Titica, kuduro trans
Em fase de produção do seu novo álbum, a cantora fala da sua carreira, personalidade e dia-a-dia.
Esperámos por Titica, a kudurista queer, no bar do hotel em Lisboa onde veio gravar o segundo álbum, depois do tão badalado Chão. Chegou, acabada de acordar, de saia comprida às riscas e sapato brilhante, alta e altiva. O seu enorme riso interior provocou uma empatia imediata, a ousadia da artista Titica é desarmante. Afectuosa no trato, prefere não falar muito da sua sexualidade, explicando, de forma assertiva e cansada de ter de se justificar, que é “mulher e ponto”. E uma mulher com convicção.
É pra saberem / Titica aguenta tudo / não tem medo de nada
Titica prefere ser conhecida como cantora e não enquanto kudurista. O álbum que agora prepara, com a chancela da LS Produções, promete muitas músicas electrónicas, semba e souk, com arranjos musicais de Cervantes e colaborações de vários músicos, entre outros, Pérola Mc, Karina Santos e Ary, com quem faz uma dupla de sucesso. Paulo Flores também colaborou, escrevendo e gravando uma kizomba intitulada “Cinderela”.
Cantora há três anos e meio e habituada a pisar o palco como bailarina há sete – apoiando artistas como Noite e Dia, Própria Lixa ou Puto Português – segundo a argumentista Isilda Hurst, “Titica faz parte do movimento de mulheres no kuduro que surgem pelas mãos do DJ Devitor, o qual lançou Fofando, Noite e Dia e Própria Lixa”. Considerada uma das grandes estrelas do momento, percorre todas as províncias do seu país, levando Angola para o Brasil, Alemanha, Suíça, Bélgica, S. Tomé e Moçambique. As suas canções são ouvidas nos candongueiros, ganham as pistas de dança no país e no estrangeiro, e estão nas vozes das crianças que adoram e vibram com o hit “Olhó Boneco”, subindo e baixando os braços. Titica é famosa entre várias comunidades, onde proliferam samplers com o gritinho da nouvelle étoile do kuduro angolais.
A cantora, que diz preferir o carinho do público ao cachet, ganhou o prémio de Melhor Artista de Kuduro em 2011 e sente-se “reconhecida”. Explica que, na sua vida de artista, “tudo acontece de uma forma natural”. Acrescenta porém que, apesar da sua energia tudo fazer acontecer, no palco, Titica encarna “outra pessoa”.
“Vivo de forma diferente e quem quiser que comente”
Para os comentários provocatórios feitos na página oficial da cantora no Facebook, Titica tem resposta pronta: “Quem me odeia, morre no sono”. Desde cedo que se obriga a crescer forte, impune àqueles que a querem derrubar. Apesar da família ser do Uíge, Titica nasceu em Luanda, passando a infância no bairro Hoji Ya Henda. O seu nome de baptismo era Teca Miguel Garcia mas tratavam-na como Tikiny ou Tica-Tica, a criança peralta.
Considera um dos seus passos mais importantes para à sua escolha identitária a viagem que fez ao Brasil para implantar seios, mas as suas decisões declaradas nunca lhe pouparam problemas: foi desprezada pelos familiares, e sofreu outras humilhações, chegando até a ser apedrejada. Agora, com 26 anos e provas de sucesso enquanto artista, foi-se reaproximando da família. A artista considera que “já estava na hora” de se reconciliar, e tem adoptado uma postura de “deixa acontecer, para não ferir susceptibilidades”.
Apesar de todas a resistências e insistências à sua mudança, num país onde os preconceitos de uns e a cultura machista de outros vão naturalizando a homofobia, Titica conseguiu conquistar admiradores pelo seu trabalho. “Há muita gente que não saiu do armário, é triste que, mesmo viajando, lendo ou vendo tanto através da comunicação social, os angolanos ainda sejam tão fechados quanto à orientação sexual de cada um”, acrescentando que “falta a bandeira do arco-íris aos patrícios”. Em Angola, a criminalização da homofobia já é tema de debate, mas apesar disso, no discurso social o preconceito ainda é muito, e não só sobre a homossexualidade, mas também na própria natureza desigual das relações, no estigma que pesa mais sob a mulher quanto à sua vida sexual, etc.
