Mangal, floresta e uma aldeia macua

1. «Espécies endémicas», ouvirei muito ao longo destas viagens. Traduzida para as pessoas, que qualidade é essa de ocorrer apenas num determinado local?

No âmbito de uma produção de filmes sobre o estudo da flora e do património natural das ex-colónias portuguesas, No trilho do Naturalistas, filmou-se o encadear de histórias da ciência, de missões botânicas protagonizadas por naturalistas do século passado, munidos de interesse científico, genuína curiosidade e vontade de classificar o que lá se encontraria. Acrescentando elementos que justificassem o «direito histórico», ocupação e colonização de territórios, os ditos naturalistas reforçavam uma ciência ao serviço do poder colonial. Percorreram terras africanas onde colheram sementes e plantas, em longas expedições — com carregadores negros, tendas e mantimentos — para depois as analisar e arquivar, em herbários e jardins botânicos da Metrópole. 

E tudo isto em viagens, agora nossas e de abordagem flexível, mas sobrepostas às desses anteriores viajantes. Primeira rodagem: Moçambique, entre dunas, mangais e floresta aberta, Miombo. Segunda: Angola, um salto a Malange, descida de Luanda, passando pela Huíla, ao Namibe, um dos mais antigos desertos do mundo, focados na vegetação semidesértica constatando que, no deserto, existe tudo menos vazio e admiramos a grandiosa Welwitschia mirabilis, resistente planta das areias do deserto que chega a ter raízes de trinta metros e longevidade de séculos. Tudo em excesso. Mais tarde, o destino dos trópicos foi São Tomé e Príncipe, seguindo o rasto da quina que deu origem ao quinino, milagre contra a malária, embrenhados na floresta equatorial húmida, repositório de grande biodiversidade, rica em endemismos.

2. Uma viagem pede disponibilidade e liberdade. Exige que avancemos «movidos pelo espírito da eterna aventura, sem retorno à vista, preparados para enviar para os nossos reinos desolados somente os nossos corações embalsamados, quais relíquias», assim discursou Thoreau em Caminhada (1851), desvalorizando «as epidérmicas ‘expedições’ que não passam de breves viagens que terminam ao fim da tarde junto à lareira que nos viu partir».

Reconheço a crítica à ideia de expedição. A incapacidade de partirmos com verdadeira entrega, o difícil desprendimento de patrimónios consolidados, as defesas sobranceiras. O que espero de uma viagem, contra o profissionalismo da viagem, é a receptividade ao momento, ao desentendimento, às subtilezas. Assim, levo um gancho na mão para furar o que a rotina não deixa entrever. 

Porém, nesta viagem filmada há condições: o percurso é ditado pelo que se procura no horizonte, a época deve ser a da floração, ao mesmo tempo é de evitar-se a estação das chuvas. Os improváveis são presumíveis: os do caminho e das pessoas (como não?). Seguimos assim uma espécie de guião da natureza, e à narrativa composta por materiais diversos se juntará a fluidez, a unidade e o ritmo que fazem o filme acontecer.

3. Entre simulações cartográficas desses viajantes, e com companheiros cinéfilos e cientistas do século XXI, contribuo para o lado pragmático desta empreitada. Intimamente, tento desenrolar na paisagem as suas palpitações silenciosas. Diverte-me a feliz improbabilidade de, a uma segunda-feira de manhã, contornarmos mangais e ilhotas de jiboias no Litoral Norte de Moçambique, apertados numa canoa, ritmicamente impelida por quem comanda o bambu, a nosso gosto, a dançar na água. A conturbada vida urbana, nervosa no desencadear de informação, parece-me longe e dissipada. Uma espécie de pó discretamente instalado nas árvores que observamos. O movimento despreocupa-me daquilo que impulsiona o lugar de onde venho — funções, trocas, acumulação, valor, provas, intrigas. É uma ilusão útil que permite fixar-me no aqui e agora: serenidade desta água e um homem que fala incessante e apaixonadamente sobre o mundo das plantas.

É incrível ouvir o nome científico da planta antes de a ver, tal como tantas vezes as câmaras disparam ou filmam previamente aos olhos.

4. O mangue vermelho é uma árvore de incrível resistência a todas as investidas aquáticas, porque afinal esta água também pode ser violenta. Repetição, fúria das marés, existência gasta da antiguidade do mundo. Para sua defesa, os ramos descem, reviram-se, erguendo a planta em palafitas, cuspindo Rhizophora já em germinação, protagonizando adaptações como só a natureza consegue.

