2ª chamada - corpo - IMAGENS E GEOGRAFIAS

Na primeira chamada sobre o CORPO, corpo e precariedade, a materialidade do corpo (embodiment) foi entendida como construção que emerge das relações de poder, responsável por orientar o sexo, o género, a escala, etc. Surgiram algumas questões: Como se incluem estas relações no corpo? Como condicionam e definem a corporalidade (movimento, postura, doença, sexualidade…)? Como se subvertem estas relações e estatuto através do corpo?

A abordagem a estas propostas parte da interação dos três corpos, quer dizer, a partir de três ópticas interligadas:

- corpo como sujeito individual: fenomenológico - ser no mundo - experiência vivida.

- corpo social: usos representativos do corpo como símbolo, a partir do qual pensar a natureza, sociedade e cultura.

- corpo político: regulação, vigilância, controlo individual/colectivo dos corpos.

Felix Crying (1998-99), drawing for the film Stereoscope, by William Kentridge.Felix Crying (1998-99), drawing for the film Stereoscope, by William Kentridge.

Imagens e geografias, dois temas abordados conjuntamente pela intrínseca articulação entre corpo, representações e espaço. Não são formas separadas, nem formam um ecossistema organicamente organizado. Constroem-se correlativamente. Assim, o espaço não se apresenta como mero recipiente neutro da ação física e da experiência, é antes passível de condicionar e transformar o corpo, ao mesmo tempo que gera novas representações. Assistimos a uma (mais ou menos ativa) constante negociação do corpo, das representações e do espaço.

Pretendemos reforçar a necessidade de conceber os corpos como lugares de atuação fundamental e plena, e não como simples superfícies de inscrição discursiva. Como tal, a nossa expectativa é a de reflexões livres que nos ajudem a repensar as formas habituais de intuir e imaginar o nosso corpo e o espaço.

Convidamos os leitores e colaboradores do BUALA a produzirem textos e/ou imagens relacionados com estes temas, dos quais avançamos apenas linhas de abertura. Interessam-nos tanto os estudos mais teóricos/ analíticos como reflexões mais pessoais, experiências, trabalhos ou obras que explorem estas questões ou temas a partir da arte, ciência, política, etc.  Os registos podem ser de todas as naturezas: poético, ensaístico, jornalístico, impressionista, manifestos, provocações,… convém não ultrapassar as 1500 palavras nem o dia 30 de Novembro 2013.  É o nosso desafio para chegar ao resultado de uma publicação em papel (possível devido a uma campanha bem sucedida de crowdfunding). 

O email de envio é o info@buala.

Drawing from Felix in Exile 1994, by William Kentridge.Drawing from Felix in Exile 1994, by William Kentridge.

Tópicos 

1. Corpo e imagens

A corporeidade não é uma qualidade primária da subjetividade, será sempre construída; a esta construção chamamos representação. Com Lacan podemos dizer que o corpo é sustentado pelo imaginário, o simbólico e o real. Dizer que o corpo é imaginário significa que a imagem é assumida pelo sujeito através de uma série de identificações. Estabelecer um acordo entre o corpo e a sua representação serve para definir os limites da identidade individual, limites esses continuamente reajustados. Urge fazermos uma revisão crítica da estética que molda as nossas habituais formas de intuir e de imaginar o nosso corpo.

A representação ocidental corporal é anatómica, explorando num corpo sem pele a sua estrutura interna. Pode perceber-se, tal como assinalam o médico patólogo González Crussí e o historiador da medicina Shigehisa Kuriyama, uma lógica que avança da superfície para a profundidade, em contraposição aos diagramas chineses (o corpo com pele, corpo como fluído) onde se procede com uma dialética contrária, da profundidade para a superfície.

Desde o Renascimento, a representação do corpo humano apoia-se na morfologia, recorrendo à anatomia e dissecação, praticadas nas escolas de arte no final do século XIX e princípio do XX. Três grandes registos parecem organizar o imaginário do corpo na arte dos séculos XIX-XX: o corpo mecanizado, o corpo desfigurado ou desmembrado e o corpo belo. A arte compôs uma imagem do corpo, permitiu mediar, mimetizar, representar o corpo.

Na arte contemporânea, porém, ocorre algo diferente, passando a apontar, como diz Rosa Aksenchuk (diretora de Psikeba, Revista de Psicanálise e Estudos Culturais), para uma deflação imaginária na qual se constata o desejo de matar a imagem do corpo. Já não se trata do corpo como imagem fascinante, de mistério, metáfora e erotismo, mas de corpos mutilados ou desfigurados que perturbam o espectador. Algumas obras de artistas contemporâneos abordam especialmente a transformação do corpo em objeto de fabricação, de manipulação, de consumo. 

