Recordar Liceu Vieira Dias

Acaba de sair a terceira e última parte da trilogia sobre música popular angolana realizada por Jorge António*. Baseada na obra “Estórias para a História da música angolana” de Mário Rui Silva, intitula-se “O Lendário ‘tio Liceu’ e os Ngola Ritmos”, e aborda a figura mítica de Liceu Vieira Dias e o seu grupo Ngola Ritmos, criado no final dos anos 50, e que representou uma força cultural pioneira na luta contra o colonialismo português. O documentário é uma viagem ao universo criativo de Liceu Vieira Dias, um dos “pais” da música popular angolana, confirmando a sua originalidade e contributo permanentes na história cultural e sócio-política  de  Angola. Falámos com o realizador.

Porquê uma trilogia nestes eixos, a lógica desta sequência?
Este projecto nasceu em 2004 a partir do livro do Mário Rui, que fez imensas recolhas com os mais-velhos, ele próprio foi um discípulo do Liceu Vieira Dias. Queria fazer a história da música angolana em 6 episódios e em cada um se contava uma década. O projecto foi entregue à Lx Filmes mas as televisões nessa altura não estavam interessadas e então fizemos só um - o primeiro “Angola - histórias da música popular” que é o resumo de 50 anos de música angolana numa hora. Depois entusiasmei-me e quis fazer mais dois, um sobre a contemporaneidade, o kuduro e outro sobre o início, os pioneiros. Em termos de apoio e de pesquisa foi mais fácil começar com o kuduro e acabar com o início.

Qual é a possível ligação dessa herança com um fenómeno tão urbano e recente como o kuduro?
É uma ligação de memória, espiritual e musical. O mais interessante foi perceber que há um grande reconhecimento da música angolana para trás. Numa canção do Dog Murras ele homenageia o Liceu Vieira Dias. Os jovens manifestam a preocupação de referir os mais velhos, e interesse em saber mais acerca dos criadores  do semba.

Também haverá um paralelo naquilo que os levava a produzir música nos musseques, enquanto fenómeno sócio-político, como música de resistência.
Sim, os Ngola Ritmos cantavam contra as injustiças do regime colonial, os miúdos do kuduro querem cantar contra as injustiças do poder actual, a vida dos musseques, etc. Mantém-se a crítica social como linha comum.

No final do processo de pesquisa, de resgate de imagens de arquivo e de testemunhos, consegues sintetizar o que há de mais original na obra de LVD?
É extremamente original. Os Ngola Ritmos aparecem não só num contexto político muito particular, mas fazem sobretudo um trabalho de antropologia musical. Recuperam as músicas populares e dão-lhes um novo arranjo. Ou seja, as músicas ditas populares, cantadas por artistas posteriores, baseiam-se já nos arranjos do Ngola Ritmos.

Foram também os primeiros a cantar em quimbundo numa altura em que as línguas nacionais eram reprimidas.
Conseguiram passar a sua mensagem, até a PIDE começar a perceber, ou os informadores contarem, que aquelas letras eram contra o regime. É por isso que o conjunto é desfeito e eles são presos numa primeira fase.

Quando?
O Liceu Vieira Dias e o Amadeu Amorim  foram presos em 1959. O Liceu foi o último a sair, dez anos depois. Esteve preso durante quase todo o período da guerra colonial. Ele é solto em 1969. Já vem com a saúde em mau estado, e de repente o que acontece é que, com a própria independência, o grupo acaba. No fundo já tinha cumprido o seu papel.

