O feminismo é um projecto de transformação radical da sociedade no seu conjunto
Paul –antes Beatriz–, um dos mais influentes filósofos do mundo, comissário de arte e referência da teoria queer e dos estudos de género, desenvolve no livro Um Apartamento em Urano, conjunto de “crónicas da travessia” publicadas no jornal francês Libération que revelam a parte mais pessoal deste autodenominado “dissidente do sistema sexo-género”.
Se Virginia Woolf reclamou um quarto para si 1929, Preciado faz o mesmo declarando-se “uranista” e imaginando a vida num planeta longe das imposições sexuais, de género e raciais.
Diz em Um Apartamento em Urano: “Não sou homem não sou mulher, não sou heterosexual nem bisexual”. O seu é um género utópico como afirma a escritora Virginie Despentes no prólogo?
Sim, mas isso é real. A citação refere-se às inscrições legais e médicas, que são basicamente abstrações, ou seja, elas não existem. São categorias que foram naturalizadas pela estrutura epistemológica dos séculos XIX e XX, especialmente, mas não têm conteúdo empírico. O oxigênio, por exemplo, tem mas a homossexualidade não. Existe cultura gay, mas não homossexualidade. Do mesmo modo, a raça não existe, mas o racismo sim.
Acredito que a tarefa do filósofo, ativista e artista é revelar processos de construção política que levaram à cristalização de certas noções que hoje entendemos como naturais. Por exemplo, género ou homossexualidade. Se fossem naturais, não poderíamos opor-nos a elas, do mesmo modo que não podemos opor-nos à gravidade. Isso deve pôr questionar não apenas os discursos religiosos que foram fundados para muitas das tecnologias do corpo e da sexualidade, mas também para pôr em causa o discurso científico.
O corpo trans, escreveu, “põe em cheque noções como a nação, os tribunais, a família, os centros de detenção ou a psiquiatria”. De que maneira o trans é um ato político?
O trans é sempre um ato político. Numa sociedade em que existe uma epistemologia binária na qual nem o discurso médico nem o jurídico contemplam outro tipo de género que não seja masculino ou feminino, afirmar-se como trans é colocar-se no lugar da patologia e aplicar uma terapia de género que permite atravessar essa fronteira e ir para outro lugar. Se nos opomos a esse tipo de diagnóstico médico e protocolo de patologização, é sempre e, em qualquer caso, uma posição política. É tão político quanto o herético que no século XV se opunha à existência de Deus. Esta epistemologia binária é a epistemologia da diferença sexual, que, de qualquer forma, está cheia de morte e está numa crise extraordinária há pelo menos cinquenta anos.
Em que sentido?
No sentido em que a partir dos anos 40 o próprio discurso médico começa a perceber que há uma multiplicidade de corpos que não podem ser reduzidos ao binário. Assim, para explicar essa multiplicidade, inventa a noção de intersexualidade e decide não mudar a epistemologia sexual, mas intervir fisicamente nos corpos e modificá-los realizando operações que são basicamente uma castração genital. Estamos sempre a falar em mutilação genital nos países árabes, e não vejo porquê. A mutilação ocorre constantemente nos hospitais do Ocidente, em benefício da manutenção de um sistema abstrato e político que é o da diferença sexual.
O que é essa multiplicidade?
A realidade é que existe uma multiplicidade de vida e não dois sexos. Existe uma multiplicidade irredutível, cromossómica, hormonal, morfológica ou genética, que de modo algum pode ser reduzida a binária. É isso que a instituição médica sabe e é por isso que inventa a noção de género. O sexo era algo fixo, mas perante isto vão tornar essa noção em certa medida maleável.
A partir daí, põem uma bomba no seu próprio aparato epistemológico. Agora, há uma crítica muito profunda dos movimentos sociais e do próprio estabelecimento médico. Os cientistas mais moderados apostam em considerar que existem três, quatro ou cinco sexos. Outros dizem que não há necessidade de atribuir um género à nascença. Poderíamos simplesmente dizer chegou ao mundo ‘um corpo humano’ tal como ninguém se lembrar de dizer que se trata de um corpo cristão quando alguém nasce. No século XV, sim. A epistemologia é histórica, cultural, construída e também produz violência e legitima um sistema de opressão. É aí que não me oponho às feministas, mas acredito que você não pode continuar com uma estratégia da política da diferença.
Qual deveria ser a estratégia então?
A estratégia absoluta e real é simplesmente a abolição da epistemologia da diferença sexual. E então começamos a conversar. Da mesma maneira que a estratégia para movimentos de gays e lésbicas não pode ser o casamento ou a adoção gays. A estratégia é a abolição do casamento e da afiliação única. É aí que está a estratégia radical.
Existem vozes autoritárias do feminismo em Espanha que desacreditam a teoria queer ou que não a consideram feminista, apontam até que interfere e prejudica a luta feminista, o que acha?
Eu acho que nos últimos 50 anos, o feminismo foi praticado por lésbicas que deram o corpo lutando - demos ia dizer, já que sou lésbica há muitos anos. Eu ainda me considero mulher, lésbica, hetero, gay … Tudo e nada ao mesmo tempo. Grupos de lésbicas lutaram, por exemplo, pelos direitos reprodutivos das mulheres heterossexuais. Não vejo como o movimento feminista que temos agora teria explodido sem anos de luta contra o HIV, sem feminismo negro, feminismo de políticas transexuais ou feminismo das profissionais do sexo.
O problema é que acontece sempre o mesmo. As lutas são feitas de baixo e depois são recuperadas de cima. Agora é a mesma coisa e de repente vemos um feminismo branco heterossexual que quer endoutrinar-nos a todos novamente na ideia de uma mulher naturalizada. No entanto, estamos lutando precisamente contra esse estereótipo.