Assistimos a um fenómeno que vai germinando na ordem cultural e serve de barómetro das mudanças na subjetividade: o corpo dos órgãos, em parte, devido aos grandes avanços tecnológicos (transplantes, doações de órgãos), encontra eco em outro tipo de produções culturais (séries televisivas, filmes, internet), fazendo desvendar novas abordagens ao prazer, e ao corpo.

Uma teoria crítica da subjetividade “não pode partir de uma noção determinada de sujeito, mas deve  aproximar-se do sujeito através dos mecanismos e tecnologias sociais em que este se constrói” (De Lauretis). Seria interessante discutir em que medida as velhas e novas imagens, símbolos e representações culturais do valor do corpo formatam um sujeito/corpo contemporâneo. Que dispositivos fazem emergir a identidade e o género. Poder-se-á falar de um corpo contemporâneo específico da época e da cultura em que vivemos? Que experiências produz? Como introduzir, ou melhor, será pertinente introduzir o corpo pós-colonial no debate?

Ubu Tells the Truth, 1996-97 by William Kentridge.Ubu Tells the Truth, 1996-97 by William Kentridge.

2. Corpo e geografias

Em sintonia com Lacan, há e deve haver outra forma de conceber o espaço, assim como existirá outra forma de imaginar e falar sobre o corpo, fora do dualismo cartesiano alma versus corpo, ou de género e identidade, importante condicionante das nossas formas habituais de intuir e imaginar. Partindo de uma crítica à geometria euclidianabaseada no mito das formas regulares (por exemplo, a esfera como metáfora da alma) propõe-se uma topologia materialista que, para Lacan, tratar-se-ia de uma topologia não esférica, que sirva de suporte para novas possibilidades de pensar e subverter a habitual representação do espaço e do corpo.

Através das inúmeras críticas dirigidas a um discurso geográfico que desvaloriza o corpo como mero objeto no espaço, podemos comprovar as consequências e prejuízos provocados pelo esquecimento daquilo que, em geografia, se chama escala corporal, que considera fulcral a experiência do corpo para entender as relações das pessoas com os seus contornos físicos e sociais. Assim, a partir da geografia feminista, implantou-se a necessidade de estudar, por um lado, como o espaço e a sexualidade se constroem mutuamente e, por outro, como abordar a relatividade das escalas espaciais, reivindicando a relevância do quotidiano e do corpo.

Corpo e cidade

Propomo-nos a pensar a cidade por ser o espaço da saturação cultural do corpo, da sua superação e transformação através das imagens (sistemas de representação e transformação, meios de comunicação, artes…). É o lugar onde o corpo se transforma, contesta e se reinscreve mediante as suas representações.

A forma, a estrutura e as regras da cidade infiltram-se e contaminam os restantes elementos que intervêm na construção da corporalidade e subjetividade. Influenciam o olhar dos indivíduos e a percepção sobre as várias formas de viver o espaço. Torna-se claro que as divisões espaciais (lugar, trabalho, cidade…) são também elas afectadas e reflexo das práticas corporais incorporadas e das relações sociais vividas. Por sua vez, o corpo transforma-se, produz e inscreve o espaço com outros significados e usos, graças a novas práticas corporais. 

William Kentridge.William Kentridge.

Linhas de abertura

- O corpo e as geografias imaginárias: formas de viver a espacialidade.

- O corpo geopolítico ou a reterritorialização, na utilização do espaço e da cidade. Pensar como a geopolítica afecta as geografias quotidianas.

- Itinerários como metodologia de investigação. Implosão do espaço e tempo: a caracterização subjetiva do tempo relativamente à forma de estar, de habitar o espaço.

- Proxémia: descrever o espaço pessoal onde os indivíduos atuam no meio social, a forma de aproximação dos corpos no espaço (aglomerações, multidões…)

- Ergonomia: como se adapta o corpo ao espaço e como se transforma o espaço em função do corpo.

- O espaço virtual como prótese: um enorme prolongamento dos nossos corpos. Este alargamento é confirmado pelo facto de que estes meios promovem a organização de corpos sexuados nesse espaço.  

- O espaço público em permanente processo de produção. Lugar de regulação e ajustes incessantes de distância e proximidade, de presença e ausência, da interação social concertada, o espaço público faz questionar os próprios processos de produção da vida social. A característica de “público” depende das práticas, emerge em função dos usos socialmente organizados nos espaços urbanos.

 

Nota: Estas formulações são apenas linhas de abertura. Interessam-nos tanto os estudos mais teóricos/ analíticos como reflexões mais pessoais sobre experiências ou trabalhos e obras que explorem estas perguntas ou temas a partir da arte, ciência, política, etc. 

 

por Buala
Corpo | 19 Abril 2013 | call, corpo, geografia, imagens, representação