Coágulos da mulher que não queria ser

Este texto é autobiográfico. Provavelmente você não quer saber de uma vida estranha, não sou ninguém importante demais que mereça ser biografado. Mas este texto é biográfico e ponto e, apesar de sê-lo, caso você seja mulher pode até achar que é sobre você. Pode ser uma crônica, talvez, se achar bonito dizer isso. Podia já intitulá-lo assim, crônica, crônico, e isto evitaria justificativas e justificações desnecessárias. Sou uma mulher. Uma mulher adulta que tem um corpo, um corpo que me serve e que, muitas vezes, sou eu quem o serve, e este é o motivo deste texto-crônica, ou desabafo humilhante pra alguém que tem um corpo com ambições. No entanto estou aqui com meu corpo que, enquanto não zomba de mim e esfrega na minha cara a incompetência em geri-lo, ilude-me que o utilizo para gerar alguma interação com o mundo dos vivos. 

Para entender melhor esta história, é preciso viajar até 1996. Tinha quatorze anos e estava de biquíni, porque nesta altura da vida passando meses seguidos de biquíni quanto tudo ao meu redor era um grande, imenso e interminável verão, verão cujas marcas carrego na pele até hoje. Brincava na areia como uma criança até que a fome me fez ir almoçar. Peguei umas peças de roupa, e qualquer coisa que tivesse às mãos, podia ser um brinquedo, um balde, não lembro bem. Mas lembro que corri pra o banheiro e fiz xixi e sangrei, sangrei e senti o sangue descer, e olhei e chorei. Chorei vendo o sangue porque sabia que algo tinha mudado, mas não queria que mudasse. De todas as meninas da minha idade, fui a última a receber a menarca. Tinha quatorze anos, dois cotocos de tetas, um corpo guenzo de magro, ossos à mostra, trinta e poucos quilos só de joelho, uma menina que não queria crescer. 

No dia que fiz dez anos, uma amiga menstruou, a seguir disso todas elas foram ganhando suas menstruações, uma a uma, enquanto eu festejava minha meninice prolongada. Acompanhei aquilo por quatro anos, tão feliz quanto apavorada, e creio que meu pavor era o que adiava dia a dia a minha hora. Na altura não entendia bem, não era consciente, era só um corpo que sentia, mas olho pra trás e já compreendo bem o porquê. Criança não tem gênero, não geral. E se tem, um pouco importante. Criança é tudo criança e os limites de gênero são mais simples de lidar. Ainda assim com toda essa exigência, criada na praia, solta na buraqueira, era fácil sentir a demarcação dos territórios, os territórios que por ser criança, poderia me atrever a passar, mas em ser mulher já não seriam mais admitidos. Minha mãe ouviu meu choro, entrou no banheiro, viu o sangue e brilhou. E tudo que eu consegui dizer foi que minha vida acabou. Assim, com esse toque de drama todo tão peculiar do meu eu: ‘minha vida acabou’. E naturalmente minha mãe, treinada meticulosamente para ser mulher, disse que eu estava sendo dramática, porque estava mesmo, era verdade. E as palavras têm poder, como tem. Desde aquele dia nunca mais fui a mesma. Passei a vida inteira me desentendendo com essas fronteiras, sem compreender qual entre as estacas desta demarcação tinham sido impostas a mim e quais eram de fato as fronteiras de um genuíno feminino. Engoli seco aquela menarca, lavei o biquíni sujo como bem a mãe ensinou, e por todos os meses que se seguiram discutiram comigo sobre o território real e imaginário dessa esquizofrenia boa e má chamada corpo de mulher. 

A mulher não pode. Não pode dançar, abrir as pernas, falar alto, não pode ser, não pode ganhar, não pode ter, nem se sujar, não pode decidir. A mulher não pode passar dessa linha, não pode pular esta corda, não pode viver essa vida. Aquele sangue no meu biquíni veio dizer o que meu ouvido não queria escutar: que eu não podia. Não fazia sentido, porque eu sentia que podia tudo, e então com os braços magrelos fazia força para a frente e empurrava as cordas, derrubava os tijolos, chutava as cercas todos que via pela frente numa tentativa diária de não aceitar ver a minha vida acabar, não aceito o recado do sangue que eu mesmo derramei e derramarei até tornar-me velha. Não sei se por sina ou carma, não sei se pela materialidade da estrutura do mundo, ser mulher não é fácil para nenhuma de nós e não foi para mim. A desgraça me levou a ilusão de que quanto menos mulher fosse, mais dava conta de viver neste mundo que não foi planejado para nós.