Quais são as consequências?
É um estereótipo que produz violência e legitima a opressão. Não tenho nenhum problema com raparigas ultra femininas ou ultra hetero, mas definidas com radicalidade. Uma rapariga que exige o direito de poder casar, ter filhos, ficar em casa e ter um pouco mais de liberdade, para mim representa um feminismo liberal de direitos que não me interessa. Da mesma forma que não farei um pacto com o PP para definir o que é a luta feminista.
Acabámos por estruturar os movimentos com políticas de identidade e acabamos sendo mais mulheres, mais lésbicas gays - não em sentido quantitativo -, mas não somos mais livres. A questão é reintroduzir práticas de invenção da liberdade dentro dos grupos. O resto, não importa. Porque as feministas se chateiam com a teoria queer? Não vejo que problema hão de ter. O que peço ao feminismo é simplesmente radicalidade nas suas propostas: abolição da determinação da diferença sexual no nascimento e despatriarquização radical de todas as instituições e administrações. Se começarmos por aí, veremos o que resta da estrutura social patriarcal que conhecemos.
Qual é o assunto do feminismo?
Não há sujeito do feminismo. O feminismo é um projeto de transformação radical da sociedade como um todo. Esse é o verdadeiro sujeito (e assunto): um projeto de despatriarcar, de descolonizar e radicalmente ecológico. Quando esse assunto cristaliza e se converte em mulher, temos um problema. Porque também se tornará um assunto exclusivo e excludente.
Não devemos identificar o feminismo como um movimento e uma luta essencialmente pelas mulheres?
Não. Embora seja muito importante dar visibilidade a grupos de mulheres menos visíveis e sujeitas a maiores práticas de opressão. Mas isso é outra coisa, não tenho a impressão de que seja isso que está a acontecer em muitas areas do feminismo. Obviamente não posso e não quero dizer “mulher nunca mais”. A questão: qual é o sujeito mulher que esta luta está tornando visível? Se é o sujeito mais oprimido ou a aliança dos sujeitos oprimidos para lá da identidade, é outra coisa.
Ou seja, para mim, um homem gay pode ser absolutamente um assunto do feminismo. É-o precisamente devido ao elevado índice de feminização, no sentido de que existem técnicas de opressão aplicadas ao corpo gay. Não estou interessado num feminismo que gaste 90% dos seus debates pensando sobre o assunto. Essa não é a questão, mas sim quais são as práticas de liberdade e como podemos opor-nos criticamente às tecnologias de violência que nos oprimem.
Caso contrário, entramos numa nova taxonomia no feminismo e numa espécie de polícia interna. Não só acontece com o feminismo, mas também no movimento trans com o bom e o mau transexual. No fim, acabamos numa obsessão de identidade. O que proponho é sair dessa identidade e começar a estabelecer alianças críticas.
Desde que habita o mundo dos homens “como se fosse homem”, provou que a classe masculina e heterossexual “não abandonará seus privilégios porque enviamos alguns tweets ou gritamos”. O que encontrou nesse outro lado?
É pior do que eu pensava. Eu vivi num ambiente totalmente feminista e estranho durante toda a minha vida, então tornar-me - entre aspas - “um homem” ou ter a aparência que tenho agora e sair para o espaço público para mim é um choque.
Por exemplo?
Por exemplo, o alto grau de misoginia. Homens - quero dizer principalmente homens heterossexuais - costumam falar sobre mulheres como se estivessem falando de uma subespécie, uma coisa muito rara que representa duas modalidades fantasmagóricas no seu pensamento: a mãe e a prostituta. Continuam a olhar para a mulher, ou o que o homem imagina que seja, como um espaço de reprodução ou como um objeto do seu próprio desejo sexual. Em algumas conversas, devo dizer: ‘há anos atrás, eu era a personagem de quem você está a falar que supostamente é um ser estranho’. E não. Esse ser é exatamente como vocês, não há diferença, exceto que tem sido objeto de um processo de opressão histórica há séculos.
Há um processo de mobilização em torno do feminismo que explodiu fortemente nos últimos dois anos, em Espanha, mas também noutras partes do mundo. Como observa isso?
Para aqueles de nós que trabalhamos no feminismo por uma vida, e que quando nos dizíamos ‘feminista’ era um insulto, ver agora como são as ruas e ver o que acontece num 8 de maio é um passo. É uma altura incrível. Acho que estamos vivendo uma revolução. Quando digo os tweets, quero dizer que estamos cientes e que temos uma estratégia coletiva de luta, porque isto é muito profundo. Devemos transformar todas as instituições, da escola, do espaço doméstico ou dos espaços de reprodução. É um projeto de transformação cultural e política, provavelmente o mais abrangente e profundo que pode ser imaginado juntamente com o desmantelamento de taxonomias raciais que continuam a estruturar todas as políticas de migração.
Qual seria o seu cartaz num 8Maio?
Por exemplo, um que vi em Paris que uma menina de 12 anos pegou e me pareceu lindo: “Salve o clitóris do planeta”. Achei muito interessante começar a pensar de maneira diferente sobre a luta ecológica e o que significa colocar esses vetores em relação, o ecológico e o feminista. Recentemente, fiz outro sobre a promoção de sexo anal e vibrador como estratégia para salvar o planeta. E é: “vamos parar a reprodução”. É importante criticar a produção e a reprodução. É por isso que também me oponho às políticas reprodutivas que tentam concluir o processo de normalização de tudo que é gay e lésbico. Por aí seriam os meus cartazes.
Entrevista por Marta Borraz e Ana Requena Aguilar publicada originalmente em eldiario.es em 11/10/2019