A natureza, ou seja, nós. No século XIX lá se ousou o distintivo de natureza humana.

Procuramos o mangal perfeito para filmar. Isso pode demorar dias. Começaremos por percorrer vários canais, clareiras na praia que desaparecem e reapareceram conforme as marés, como as mulheres macuas apanhando bivalves comestíveis ritmadas por cantigas, enquanto os botânicos enunciam as resistências do mangal. Areia macia de coral, mar quente para lá da sopa, chuva entre o calor, picadas de ouriço e imagens subaquáticas, estrelas do mar predadoras. Caril de caranguejo e feijoada no primeiro dia de rodagem em Cabo Delgado.

Andaremos muito de barco, por vezes periclitantes, navegados por pescadores menores de idade e com rostos graves à proa. Caminhamos com esforço, de material ao ombro. Na maré baixa, entre ilhas. Talvez se consiga filmar o mangal quase perfeito.

Dentro do carro, o entusiasmo dos biólogos surpreende-me. Só apanho fragmentos — um morcego-raposa com um metro, a acácia da febre-amarela de que as girafas gostam, 24 mil exemplares de plantas, melancia do deserto da Namíbia, melão do deserto do Kalahari, queimadas para a caça, mulala, uma escova de raiz negra para manter os dentes brancos, a sombra do cajueiro onde as pessoas se reúnem, a casca da mandioca com cianeto que pode matar maridos indesejados. Um pingue-pongue de informações que, talvez pela ingénua alegria da descoberta, me parecem fundamentais. Quase me arrependo de ter tirado um curso de Letras e saber tão pouco sobre a materialidade que nos rodeia.

De repente, a picada por onde enveredamos torna-se estupidamente extensa. Temos urgência por causa da luz, o deus do cinema é assunto omnipresente, que aqui desaparece demasiado cedo para o nosso dia-padrão de Hemisfério Norte. Sabia, assim se chama o nosso guia, queria levar-nos ao mangal mais lindo, que, nos seus cálculos espaciais, era perto. Para nós, longíssimo. Desacreditado, o Sabia que não sabia o caminho. Foi um simples desencontro de linhas temporais e cartografias. 

Séculos de culturas desencontradas. 

Voltamos para trás e metemo-nos de novo na povoação, Metuge, para enveredar por outra praia com mangal. Posto de administração em frente, casa da FRELIMO à esquerda. Uma mulher diz «a praia é lá», e lá significa longe. De novo as noções de distância. Finalmente, chegamos aos coqueiros onde o carro deixa de poder avançar. Temos de seguir a pé. Um bando de miúdos ajuda na travessia do lodaçal em troca de cem meticais para comprar chinelos. Os caranguejos de pata hipertrofiada (só os machos, porque as fêmeas têm ambas as patas conformes) vão-se escondendo nos buracos, à medida que desfruto andar descalça pela lama, enterrar os pés no macio pastoso, seco e desconfortável do lodo.

Aguardo um momento ao calor, bem torrado, enquanto a equipa filma uma cena com o botânico a explicar as diferentes espécies do mangal. Uns rapazes novos constroem um barco de vitalidade precária de seis meses. Chamam-me para a sombra do estaleiro improvisado, oferecem-me o lugar mais confortável e eu sento-me no saco do algodão usado para isolar a madeira do barco. Partilhamos uns carapaus assados no carvão diretamente em cima da areia da praia. Para estes meninos, Nampula é uma cidade longínqua e o mundo é feito de nomes abstratos de lugares tão distantes que até custa soletrá-los. Por-tu-gal, Bra-sil, Chi-na, Co-im-bra.

Confirmo-lhes que esses lugares existem mesmo, e que eu até os conheço.

Também estivemos em Mecúfi, um mangal com uma espécie de lagoa marinha no meio das dunas. A beleza era tanta que compensou a espera de três horas para comer um frango que umas senhoras ainda foram descongelar e assar.