Perante a quase inexistência de movimento gay organizado em Angola, a cantora, que aceitaria de bom grado estar envolvida num desses movimentos, acha que já vai fazendo sua parte: “devagar estou a ajudar os outros a se assumirem, ouço pessoas a dizer ‘dei a cara por tua causa’”.
Enquanto actual Embaixatriz ONUSida, Titica pretende trazer as medidas de prevenção e combate ao HIV a debate público, explicando que, através da sua profissão, pode passar o testemunho “ao interagir com as pessoas, actuando nos bairros, periferias”. Garante que em nos seus espectáculos esse é um tema que recorrentemente chega ao palco. Os objectivos têm vindo a ser cumpridos, ajudando a dar visibilidade ao problema e apelando à sensibilização para o mesmo.
Kuduro afro
A sua página de Facebook abre assim: “dedicada à cantora Titica, que rebenta com todas as gatunas no palco”. A artista insere-se na linha da criatividade total do kuduro, dos toques de dança à música, passando pela roupa, inventando até idiolectos como o “burguês”. Consoante os contextos sociais, nacionais ou internacionais, em que é produzido e consumido, este género musical ajuda-nos a perceber alguma discussões da opinião pública. Se o kuduro era produzido e ouvido sobretudo nas periferias de Luanda e de Lisboa, desde há sete anos está presente nas pistas de dança, na crítica dos jornais, nos ipods e festas de todo o mundo. Tornou-se mais um estilo de música e dança ligado à electrónica e, de certo modo, tem derivado para contaminações novas como o kuduro progressivo, sobretudo na Europa. Titica diz que se inclina mais para o kuduro afro, com muito ndomboló, e música da Costa do Marfim e da África do Sul. Com estas fusões, pretende atingir mais a França e os Estados Unidos.
O kuduro atravessou muitos grilhões de censura, foi sujeito a críticas, desprezo e indiferença. Muitos intelectuais não o consideravam música, descriminando e conotando como “coisa de bandidos”, associado ao mundo do crime e espelho de vidas desequilibradas. A cantora lamenta as suas más conotações: “Kudurista ainda é só um kudurista, não é considerado um artista normal, como um cantor de semba.” Sobretudo as meninas, que não encontravam o mesmo espaço de respeito nessa escolha: “Quem cantava era bandida, menina de rua. Mas na realidade também era um subterfúgio dos meninos que já não queriam saber mais de briga, garrafa, então, no tempo livre, vinham fazer kuduro.” O vínculo aos musseques, onde se produz a maioria do kuduro, continua forte, assim como a criatividade e rebeldia. Novos “toques” de kuduro são reinventados diariamente.
A percepção do kuduro tem mudado. No entanto, hoje é notório maior reconhecimento e internacionalização, em parte, fruto de investimento e estratégia, como o filme e festival I Love Kuduro. Apesar disso, Titica é da opinião que “Angola devia fazer ainda mais pelo kuduro, organizar mais espectáculos lá fora, fazer lobbies, e procurar nomes internacionais da América e África. Devíamos partilhar o palco com artistas bons.” A nível de divulgação, o canal2 da TPA, sobretudo com o programa Sempre a Subir tem contribuído para divulgar as actividades da cantora Titica e de outras revelações menos aceites pela moral conservadora da sociedade angolana.
Vox populi
A energia que Titica transmite nos discos, mas principalmente no palco, as coreografias, os vídeos e provocações, não deixam ninguém indiferente. Perguntámos a alguns artistas e pensadores angolanos o que acham do seu trabalho e da figura.
