Para uma história do RAP em Portugal: referências em Portugal e as primeiras rappers mulheres
O homem prossegue assim na sua saga de humilhação/tratando a sua Maria como animal de estimação/ Djamal, «Revolução Agora», Abram Espaço, BMG 1997
Os primeiros grupos masculinos de RAP a gravar em Portugal inscreveram assuntos como o capitalismo vs as desigualdades sociais, a presença do corpo negro e do corpo imigrante na sociedade portuguesa do pós 25 de Abril de 1974, conquistaram ouvintes e estimularam outros jovens em condições de vida ou de afirmação social semelhantes numa fase primeira e, noutra posterior, um conjunto de jovens da mesma geração destes sujeitos sem uma relação aproximada a essas vivências ou experiências.
As primeiras rappers a gravar em Portugal introduziram um conjunto de outras questões relacionadas com a condição feminina, também aqui exercidas.
Escreveram e cantaram os seus guiões de vida, temas como o das desigualdades em função do género, o sexismo e até a violência doméstica, exercidos dentro de grupos racializados estiveram representados. Tal é evidente no disco deixado por Djamal Abram Espaço e nas letras dos temas “Abram Espaço” e “Revolução Agora”, mas também nos repertórios que não chegaram a ser editados discograficamente ou mesmo nas conversas mantidas com durante o meu trabalho de pesquisa (ver audiolivro RAPublicar, Editora Caleidoscópio 2017).
Entre a segunda metade da década de oitenta e a primeira metade da década de noventa do século XX, o RAP assumiu uma missão que outras práticas musicais não tinham representado até então na cultura popular urbana. Esta prática sonora e musical fez a reportagem das ruas e dos bairros, que os primeiros autores denominaram RAPortagem, alertando para aquilo que era um conjunto de problemas distintivo de uma primeira geração de filhos de imigrantes ou de afrodescendentes nascidos em Portugal, como o racismo, a exclusão social, a pobreza e a xenofobia.
A reprodução de um estilo «americanizado», no qual algumas realidades sociais retratadas se tocavam, própria de um RAP ainda em gestação, deu lugar a um recém-nascido RAP — específico, territorial —, que inscreveu a sua duplicidade nacional, as suas raízes, ou a natureza das suas lutas nas primeiras produções em forma de verso. Fê-lo de modo mais e menos claro, metafórico, ao fixar as suas músicas, nomeadamente as suas letras, ora nos quadros históricos onde permaneciam duras memórias colectivas, como os da Guerra Colonial e da Descolonização (Portukkkal é um Erro de General D, primeiro EP de RAP lançado em Portugal), ora no campo dos acontecimentos ou ocorrências provindos da vida no bairro ou, mesmo que na cidade, nas franjas mais vulnerabilizadas da, apelidada frequentemente pela imprensa portuguesa entre 1984 e 1998 de, segunda geração.
Em 1986, esta geração tinha entre os dez (o mais jovem) e os quinze anos de idade (o mais velho), os seus integrantes estudavam em escolas secundárias das periferias de Lisboa e aí tiveram as primeiras experiências musicais e trocas culturais. Na área metropolitana de Lisboa, onde o RAP arrancou, estas pessoas foram motivadas por um programa de rádio, Mercado Negro (1986 - 1987), com antena aberta apenas na capital, transmitido no extinto Correio da Manhã Rádio. Nesse ano formavam-se os B Boys Boxers, um grupo grande de entusiastas, mulheres e homens, da cultura hip-hop. Juntavam-se para improvisar, trocar cassetes, dançar e outros experimentaram os primeiros sprays e tintas nos murais de rua.
Em 1998, alguns dos que aqui iniciaram gravando pela primeira vez um disco de RAP em 1994 por uma multinacional, deram o seu último espectáculo para uma grande plateia, a da Expo 98.
São muitas as fontes que se posicionam consensualmente, quer quanto à década de nascimento do hip-hop, enquanto cultura e movimento urbanos, quer quando se trata de apontar um espaço geográfico para a sua origem — primeira metade da década de 1970 do século XX, nos Estados Unidos da América, especialmente o South Bronx, por via da figura de Afrika Bambaata, fundador do grupo The Zulu Nation, que, apesar de não ser o primeiro no género, tiraria o hip-hop da invisibilidade dos media.
Nos EUA, sobretudo na costa este, o RAP esteve representado por modelos sonoros, líricos e temáticos distintos. Prova disso foram os primeiros fonogramas com alcance, como Rapper’s Delight (1979) de Sugarhill Gang, a apelar à festa e diversão, que contrastava com How We Gonna Make The Black Nation Rise? anunciado por Brother D três anos depois (1982) ou The Message (1982) de Grandmaster Flash and The Furious Five, onde o teor de crítica social voltou a estar presente. Também eles foram referências para estes primeiros rappers portugueses, nomeadamente para alguns dos integrantes entrevistados dos grupos New Tribe, Family ou Zona Dread.