5. Partindo de Pemba, atravessamos parte da reserva natural das Quirimbas, onde babuínos desconfiados nos viram costas e o feroz ratel africano aparece como miragem à beira da estrada. A vida selvagem vai abandonando Moçambique e, tristemente, o mundo em geral. A guerra, os caçadores, o turismo, as secas, os incêndios. O professor conta que, na missão botânica dos anos 60, havia leões a cercar os acampamentos. Daqui a uns anos provavelmente nem existirão os macacos que acabámos de ver. Dormir temendo que a aparição de leões, ou outros perigos, fazia parte das expedições.

Chegamos a uma das ilhas Quirimbas, o Ibo, grande posto de navegação referenciado nas cartas de piratas, onde mercadores árabes faziam entreposto com Sofala e Kilwa. Pessoas escravizadas eram vendidas tal como produtos. Especiarias, tecidos, marfim, jóias e metais preciosos. O Ibo era um entreposto comercial quase tão importante como Zanzibar, e foi capital de Cabo Delgado. 

O vento agita as folhas esguias das duas imensas mangueiras à entrada do Miti Miwiri, cujo redundante significado é «duas árvores». Trata-se de um hotel do tipo naturista, onde um ex-bancário alemão e o seu simpático sócio paquistanês assistem os turistas nas dúvidas sobre marés, barcos, passeios pela ilha e destinos seguintes. Para retemperar o calor excessivo logo pela manhã, é preciso procurar sombra ou beber uma cerveja 2M. Estendo-me num cadeirão de ébano. É fim-de-semana. Ouve-se um prolongado grito, é golo do clube do Ibo que joga contra a equipa de Lichinga. Sobe de imediato o volume da música. O administrador da ilha já dissera que, em caso de vitória, a farra seria tal que iriam «amanhecer». Ganharam, e aquele ar lânguido de fim de tarde, mesclado com o chamamento para a oração (Adhan), e os vultos a pairar nas ruínas coloniais — suaílis, portugueses, árabes e indianas, decadentes palácios de pedra com alpendres e pilares do século XIX —, foi temporariamente substituído pela alegria pública. Os risos de crianças que hoje não passaram com os peixes gigantes à cabeça, por ser dia de descanso, são música.

Vamos conversar com João Baptista, ancião da ilha. Apresenta-se como conselheiro, historiador e 3.º oficial da administração. Conta, com a lucidez possível dos seus 87 anos, a história da Ilha Bem Organizada (o acrónimo e a fama das mulheres bonitas fazem parte da cartilha que apresenta ao turista). De como trabalhou com quarenta e tal administradores, entre portugueses e frelimos, e de como sobreviveu ao slogan-realidade «entra vivo sai morto» da fortaleza. É que esta bonita ilha, que tem uma avenida Almirante Reis, foi já sede da PIDE para a Zona Norte de Moçambique, sobre a qual o realizador Camilo de Sousa fez o filme Silêncio de Sangue. Aliás, o primeiro contacto com portugueses seria desde logo trágico, com o massacre de umas quantas dezenas de muçulmanos.

E João Baptista, mergulhado em tempos coloniais, seis esferográficas no bolso da camisa, ambíguo quanto à independência de Moçambique e fiel à obediência, passa a tarde numa cadeira da Índia a escrevinhar memórias e a repeti-las aos turistas, quando os há, ganhando créditos como figura de ancião africano.

6. Levam-nos a uma madrassa muito precária onde o professor vem entregar-me o NIB que eu tratarei de fazer chegar à comunidade muçulmana de Lisboa para doações às obras na mesquita. Para as nossas câmaras, jovens mulheres dançam a damba com os seus folares, praticada em ocasiões religiosas e sociais, casamentos, feriados ou visitas de políticos. Numa espécie de apatia e automatismo, iniciam a sua prestação com uma canção de boas-vindas ao presidente e ao Partido. Agradecemos, mas pedimos antes temáticas relacionadas com o mar e a natureza. A equipa escuta, com condescendência e curiosidade, aquela mistura de música árabe e bantu, frases de trinta segundos repetidas até vinte vezes. Explicam-nos que em cada sequência há variações subtis nos padrões de percussão, ornamentação e movimento do corpo. Observamos a ondulação levemente irrequieta daquelas sereias muçulmanas, de lenços amarelos à volta dos rostos negros. Quando se erguem parece que vão soltar-se, mas ficam presas ao chão. 

