Percepção da música da periferia, o caso do Kuduro
Atravessou várias fases e o mundo converteu-se ao seu poderoso contágio. Qual o impacto na periferia de Lisboa? Como dialoga com a música popular angolana? Para perceber o que tem mudado na percepção do kuduro na periferia de Lisboa, interessa fazer um breve enquadramento do contexto de jovens relacionados com a imigração africana em Portugal.
O kuduro cuia
O kuduro em Angola é intervenção urbana e social. Além da música e dança tão potentes que não deixam ninguém indiferente, é “forma” de contar uma estória. Se repararmos na questão linguística, a linguagem kudurista reveste-se de grande criatividade, absorve qualquer gesto do quotidiano, ironias e falas de rua, calão, inventando até idiolectos como o “burguês”, performatizando a loucura da vida urbana, e sobretudo do gueto.
Em Lisboa, o kuduro teve momentos de grande expressão de dança e música entre a juventude da periferia, tendo chegado logo a Portugal nos anos 90 através de imigrantes angolanos. Se primeiro o contacto dava-se através de cassetes que os parentes traziam, actualmente a distribuição e produção são facilitadas pela ferramentas digitais de comunicação, os youtubers e por aí a fora. A escola, a rua e a internet são os principais espaços de socialização do kuduro, que reforça laços de afinidade entre imigrantes e descendentes, tendo como referência o país de origem ou, muitas vezes, uma África imaginada.
KUDURO diáspora e estilo na tuga
Trata-se das migrações mais antigas do século passado (os cabo-verdianos vieram logo nos anos 60, seguiram-se várias vagas depois das independências em 1975 e avolumaram-se nos anos 80 e 90). Entre os jovens em Portugal, o kuduro envolve o perfil etário mais novo, em fase de escolarização básica, moradores de bairros da periferia, com baixo poder aquisitivo, mas que têm acesso à informação associada ao estilo. Apesar de ser um estilo de música e dança praticado entre as juventudes africanas, faz parte do convívio diário de muitos outros jovens que vivem em Lisboa e arredores, principalmente através das escolas públicas. Mesmo que alguns deles nunca tenham estado em África, dominam o calão angolano e o crioulo caboverdeano, aderindo ao vocabulário e códigos gestuais e identitários da street que compõem um modo de ser socializado por estes jovens. Como uma espécie de privilégio de pertença, um home desire que por vezes se torna até exibicionista e exagerado nos símbolos nacionalistas da terra dos pais.
Staff Estraga – do Vale da Amoreira
“Ontem contestado na esquina, hoje dançado no palco”, o que mudou para o mundo?
Os sentidos dados a um estilo de música e dança vão mudando consoante os diferentes contextos sociais, nacionais ou internacionais em que ela é produzida e consumida. O kuduro pode ser um bom ângulo de análise relacionado com a juventude, permitindo discussões sobre o espaço público, protagonismos, alcance das tecnologias de informação e comunicação, mas também questões geopolíticas.
Se o kuduro era produzido e ouvido sobretudo na periferia de Lisboa e de Luanda, desde há 8 anos está presente nas pistas de dança, na crítica dos jornais, nos sets de Ipod, festas dos habitantes do centro e de classes mais burguesas. Neste sentido, tornou-se mais um estilo de música e dança ligado à electrónica e foi, de certo modo, suavizado ou traduzido com conceitos novos como o de kuduro progressivo. Assim foi galgando o seu caminho de afeto entre a comunidade branca.
No contexto das diásporas, a cena de Lisboa reclama uma relação mais forte com a fonte, estabelecendo uma ligação mais directa com a cena de Luanda. Há que reconhecer que Lisboa tem uma relação privilegiada que a localiza entre Luanda e as pistas de dança do mundo, sendo esta fusão de referências uma ponte entre mundos de o kuduro progressivo dá conta, sendo o caso mais emblemático os Buraka Som Sistema, como tem chamado atenção Vitor Belanciano.
