA e suas esferas de influência nas primeiras décadas do séc. XX reagiando, ao mesmo tempo, às mudanças que a industrialização acelerada produzia na vida moderna. O interesse pelo primitivismo e suas manifestações artísticas pode ler-se também, de um certo modo, como reação — em negação ou em substituição — à aceleração que os imparáveis desenvolvimentos tecnológicos produziram na transformação profunda da vida nas sociedades ocidentais. Um olhar orientado para algo considerado não contaminado pelo progresso técnico, prenhe da ingenuidade original.
No primeiro quartel do século XXI, o colonialismo continua a enquadrar as relações económicas e a sua geopolítica, caraterizada pela criação de um regime de guerra permanente no qual a Palestina constitui a expressão máxima e inaudita da violência. Nestas relações, o Sul Global, que corresponde na maioria ao espaço colonizado pelas potências do Norte, permanece mais frágil e sujeito a uma escala muitas vezes superior aos fenómenos decorrentes das alterações climáticas, provocadas na sua quase totalidade pelo norte, que, ainda assim, continua a ser o principal agente dos altos níveis extractivistas dos seus recursos. Trazer ao conhecimento e reflexão a cultura que entre uns e outros se estabeleceu e foi estabelecendo nos últimos 150 anos, principalmente no século que nos precede, não podia ser mais atual.
Notícias sobre a exposição:
“A história do primitivismo ainda é a nossa”, José Marmeleira, Público, 08.06.2024
E-Flux, 7 de julho 2024
“Exposições: quem é o primitivo, o selvagem ou o xamã? A pergunta que se faz em Guimarães”, Celso Martins, Expresso, 19.07.202
- 1. LEAL, Joana Cunha, SANTOS, Mariana Pinto dos,“Primitivism, a difficult legacy. Iberian and transatlantic perspectives”, The Primitivist Imaginary in Iberian and Transatlantic Modernisms, (edit. Joana Cunha Leal e Mariana Pinto dos Santos), Routledge, 2023, p.1
- 2. “A história do primitivismo ainda é a nossa”, José Marmeleira, Público, 08.06.2024
- 3. “A história do primitivismo ainda é a nossa”, José Marmeleira, Público, 08.06.2024