3º chamada - corpo - VIDA E MORTE
Convidamos os leitores e colaboradores do BUALA a produzirem textos e/ou imagens relacionados com o CORPO. Avançamos apenas linhas de abertura. Interessam-nos tanto os estudos mais teóricos/ analíticos como reflexões mais pessoais, experiências, trabalhos ou obras que explorem estas questões ou temas a partir da arte, ciência, política, etc. Os registos podem ser de todas as naturezas: poético, ensaístico, jornalístico, impressionista, manifestos, provocações,… convém não ultrapassar as 1500 palavras nem o dia 30 de Novembro 2013. É o nosso desafio para chegar ao resultado de uma publicação em papel (possível devido a uma campanha bem sucedida de crowdfunding). O email de envio é o info@buala.
Não morremos porque estamos doentes, mas porque estamos vivos.
Michel Montaigne (1533 - 1592)
Não morremos porque estamos doentes, mas porque estamos vivos.
Michel Montaigne (1533 - 1592)
A vida e a morte são compreendidas em relação a determinado contexto, a um determinado marco. Independentemente deste, continuam a ter lugar, e esse facto põe em questão o próprio marco e o campo ontológico que definem o seu estatuto.
De acordo com Judith Butler, em Frames of War: When Is Life Grievable?, a figura humana pode ser apreendida como VIVA mas não ser reconhecida como VIDA. Assim, a questão da VIDA em abstracto, ou melhor, do VIVO, responde a posições próximas do humanismo e do individualismo liberal. Estas questões remetem-nos diretamente para a chamado do CORPO E PRECARIEDADE, que denunciava a existência de certas normas que estabelecem um reconhecimento diferenciador, razão para algumas vidas serem choradas (em formas de luto e de dor publicamente aceites) e outras não, separação que se inscreve na concepção do que é normativamente humano.
Para Michel Foucault, “o homem moderno é o animal, em cuja política, a sua vida de ser vivo está em questão”. Na mesma linha, Butler refere que não podemos ficar ancorados a debates sobre o que se considera ou não um indivíduo vivo. Podemos antes experimentar outra abordagem: perguntarmo-nos sobre as condições que tornam a vida possível.
Como sustenta Foucault, em História da sexualidade I: A vontade de saber, o poder caracteriza-se não tanto por matar, mas pela administração da vida. As formas de controlo da vida atuam fundamentalmente sobre o corpo. E acrescenta em Il faut défendre la société que, a partir dos finais do séc. XVIII, há um distanciamento progressivo da morte e da sua ritualização pública, e que, desde que as tecnologias do poder intervêm afincadamente na vida, a morte passa a ser entendida como (fim da vida) fim do poder.
A partir do século XIX, o poder organiza-se mais em torno da gestão da vida do que na ameaça da vida, sendo o sexo (e a sexualidade), o seu prioritário objectivo de controlo. Curiosamente, como analisa Foucault, a temática do sangue reaparece e sustenta este poder político que se exercerá sobre a sexualidade. O racismo forma-se neste contexto. Não é um fenómeno anormal dentro da sociedade, mas antes o fundamento do Estado moderno, ao assegurar o poder homicida do Estado, uma vez que funciona na base do biopoder. O racismo, que se baseia na eliminação do perigo biológico, funciona não só a nível étnico como, numa lógica evolucionista, inclui os doentes mentais, os criminosos, os adversários políticos, etc. (os exemplos remontam a 1907, desde a aprovação da lei nos EUA que permitia a prática da eugenia, e continuam até à década de 70 noutros países como Suíça, Áustria, Suécia ou Noruega, onde constatamos esterilizações forçadas)1 Portanto, há que pensar também como o poder pretende regenerar a própria raça.2
Queremos acrescentar que, embora Foucault tenha salientado o desenvolvimento inicial do racismo como genocídio colonizador, não considerou a questão colonial constitutiva da modernidade e, por consequência, do biopoder e da governabilidade, como destacam Said, Bhabha, Spivak, Mbembe ou Chatterjee. Ainda que isto não invalide a sua tese, é necessário relê-la numa perspectiva comparatista com estes autores.
Recapitulando, o biológico e o histórico aliam-se em torno de tecnologias modernas de poder que intervêm e invadem a vida. E há uma crescente proliferação de tecnologias políticas: a saúde, as formas de alimentação e de habitação, as condições de vida, o espaço total da existência. É sabido que a existência, a conduta, o corpo, são crescentemente medicalizados3, e cada vez encontramos menos dimensões da vida fora deste controlo. Na sociedade capitalista, prioriza-se o somático: o corpo é uma realidade biopolítica, a medicina uma estratégia biopolítica.
A vida parece ter como finalidade a reprodução da realidade com destinos diferentes para cada um, mas não passa, afinal, de um ato privado cuja intenção e objectivo é produzir uma vida privada. Como assinala o filósofo catalão Santiago López Petit, o “capitalismo atual coloca a vida a trabalhar”, subsumindo por completo a subjetividade: afectos, emoções, sentimentos, desejos. Claro que isto não significa que o sujeito esteja determinado ou sentenciado.
Michel de Certau insiste, em A Invenção do Quotidiano, que a sociedade não se reduz à quadrícula da vigilância e torna-se, portanto, urgente enunciar os procedimentos, os modos e as artes que jogam com os mecanismos da disciplina, por muito minúsculos que possam parecer-nos. É necessário resgatar este material que nos serve para reinventar o quotidiano, capaz de nos afastar das imagens fatalistas que impõem a impossibilidade de mudança ou de transformação.
No entanto, Santiago López Petit adianta uma posição mais radical e propõe-nos romper o medo perante a não conservação da vida (ou seja, ganhar ódio a uma vida integralmente intervencionada). Isto é, romper com este medo permitir-nos-ia decidir o que queremos e o que não queremos viver, sendo este o caminho que nos resta para subverter a nossa condição de sujeitos precários. “E se a vida é hoje um autêntico campo de batalha”, conclui López Petit, as perguntas sobre o sentido da vida - como dispor do nosso mal-estar? O que significa fazer do “querer viver” um desafio?… são perguntas diretamente políticas. Há que inventar um ódio à vida que nos liberte do medo”.4 Não se trata de matarmo-nos, nem destruir-nos, mas antes de não morrer numa vida que conserva todas as misérias.
As questões da vida e da morte são políticas. Não podemos por isso encarar a vida num sentido neutro, esvaziada de conteúdo existencial. No entanto, isto não exclui qualquer outro enquadramento, aproximação ou estudo sobre a vida e a morte.
Ler as outras chamadas:
- 1. Não podemos deixar de mencionar o recente caso, em Portugal, de Liliana Neto que, por sentença judicial, devido a dificuldades económicas, lhe foram retirados sete dos dez filhos, depois de se ter recusado a uma imposição de esterilização.
- 2. Merece especial atenção a atual proposta do Ministério de Saúde Espanhol para aplicação restritiva do Real Decreto de 2006, do direito à procriação medicamente assistida pública, sendo excluídas mulheres sem companheiro e lésbicas, reservando esta apenas para “casais constituídos por um homem e uma mulher”. Análoga legislação em Portugal.
- 3. “O controlo da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, exerce-se antes no corpo, com o corpo”, em História da Medicalização, conferência ditada por Foucault no Curso de Medicina Social, Centro Biomédico da Universidade Estatal de Rio de Janeiro, em 1974.
- 4. “Conversación entre López Petit y Sandro Mezzadra: De qué está hecha una vida política?” na Universidad Internacional de Andalucía – Arte y Pensamiento.