Mas antes disto, o kuduro atravessou muitos grilhões de censura, foi sujeito a críticas, desprezo e indiferença. Muitos intelectuais não o consideravam música, descriminando e conotado como “música de bandidos”, associado ao mundo do crime e de estórias desequilibradas. Sendo que esse vínculo ao gueto e aos musseques, onde se produz a maioria do kuduro, continua forte e, assim, as realidades da desigualdade vêm ao de cima nas letras e nas abordagens, há toda uma criatividade e rebeldia diariamente reinventadas.
Há um notório reconhecimento nos tempos que correm, em veloz processo de internacionalização, não só espontaneamente mas objecto de campanhas de marketing e de investimento. Esta nova fase do kuduro vem acompanhada de um certo “branqueamento” ao lado mais incómodo, como é normal na apropriação das músicas mais rebeldes, tem perdido a força da contestação.
Na Conferência Internacional de Kuduro, no CineTeatro Nacional de Luanda, em 2012, cujos objectivos passavam por incentivar o estudo e a prática do kuduro, foram a Luanda falar sobre kuduro, dos vários cantos do mundo, desde DJ’s a académicos. Perante a evidente estratégia de transformar o kuduro numa marca, angolana mas para o mundo – I love kuduro, quis-se recentrar essa discussão no lugar de emanação que é Luanda.
“Estamos aqui para pensar o mundo do kuduro e o kuduro no mundo”, Marisa Moorman inaugurou as sessões de trabalho com a sua brilhante comunicação intitulada “Filho Alheio”. Era imprescindível reforçar o impacto único que o kuduro está a ter no mundo, pois nem sempre isso é conhecido ou se reflecte nas condições de produção do país: “Quando M.I.A. entra na música e clip do Buraka Som Sistema; quando um radialista português fala com Bob Boilen da National Public Rádio dos EUA sobre a maneira do kuduro ‘progressivo’ dos Buraka fazer uma Lisboa mais alegre e quando o Riot dos Buraka diz a um apresentador da televisão brasileira que não foi o funk carioca mas o semba e kuduro angolanos que inspiram os BSS, acho que podemos dizer que o kuduro já se tornou moeda nas lutas culturais dos outros.”
Mas de facto é preciso perguntar: Quais as implicações para os produtores da música em Angola e o que significa para a música em si? E para se valorizar é preciso questionar, opinar, confrontar e sistematizar, conhecer as regras de estética, de composição musical e coreografia na dança que vão-se desenvolvendo na sua lógica própria. Marisa Moorman lembrou ainda que o papel da arte é criar outras realidades, e o kuduro tem sido também essa forma de fantasiar um mundo possível.
Ananya Kabir Jahanara, da Universidade de Leeds, propôs um debate entre a kizomba e o zouk, e uma análise a partir da perspectiva de “transnacionalismo cinético”, isto é, a viagem do ritmo da cultura corporificada e do seu impacto potencial sobre as culturas populares urbanas pós-coloniais, tanto em “casa” como na diáspora. Benjamin Lebrave, da Akwaaba Music, falou sobre Cultura e Indústria Angolanas no Mundo, tendo comunicado de forma muito pragmática com os kuduristas, dando uma visão geral da presença do kuduro como fenómeno cultural, musical e coreográfico, identificando os factores da sua propagação ou limitação, como informações úteis sobre mecanismos de divulgação.
Música popular angolana
O kuduro é um sucedânio da música popular urbana angolana, que se inscreve num compromisso político. O reconhecimento internacional do kuduro tem, na sua base, os esforços pioneiros de artistas e bandas que construíram uma obra singular, em circunstâncias muitas vezes difíceis. Percebemos os traços de continuidade na estética (na conferência mostrou-se a caricatura de uma montagem em que de uma música dos Ngola Ritmos se passa para um kuduro, dando a ilusão que os gestos de Lurdes Vandunnem estariam no âmago das danças do kuduro) e nas própria motivações e condições de criação (comentar o quotidiano, produzir do quintal para a rua, a intervenção na vida de todos).