A argumentista e realizadora Isilda Hurst recorda quando conheceu a Titica. Estava a fazer o documentário Ritmos urbanos, melodias de uma identidade, ao qual se seguiria Kuduro, voz da paz (ainda inacabado), e ia pré-entrevistar mulheres kuduristas, num cabeleireiro pequenino do bairro Rangel. “É de lembrar que todas elas são pequeninas. E, de repente, encontro uma matulona, perna! anca! quadril! xuxa! e pergunto ‘Epá quem és tu? és melhor que as outras, és uma boazona!’ – ligeirinho, ela responde: ‘É porque eu sou panina’. Eu respondi ‘Epá tu vais ser famosa! És uma descarada e o palco precisa é disso.’” Ainda hoje são amigas e lembram-se dessa cena com um sorriso. Isilda não se enganou e continua a apostar nesse sucesso, “ela ganhou tudo e ‘todas’ em cima do palco, é uma diva do entretenimento, uma mulher cheia de humor e alegria, é picante e adora vibrar com todas as emoções”.
O investigador cultural Jó Kindanje identifica-a como ícone na cultura angolana dos jovens artistas, como criativa, bailarina, compositora, com bastante ousadia. “Tem a felicidade de ser bem sucedida naquilo que faz. A sua condição de transexual provavelmente é um valor acrescido na sua notoriedade. Marca sem dúvida uma etapa que se vai cozendo em Angola, no despertar das consciências para uma abertura, e de forma inusitada, na maneira de vermos e encararmos o outro, segundo as nossas diferenças. A arte não se identifica pelo género, apenas pela qualidade de como fazemos e apresentamos o belo. E acho que a Titica tem tudo isso, e muita estrada de sucesso à frente.”
O músico Keita Mayanda refere que Titica ganhou grande exposição nos media e apoio popular. ”Quanto à questão da sexualidade, ela é pioneira! Apesar de incomodar, de causar confusão a algumas pessoas e de, em certos círculos, principalmente religiosos, haver repúdio quanto ao que ela representa, acho que ela tem bastante apoio em Angola.”
Nuno Coelho, encenador e investigador de artes performativas, admite que o trabalho de Titica o diverte: “A performance é bem construída, com uma estética cuidada e daí o seu sucesso. Talvez seja um indicador de que a sociedade angolana está a abrir-se rapidamente a novas ideias e maneiras de pensar, estar e ser, descobrindo-se também a ela própria.”
O músico francês Frédéric Galliano, que tem promovido o kuduro e a electrónica angolana, considera a sua música muito interessante, mas destaca como mais importante na sua atitude: o orgulho da sua situação. “Mostra que a transexualidade pode ser popular. Não como curiosidade estúpida, mas com uma realidade do mundo. A música de Titica é interessante pelas letras e também pela maneira de fazer um show, nova e divertida sem ser ridícula.”
O artista Kiluanji Kia Henda descreve-a assim: “Se o kuduro é o maior fenómeno cultural nos últimos 20 anos em Angola, a Titica, com a sua exuberante figura e performance, é por certo a representação mais extrema de liberdade e ousadia deste fenómeno. A coragem com que assume uma nova identidade sexual e a sua electrizante música dão o abalo que há muito se esperava nos pilares dos padrões mais preconceituosos em muitas sociedades em África. Bem mais à frente do que a Gaga, ela é com certeza uma grande Lady da cultura pop.”
Para o cantor Paulo Flores, Titica é uma lufada de ar fresco, “lutando contra o preconceito e toda a desumanização reinante no continente sobre as questões da homossexualidade, da dignidade e da condição humana.” Escreveu para ela o tema “Cinderela”, admirando-a como grande performer. Paulo calibra também o seu potencial através das crianças, considerando que estas nunca mentem e “a adoram.” Um dia espreitou a página de Facebook da artista e apercebeu-se de toda a espécie de ameaças e insultos. Flores comenta como “foi chocante” e relembra que “todos os seres humanos merecem o maior respeito.”
Música que Paulo Flores escreveu para Titica:
Ele é que me quis
eu nada lhe fiz, ele me atentou
disse nunca, nunca,
na vida de ontem se apaixonou
nem me viu direito
só topou meu jeito
meio lingandô
e quando chegamos no meio da cama
ele se assustou
makongô…makongô
ai, escalinguindon é progojô
makongô…makongô
ai, escalinguindon é progojô
Nas esquinas no escuro dos becos
de noite nas luzes da disco
quando chamas meu nome
é Cinderela
na tua vida eu vivo atrás do pano
atrás da janela.
Artigo originalmente publicado em Rede Angola a 26.02.2014