A assistir, outras raparigas. Uma vez na escola, falam algo de português. Algumas têm na cara a máscara de mussiro, creme que se faz do caule de uma árvore perfumada, húmida e farinhenta mistura friccionada na pedra e a secar no rosto. Assinala a passagem da adolescência para a juventude. Dá-lhes carisma. Sorriem, envergonhadas, aos homens brancos da nossa equipa que descaradamente lhes roubam fotografias que cristalizam aquela fase importante das suas vidas. Creio que percebem que há qualquer coisa de misterioso e perverso para os forasteiros nesse magnético apontamento de beleza.

Pressente-se o início do turismo, desde que há uns meses chegou a distribuição da rede elétrica. «Cahora Bassa é nossa», é a piadinha do patrão branco de um restaurante manhoso. Em breve haverá edifícios reconstruídos por investimento alemão, sul-africano ou francês, lodges e ecoturismo, mais gente a comentar os horários das marés e a requisitar barcos. 

Ou não, o Ibo será um campo de refugiados da guerra de Cabo Delgado e tornar-se irreconhecível? É certo que não voltarei a ver este lugar como está, antes de mais pela impossibilidade geral de se voltar aos mesmos lugares e eles serem os mesmos lugares.

7. Duas figuras potentes acompanham-nos nesta viagem: O biólogo Harith. Um jovem cheio de energia e concentrado em fazer os guias de campo dos répteis do seu país. Anda sempre com frasquinhos para guardar as suas capturas. Apanha uma barata africana achatada, diz que é uma espécie menos frequente e fica contente com a descoberta. Numa aldeia compra uma cobra enorme que acaba por morrer asfixiada na garrafa. 

E o Gabriel, homem do som, figura carismática do cinema moçambicano desde o tempo de Samora, quando moçambicanos andavam a mostrar Moçambique e o mundo aos moçambicanos, tão diferentes uns dos outros, tão novidade uns para os outros, do Sul, Norte, Interior e Litoral, a conhecer e a fazer acontecer a ideia de país. Sobrinho do herói independentista Mondlane, Gabriel todos os dias saca da algibeira mais uma estória mirabolante, que nos deixa boquiabertos com o que cabe dentro de uma vida. Não se trata só de ter vivido os episódios que viveu, mas de saber tão bem contá-los, transformar as tragédias em gargalhadas, fazer-nos visualizar cada gesto do acontecimento. O potencial das narrativas biográficas para um imaginário nacional pode ser comprovado por teses e documentários, mas ouvir o Gabriel é o próprio exercício de encontrar o fio das narrativas perdidas. 

8. Estrada para o Interior do país. Entre o pó e o alcatrão, entre dois aparentes nadas, há sempre alguém a caminhar durante longas e tórridas distâncias. O tempo é a distância, «é lá», finalmente percebo. Para trabalhar, para visitar parentes, para arranjar comida. Separados por poucos metros, meninos gesticulam e lançam-se na estrada a exibir a castanha-caju que vendem. Um deles corre veloz quando paramos, «a minha vida é perseguir carros», confessa, na sua corrida desenfreada para fazer duzentos meticais. Seguimos sem alimentar conversas de inalcançáveis mudanças de vidas.

A savana vai sendo interrompida por afloramentos rochosos. São os famosos inselbergs que nos trouxeram aqui, recobertos de líquenes e microalgas, floresta e ilhas de vegetação no cimo. Logo à saída de Nampula avistamos um enorme inselberg granítico, rosto de perfil do Homem Velho olhando para o céu, lenda local que lembra a morte do velho rei Monomotapa em 1750. Uns rapazes correm a ver a equipa de filmagens, perplexos e orgulhosos por estarmos a filmar e a admirar a montanha — na Mitiwi. Essa montanha impressionante não é mais senão a sua paisagem de todos os dias. «É bonita?», perguntam-nos. A pergunta é ao mesmo tempo uma confirmação.

9. Malema acaba por ser uma avenida de terra batida quase grande, um mercado assente literalmente nos carris do comboio que vem do Maláui. Apesar das ausências prolongadas do comboio, os vendedores por ali se plantam, pacientes, com as bacias de tomate, cebolas e alho. Quando o comboio chega, os vendedores irrompem numa desenfreada competição: os passageiros temem perder o lugar, em viagens e paragens para lá da demora. Religiosamente, sem largar o assento, tentam corresponder ao comércio pelas janelas e portas do comboio. Azáfama de mãos estendidas, frutas entregues, notas devolvidas e cacofonia de viajantes, também eles me ultrapassam na paciência.