Corta na semana passada

Andando pela rua tropecei em uma tesoura e agora estou careca.

É mentira.

Carla Diacov, em A Menstruação de Valter Hugo Mãe.Carla Diacov, em A Menstruação de Valter Hugo Mãe.

Questões bem maiores me puseram três ciclos inteiros dentro de casa sem tomar um vento, e se você é mulher, talvez entenda. Crises de choro, de pânico, sudoreses. A lua descobriu meus olhos secos na janela e quando pensei que poderia me esconder de novo, e de novo, e de novo, ela me encontrou e despejou em mim todas as cápsulas de energia do acumulado atrasado da vida inteira. Uma vida sangrando e chorando. Uma vida desfazendo o corpo para entender o corpo, para receber o corpo. Isto é configurado de muitas maneiras. Uma mulher desconectada com sua mulher perde os cabelos, perde escamas, vira boto. E boto é bicho homem, ainda que seja peixe, e ainda que seja fêmea. Uma coisa, meus senhores e senhoras, é uma coisa. A outra é boto, e boto é boto, mulher é mulher, uma escorregadia e o outro não. E chega uma hora que você já fez tanto de conta que é boto que acredita que é boto, fala feito boto, canta feito boto, ama um boto como se amam os botos. Mas o sangue vem e te lembra que você é mulher. Uma vez a bruxa me disse: ‘mulher com problemas com o sangue precisa se conectar com o feminino’. E eu pensei: ‘mas eu passo até batom’. Bicha burra. O feminino é o corpo da mulher. Esse corpo é capaz de tudo que nenhum outro é capaz. Mulher não é boto, mulher leva com ela a bolsa responsável por povoar toda terra, nutri-la com seu sangue. O sangue adubo regi folha por folha, raiz por raiz, bicho por bicho, tudo que há de ser vida. Esse corpo é capaz de tudo que nenhum outro é capaz. Mulher não é boto, mulher leva com ela a bolsa responsável por povoar toda terra, nutri-la com seu sangue. O sangue adubo regi folha por folha, raiz por raiz, bicho por bicho, tudo que há de ser vida. Esse corpo é capaz de tudo que nenhum outro é capaz. Mulher não é boto, mulher leva com ela a bolsa responsável por povoar toda terra, nutri-la com seu sangue. O sangue adubo regi folha por folha, raiz por raiz, bicho por bicho, tudo que há de ser vida.

E então, três ciclos inteiros passados ​​sem precisar ser boto, nem homem, nem nada que não fosse apenas eu e meu corpo, um transe. Honestamente, se você é sua, sabe do que se trata. O suor quando vem do couro cabeludo e da caixa dos peitos avisa pra seu corpo que você é mulher. Quando pisquei, não tinha um cabelo na cabeça. Não foi o planejado, não posso dizer sobre o que fiz porque nem tenho as mesmas lembranças. Tenho em algum lugar de mim uns flashes sobre ruídos de máquinas. Com o cabelo no chão, um soluço copioso de quem deixa ir embora, mas também de quem deixa entrar. Mulher não é cabelo, mulher não é cabelo. Olhai o espelho e vi outra pessoa. Uma pessoa sem cabelo que chorava para se receber e para partir. 

Foram sete dias de sangue e, curioso, sangue que deixei escorrer sem travas. Quando minhas pernas estavam sujas era quando as via limpas. O poder de uma vida que começou ironicamente no dia em que parei de lutar. Ver o cabelo ir embora doeu. Doeu igualzinho a 1996, quando disseram para ir embora a menina, a meu contragosto. Seguro a menina nos dentes como uns e outros seguram na primavera. E nessa vida, todo meu sangue chorou a menina ferida. Deixei os cabelos no chão e decido ser mulher, afinal. Junto com o sangue que jorra, são a fibra e o sal que adubará o chão deste mundo que se chama terra, mas deveria se chamar útero. 

Carla Diacov, em A Menstruação de Valter Hugo Mãe.Carla Diacov, em A Menstruação de Valter Hugo Mãe.

por Manuella Bezerra de Melo
Corpo | 30 Abril 2025 | crónica, menstruação, mulher