Amadeu Amorim, dos Ngola Ritmos, e Jorge AntónioAmadeu Amorim, dos Ngola Ritmos, e Jorge AntónioDionísio RochaDionísio Rocha

Que diferenças marcam a tua abordagem e a de António Ole em “O Ritmo dos Ngola Ritmos” de 1978?
Considero mítico o filme do António Ole. Sem este filme, sem o Ole e a sua autorização para utilizar imagens eu não conseguiria fazer este episódio. No filme do Ole, logo a seguir à Independência, os elementos dos Ngola Ritmos ainda estavam todos vivos (eu só apanhei dois). Ele centra-se no grupo e eu mais na figura do Liceu. Eu acrescento a tradução das letras em quimbundo. Uso sempre uma narrativa simples, com uma base pedagógica e sentido de humor. Neste meu filme há uma cena curiosa e que revela todo o espírito da história. Eles são presos por causa das letras, mas nos anos 60 o governador de Luanda convida os restantes membros dos Ngola Ritmos a virem a Portugal fazer uma visita de boa vizinhança para dizerem que está tudo bem com as colónias. Era um programa da RTP, com o Carlos Cruz a dizer um texto daquela demagogia que ainda hoje existe em relação a África, sobre as bungavílias, a cor da terra, os cheiros, a saudade e que os NR eram um misto disso tudo, etc. E a seguir eles começam a cantar uma música de Carnaval que é a Manazinha. O mais ridículo é que quem vê isto acha divertido, pela música, porque ninguém percebia o quimbundo, e a letra fala precisamente das aves migratórias que eram os colonos e da Manazinha que, pela fome, teve um filho miserável, etc. E ali, em plena capital do regime, aquilo passou. Ao mesmo tempo estava o Liceu preso no Tarrafal por 10 anos. A própria Muxima tem dois sentidos, dois feiticeiros, que se pode interpretar como o colonialista e o autóctone que não se podem misturar. Também recuperei arquivos pessoais, como as cartas da prisão do Liceu, o mandato de soltura etc. O próprio Mário Rui tinha uma gravação dele com o Liceu a fazerem uma jam session. Todos estes novos elementos dão uma nova visão à história.

O Liceu era uma figura emblemática. Quais são as grandes inovações a nível musical?
Ele criou sem dúvida novos ritmos musicais. Uma coisa que fez foi aproveitar os instrumentos que os colonos levaram, aos quais juntou novos ritmos locais. Adaptar a novos instrumentos, transportar os ritmos tradicionais para a guitarra e piano é logo uma inovação. Quando o LVD estava preso, os NR continuaram como um conjunto mais comercial e é interessante ver as adaptações que fazem por exemplo das músicas portuguesas, estilizam fados, canção ligeira. O melhor exemplo é a famosa música de Arlindo Carvalho - Chapéu Preto, cantada pela Lurdes Van-Dúnem.

Géjé e ZézéGéjé e ZézéPartiste das imagens de arquivo e falaste com várias pessoas. Com quem?
Participaram no filme um amigo do Liceu que é o Tito Gonçalves, e muito o Amadeu Amorim que faz a história toda do grupo. Entra o António Ole, para o homenagear também e para realçar que o filme dele esteve 11 anos censurado, por mal-entendidos políticos. Havia a ideia de que o LVD se posicionava contra o governo, talvez ligado ao 27 de Maio, mas nunca se provou isso. Entra o Rui Mingas, o Gégé, o Dionísio Rocha, a Ana Maria de Mascarenhas, a Sara Chaves, tenho uns momentos muito bonitos com Carlitos Vieira Dias a tocar músicas do pai.

Liceu nasceu em Luanda?
No registo de nascimento diz que nasceu em Banana, no Congo Brazaville, mas nasceu em Luanda. O pai achava que poderia haver problemas mais tarde com os portugueses e que o Congo ia ser independente mais cedo porque os belgas eram tão cruéis que o povo se ia revoltar mais depressa.

Além da música o que fazia?
Trabalhava no banco, uma das coisas que aparece no filme é a carta de despedimento. É mais um elemento ridículo, ele é preso em 1959 e em 62 o Banco de Angola manda-lhe uma carta a dizer que, por falta de comparência ao serviço, lhe ia ser instaurado o habitual processo disciplinar.