A própria desconfiança quanto a este tipo de fenómenos é também bastante antiga, tendo acontecido com outros géneros, agora considerados maiores na esteira da angolanidade, como por exemplo o semba que, quando surgiu, também foi alvo de críticas. Porém, uma das novidades relativamente ao semba é a visibilidade e projecção global do kuduro que ultrapassou fronteiras, devido aos meios de divulgação, tecnologias, espectacularização, indústria musical e o fundamental papel das diásporas. Hoje em dia é ouvido e produzido para lá do continente africano e consumido por audiências fora dos circuitos de falantes da língua portuguesa, como em pistas de dança europeias.
É interessante observar como o kuduro trouxe consigo a evidência do cosmopolitanismo da cultura angolana, tal como a música produzida nos musseques na era da independência já havia feito. De um mundo muito local consegue comunicar para o universal. Criou identidades transnacionais que o kudurista adopta quer viva em Portugal, Angola, Brasil, sobretudo no mundo lusófono, mas não só. A circulação e contaminação desta prática faz parte também da sua identidade. Nos últimos quinze anos popularizou-se muito em Portugal e, mais recentemente, no Brasil. Em 2009 o DJ Znobia participou no festival Black2Black no Rio de Janeiro, houve uma série de versões de “Vem dançar kuduro” (ou “Danza kuduro” e “Dança kuduro”) na Europa e na América Latina, embora estas já tenham muito pouco a ver com o kuduro de Luanda.
Isto está a acontecer em outros países do mundo, em cada qual com peculiaridades próprias, nestes fluxos transnacionais que mantêm uma resistência interligada da cultura negra. No caso do kuduro fora de Angola, a relação entre a música e a imigração angolana foi muito forte mas outro aspecto significativo é a relação entre a produção, a circulação e o consumo num contexto transnacional de espetacularização do kuduro. Arrisco-me a dizer que terá algo a ver com o papel que Angola ocupa actualmente no cenário internacional, ganhando cada vez mais protagonismo como agente económico. Ou seja, se fosse um fenómeno provindo de um país mais periférico como a Guiné Bissau, não sei se teria o mesmo impacto.
Algumas questões deste texto foram levantadas por pesquisadores sobre o kuduro em Lisboa, nomeadamente pelo trabalho do antropólogo Frank Marcon1: ”Identidade e Estilo em Lisboa: Kuduro, juventude e imigração africana” e “Jovens africanos e o kuduro em lisboa: produção, consumo e identificação”. A grande maioria destes afro-descendentes vive em bairros periféricos na área metropolitana de Lisboa, nomeadamente na linha de Sintra – por exemplo Cova da Moura ou Cacém, ou margem sul – Arrentela, Vale da Amoreira, ou ainda para os lados de Loures ou Odivelas, em condições sócio-económicas abaixo dos padrões do português médio e tendo pouco acesso a determinados bens culturais e seus circuitos, muitas vezes circunscritos ao centro da cidade. Os seus pais contactam com a cultura portuguesa mas não se sentem participantes nela. Vão queimando etapas para serem cidadãos de pleno direito, e muitos ainda sonham ir morrer à sua terra.
Na sociedade portuguesa não faltam sinais deste tipo de vivências de costas voltadas, cuja fronteira pode não ser assumida mas está bem vincada na segregação: veja-se a imposição e, por vezes, uma auto-declarada cultura de gueto, a sua impenetrabilidade em trocas culturais mais horizontais, ausência de negros nas áreas de decisão (muitos negros no desporto para vanglória das equipas portuguesas e, sobretudo, nas profissões invisíveis que são o sustentáculo da vida urbana – limpezas, obras, cozinha, mas quase total invisibilidade nos media, universidades, opinião, chefias ou governo); além de um baixo horizonte de expectativas, nas escolas, nos meios intelectuais e artísticos.