Chegamos à zona da administração local, onde informamos da nossa presença na povoação e da vontade de subir o monte Inago. Um representante das autoridades comenta «Filmar a montanha? Que interessante!». Manda interromper o feriado muçulmano do diretor de gabinete para que nos aconselha um técnico, o senhor Bonito, que conhece os montes como a palma da mão. É o senhor Bonito que irá subi-los connosco.

10. As montanhas insinuam-se em torno da vila, protegem-na dos calores e da desertificação, dão-lhe de comer. Avançamos pelo monte Inago, que é um corredor de acontecimentos. Damos passagem a inúmeros camponeses no único percurso feito ao caminhar. Duas horas para ir, duas para voltar, todos os dias há quem a suba. As machambas lá ao alto são mais férteis: terra escura, microclima, proximidade do rio, vegetação farta. Crianças calcorreiam a montanha, com pés velozes e quase invisíveis, subindo e descendo com carrego de tomate, couves, bananas, cana-de-açúcar. Parecem enormes troncos de árvores andantes a desenhar com perícia o trilho da montanha. Mais uma vez, aquilo que é rotineiro para tanta gente, para nós é sem dúvida uma experiência próxima do limite, ou pelo menos da complicação.

Embirramos com os diferentes ritmos de cada um, e os planos que não se consegue filmar, e a fome e a sede, e os pés cansados. E já só há água do rio se queremos beber. Por mim tudo bem, mesmo com sabor a terra e fertilizantes, tenho como papel principal desdramatizar a situação. É do meu feitio não complicar com pormenores. Uns homens reparam em nós, branquelas fraquinhos quase a quinar, e oferecem-nos cana-de-açucar para reavivarmos energia. 

Conseguimos contornar a montanha e chegar ao lugar simbólico onde o nosso botânico sénior estivera na missão dos anos 60. Sente-se realizado e algo comovido, agora que ali chegámos. Não é muito nostálgico, mas acha graça ao regresso àquele fim do mundo. Mais do que isso, é um luxo existencial regressar a estes lugares. É gente de outra educação, diria a minha mãe, pela resistência física e a espartana disciplina mental. Admiro-o mais quando percebo que, apesar de ter crescido ainda num certo mundo colonial, as situações de subalternidade o perturbam verdadeiramente. «Afinal ainda é assim?», parece perguntar muitas vezes.

11. A equipa do filme pernoita no único hotel de Malema, gerido pelo magnata da terra, proprietário de quase tudo: hotel, restaurante, gasolineira, loja, distribuição de cerveja, negócio da madeira e mecenas da Igreja Universal. Por estes dias há de ser chamado a Maputo para dar mais um envelope a um pastor muito importante que chega do Brasil.

Fico com os biólogos numa casinha com telhado de colmo junto a uma aldeia macua, onde durante noites seguidas ouvimos batuques, cânticos e choros à volta da fogueira num ritual fúnebre. Por uma tarde permito-me o prazer de umas horas sedentárias. A equipa passou de rompante para buscar mais águas e seguir para outra parte da montanha antes que, imperativo maior, a luz desapareça. Entretanto esqueceram-se da chave dentro do jipe trancado. Depois de múltiplas tentativas de a resgatar, várias opiniões e uma certeza: nem pensar em partir o vidro, não há no país outro igual para o substituir.

Dois guardas perambulam pela casa, sempre a tentar garantir o conforto dos brancos a quem chamam de patrão, por mais que lhes diga que não somos patrão de ninguém, que estamos só de passagem. Negam beber da nossa água ou sentar-se à nossa mesa, inventam motivos para servir, não descolonizaram nenhuma parte de si. Eles estiveram imenso tempo à espera deste momento: ter alguém para servir. Durante as longas semanas em que ninguém frequenta este lugar ficam a guardar afincada e serenamente o armazém de milho, export marketing, de um argentino qualquer que viram duas vezes na vida. Fazem da propriedade a razão para encaixar o tempo vazio. E é a ideia de propriedade que os explora e que faz com que circundem a casa umas cinquenta vezes por dia, no mínimo. 