Nos anos 50, 60 estes grupos tinham alguma ligação ao MPLA da clandestinidade?
Claro, não são presos só pelas letras mas também por estas ligações. O Amadeu Amorim e o Liceu estavam ligados ao Movimento para a Independência de Angola (MIA). As músicas de Ngola Ritmos abriam as emissões de rádio do MPLA na clandestinidade. O Amadeu Amorim diz uma coisa muito engraçada, que os jovens podem já não conhecer o nome Ngola Ritmos, mas se perguntarmos se conhecem a música tal, eles dizem logo que sim, as músicas viraram uma espécie de poder nacional.

Manjolo, Gaby e António OleManjolo, Gaby e António OleComo se organizava a produção musical clandestinamente?
Os Ngola Ritmos tocavam nas casas uns dos outros, nos musseques e nas festas dos brancos, cantavam em quimbundo e as tais músicas portuguesas estilizadas em ritmos angolanos que todos aplaudiam, depois começou a haver vigilância. Nos anos 60, a segunda fase do grupo em que começam a ser mais comerciais, gravam em Lisboa os únicos discos que existem dos Ngola Ritmos. As pessoas viveram o seu tempo, não tinham esse espírito de guardar ou arquivar. Nem tinham fotos nem sabiam ao certo quantos discos gravaram.

Eram todos auto-didactas?
Sim, mais ou menos. Foram aprendendo uns com os outros e com os mais-velhos.

O que deve a música angolana actual a esta geração?
Deve tudo. A partir daí há muitas cópias de estilo. O problema de ser pioneiro é que se pode cair facilmente no esquecimento, não fica uma autoria. O “Muxima” por exemplo, que as pessoas conhecem pelo Duo Ouro Negro, e nunca referem a versão do tio liceu e dos Ngola Ritmos. O LVD é uma figura que está agora finalmente a ser recuperada com uma importância histórica única.

Como diagnosticas a pouca produção de cinema em Angola? Qual o teu contributo?
Sinceramente, desde o 1º FIC (2008) que não quero ter mais nenhuma colaboração com as instituições que orientam o cinema angolano, quero ser apenas amigo de Angola e não sofrer e ver o meu nome no meio de intrigas de corte. Nos últimos 20 anos a minha experiência é angolana também por relações particulares e não quero misturar as coisas, só quero partilhar a minha experiência. Acho que o cinema angolano precisa de informação e  formação, não pode evoluir enquanto não houver uma estratégia, de formação e de angariação de fundos para a produção, quer pelo orçamento de estado quer por exemplo com co-produções internacionais, e começar-se com curtas-metragens e documentários. Não se pode usar estes trabalhos que são feitos em vídeo amador como o exemplo do que pode ser o futuro do cinema, nem comparar ou tentar que  Angola seja Nollywood pois a realidade da Nigéria é totalmente diferente.
É preciso estudar, investigar, aprender a fazer. Fico contente por estar previsto nas novas escolas de arte um curso médio de cinema. Fico contente pelo trabalho recente do Mário Bastos, jovem realizador angolano formado nos EUA, que me parece ser um dos nomes para o futuro do cinema angolano.

* Jorge António que, desde 1991, se divide entre Portugal e Angola, numa relação também cinematográfica que vem já da sua longa-metragem “O Miradouro da Lua”, (1ª Co-Produção entre Portugal e Angola) Tem sido também o produtor executivo da Companhia de Dança Contemporânea de Angola, da Ana Clara Guerra Marques, desde 1995, em tournées e espectáculos. É uma da pessoas que mais incentivou e divulgou o cinema angolano na ultima década, em livros, artigos, festivais etc e foi um dos mentores (com o Dr. Boaventura Cardoso e o Miguel Hurst) do Festival Internacional de Cinema de Luanda - FIC - Luanda.

Originalmente publicado no Novo Jornal, Angola, Abril 2010

por Marta Lança
Afroscreen | 12 Junho 2010 | Jorge António, Liceu Vieira Dias, música angolana, Ngola Ritmos