Já nascidos em Portugal, os filhos dos africanos herdaram esta periferização económica, territorial e social, sempre presente na explicitação de uma alteridade que lhes é rotulada, distinguindo os naturais dos nacionais, com designações de demarcação como “africanos”, “segundas e terceiras gerações”, que conotam estes lisboetas como estrangeiros, hierarquizando cidadanias e pertenças à cidade e ao país.
Não conhecendo os países de origem da sua família, e estando a estigmatização e o racismo ainda na base do desconhecimento da parte da cultura dominante do universo suburbano, a forma como estes jovens se apropriam de algumas heranças culturais que lhes dizem respeito, nomeadamente a africana, reflecte-se na afirmação positiva da sua identidade, procurando referentes simbólicos de origem. E é precisamente através da música, e em grande medida das músicas excluídas dos discursos oficiais, ou que começaram pela produção de meios mais amadores e podem até ter sido mal conotadas ou criminalizadas, que descobrem um sentimento de pertença à cidade e à comunidade (mais ou menos abstracta).
Esta identificação tem a ver com a capacidade das músicas da periferia criarem e falarem dos problemas sociais actuais, da sua vida, e de denunciar a exclusão (como fazem o baile funk, o rap underground e o kuduro), pondo em causa hegemonias, tanto culturais como de outra ordem. A produção musical jovem periférica tem revelado estratégias - tanto de artistas como nos públicos - criativas, audaciosas e orientadas para a autonomia – em oposição aos obscurantismos e autoritarismos. E isto é válido para a música periférica de “cá” e “lá”.
Na percepção a partir de um determinado “centro cultural” (visto simbolicamente como lugar da legitimazação da cultura) há certamente uma desconfiança da qualidade estética de tais músicas mas precisa desta “diferença”, primeiro, porque não a pode combater e, depois, acabando por instrumentalizá-la, absorvê-la, tornando-a uma espécie de bandeira do multiculturalismo tão em voga na bandeira política da Lisboa trendy, cool e mestiça.
É este então o caso de Lisboa, cujo discurso voltado para o turismo faz agora da grande variedade “afro” uma espécie de cartão postal, muitas vezes etnizando e essencializando as diferenças, para enaltecer a cidade mestiça que, no entanto, é geograficamente racista, configurada em lugares demarcados para “uns” e para “outros”. Não podendo ignorar o papel das diásporas na promoção de formas culturais reinventadas, incentiva o exótico da alteridade, não convivendo nem conhecendo a sério estes outros.
Em Portugal a persistente narrativa luso-tropicalista dos ‘brandos costumes’ reflecte-se na omissão actual de problemas reais e na guetificação. Ao racismo institucional, por mais subtil que seja, responde-se com festivais e práticas artísticas que valorizam “outras culturas”. Não podemos deixar de reparar numa certa ambiguidade nas crescentes práticas de “arte para a comunidade”, nas quais muitas vezes a arte é entendida como ‘gestão de conflitos’ e meio para dar voz ao “outro”, que é sempre um outro subalterno. Ou seja, procura-se rentabilizar o lado cool e inofensivo destes fenómenos, mercantilizar a diferença para seu próprio benefício. Os agentes culturais recorrem à ideia de mestiçagem (longe da “hibridez” transgressora de Bhabha) simplificando e anulando as assimetrias que definem a própria ideia de “diferença”.
Artigo publicado no REDE ANGOLA em 2014.
- 1. Frank Marcon é doutor em Antropologia Social, Universidade Federal de Sergipe, Coordenador do Grupo de Estudos Culturais, Identidades e Relações Interétnicas. Devo ainda à leitura de um ensaio de Jorge de La Barre, investigador em Etnomusicologia da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova, intitulado “Música, Cidade, Etnicidade: Explorações a Partir de Cenas Musicais em Lisboa” e ao artigo “Angolanidade revisited – Kuduro” de Stefanie Alisch e Nadine Siegert (revista Norient).