12. O ritmo da aldeia macua é animal mutante, como nós. No fresco das quatro da tarde, que se segue a um calor ardente, desfruto de um momento de letargia no alpendre. Observo mães novas com crianças pela mão, crianças com outras crianças ao colo, rapazes de boné e calças às riscas, mulheres de capulanas coloridas com t-shirts de slogans políticos, casinhas fumegantes de adobe e palha, agitação de roupas em estendais, folhas de quatro árvores diferentes, soubesse eu identificá-las (apesar da companhia dos botânicos, desconheço tudo sobre o mundo vegetal). Música de rádio, organização rotineira de águas, permanente abastecimento ida e volta do caminho para o poço. Água peso-pesado, água-deleite. Uma mãe muito nova dá banho à criança no alguidar, uma outra menina corta lenha. Divisão social e de género no trabalho, legitimidades ancestrais, dinastias, laços afetivos linguísticos religiosos, propriedade comunitária, equilíbrio certamente bem pensado e estruturado, numa cadeia de vida impenetrável à descrição.

O burburinho diurno dos aldeões nada tem a ver com o silêncio profundo no qual a noite mergulha cedo, assim como cedo continuam a amanhecer os aldeões. No escuro, as crianças choram, serão doenças ou birras? Revoltas em pequena escala. Rasgando o silêncio da noite, os tambores, danças e xinguilamentos tomam de súbito o espaço todo. O modo de velar os mortos é celebrá-los, e isso vai durar o tempo que tiver de durar. Adormeço com os cânticos, que assim descritos parecem coisa exótica, mas vivê-los é um doce presente da vida. Comunhão, catarse e transformação do grupo em ato. Agonias? Deve havê-las, nada sei sobre o povo macua e a sua hierarquia do mundo invisível, longe da play station e das crises financeiras, mas não imunes à rotação do mundo. 

Se pudessem escolher, o que prefeririam, onde gostariam de viver? E nós, escolhemos?

13. Em Moçambique naturalizam-se as hierarquias e os preconceitos classistas e raciais, que são muitas vezes a mesma coisa. Vou percebendo a miséria, as dependências, a infiltração do capital na sua capacidade de tudo perverter, a ilusão de utopias pré-capitalistas das sociedades do Sul, as orgulhosas taxas de crescimento económico que colocam a educação e a saúde numa agenda oculta, as migalhas do crescimento súbito, o olho dos mercados ao potencial dos recursos, a distribuição de riqueza sempre adiada. Classes médias emergentes, feridas das guerras que se vão restabelecendo, juventudes reivindicando liberdades. Criatividade e solidariedade acionadas todos os dias para responder, grandiosas, a muitos problemas do quotidiano.

14. Das cubatas saem os camponeses, matutinos, para as machambas e as crianças para as suas escolas longínquas. Por vezes as crianças ficam sozinhas a reinar nas aldeias, a garantir a vida, a sua e a dos outros, a colaborar com a comunidade. Fazem parte e são essenciais ao seu ecossistema. Vidas reféns, ou aliadas, dos ritmos da natureza e da sua capacidade humana. Sofrem as injustiças e as fúrias de ambos. 

Tiro fotografias a tentar traduzir a presença saltitante das crianças em consonância com a paisagem. Imperturbável e plena nos caminhos de quem habita a paisagem. De quem a atravessa, de uma à outra ponta da aldeia, e da aldeia ao campo infinito. Porém, nada pode, e ainda bem, cristalizar um tempo de um lugar. Nem as imagens.

Os biólogos e cineastas recolhem às cidades para montar um filme sobre expedições aventureiras e plantas em Moçambique. Efabulam sobre como criar uma narrativa acerca da morfologia e da metamorfose das espécies botânicas tropicais características dos locais, bem como a relação atual destes países com os seus recursos, com a biodiversidade e a ciência. Continuo a tentar olhar, experienciar, entender, nem sempre de modo inteligível, o mundo a partir de África. 

 

[fotografias de António Gouveia, durante a rodagem do filme sobre Moçambique, em 2012, com realização de João Nicolau, produção Terratreme].

 

publicado originalmente na Revista Intervalo nº 6, dedicada ao tema Mundo 

 

Podem ver aqui o episódio de Moçambique, realizado por João Nicolau, integrado na série No Trilhos dos Naturalistas, Terratreme.

 

 

por Marta Lança
Vou lá visitar | 1 Setembro 2016 | África, botânica, expedições, moçambique, No Trilho dos naturalistas, Terratreme