Trabalhos próximos de um RAP de protesto, contestatário, apareceriam pouco tempo depois na costa oeste americana: Captain Rapp, com o disco Bad Times I Can’t Stand It (Saturn 1983), foi disso exemplo. Várias correntes, com nomenclaturas aproximadas, se procuraram afirmar acabando por criar escolas diferentes, que foram sendo seguidas nas décadas posteriores um pouco por todo o mundo, com maior ênfase nas zonas suburbanas. Na Califórnia, por exemplo, nasceriam as etiquetas Gangsta rap ou Reality rap. Estas chancelas estiveram intimamente ligadas à edição de Six in The Morning (1986) do rapper Ice-T. Estes grupos foram transversalmente apreciados pelos rappers portugueses das décadas de oitenta e noventa do século passado.
De Planet Rock de Afrika Bambaataa (1982), e dos diálogos musicais aparentemente imprevisíveis estabelecidos entre o RAP e outros domínios sonoros e musicais, como o rock («Walk this Way», onde Run DMC aparece com Aerosmith, a título exemplificativo), fruto do impacto e interesse gerados o RAP abriu-se a um leque de diversidades e opções estilísticas que reforçou a sua missão.
Grupos grupos como Public Enemy (Takes a Nation of Millions to Hold Us Back. 1988, Fight the Power…Live! 1989), N.W.A ou Niggers With Attitude (Straght Outta Compton 1989), KRS-One (Criminal Minded 1987, By All Means Necessary 1988), transferiram o teor contestatário das ruas e uma crítica dura à sociedade branca americana para o RAP, e nele firmaram as bases ou os fundamentos que levaram às criação e explanação de um RAP que tornou visível as condições de vida das comunidades que o viram nascer.
Foram estes alguns dos modelos sonoros que inspiraram os rappers que emergiram em Portugal nos anos noventa como Boss AC e Cupid, Djoek Varela, General D, Chullage, New Tribe, Funky D, TWA, Da Weasel, Filhos de 1 Deus Menor, entre outros.
A misoginia, o sexo livre, a violência física e verbal e o consumo de drogas, num estilo que foi denominado de gangsta style ou gangsta rap, teve seguidores em Portugal no fim da década de 90, Makkas e Bambino, do Grupo Black Company, foram disso exemplo ao evocar também entre outros os rappers Tupac Shakur ou Snoop Dog.
As mulheres, como Roxanne Shanté (Roxanne’s Revenge 1984, Bad Sister 1989), o colectivo Salt-N-Pepa (Hot, Cool & Vicious 1986) ou Queen Latifah (Wrath of My Madness 1988, All Heil The Queen 1989.) acrescentaram ao mapa temático do RAP a questão do género e da condição feminina num meio onde, apesar da denúncia ao status quo e ao establishment, se descurou esse capítulo. A maioria das referências à imagem feminina surgem por via da sua objectificação, tanto em telediscos como no exercício da sua escrita musical de um modo mais e menos manifesto.
Foram justamente as propostas apresentadas por estas rappers no contexto americano que serviram de inspiração aos primeiros grupos de RAP femininos que gravaram em Portugal: Djamal e Divine.
Divine gravaria em dois discos de Black Company (Geração Rasca e Filhos da Rua ambos com a chancela da Sony Music) e Djamal em Abram Espaço com a chancela da BMG, tornando-se pioneiras não só nas ruas e na apresentação em diversos concertos, onde actuaram de 1989 a 1999, como na gravação discográfica, cujo grande marco foi a gravação de Abram Espaço de Djamal, a título próprio, em 1997.
Houve um conjunto de complexidades que resultou, por um lado, da natureza singular da «poesia RAP» nestes anos e, por outro, da natureza plural das protagonistas que integraram este domínio cultural.
Os caminhos e as narrativas apresentados pelas primeiras rappers a gravar demonstraram igualmente como a apresentação feminina neste universo cultural foi propagada de modo superficial, semi esconso, pelos media, ou seja remetida de um modo transversal para a ideia de um «fenómeno urbano pós-colonial» semelhante a outros ocorridos internacionalmente noutras capitais. Para além disso, a apresentação feminina foi também destituída dos significados das suas intervenções literárias e experiências locais, ou silenciada pelos próprios actores, e actrizes, desta cultura urbana, que foram chegando em anos seguintes ao seu surgimento, ou seja, a seguir aos primeiros doze anos que procuraram impor e fixar a ‘cultura hip-hop’ na indústria musical portuguesa.
Estas rappers, também elas descendentes na sua maioria de africanos a viver em Portugal, observaram e souberam interpretar as possíveis causas e os efeitos que levaram ao momento de ruptura dos respectivos grupos, e isso ficou claro nas entrevistas realizadas para o audiolivro.
Hoje, as abordagens sobre o papel das mulheres no RAP revelam uma continuidade histórica na diferenciação e organização concreta de actividades das mulheres neste campo cultural, ou mesmo ao modo como a participação e presença femininas no hip-hop e RAP são hoje representadas, deitando assim por terra uma retórica culturalista neo-hegemónica que despontou nos anos 2000, tentando imprimir o argumento de aproximação de percursos entre homens e mulheres. Exemplo disto último em Portugal é a presença de Capicua no universo discográfico, uma rapper do Porto, branca, nascida na década de oitenta, longe portanto da configuração temporal, espacial, social, histórica e mesmo económica aqui descrita com os primeiros grupos de mulheres.
Neste período histórico, tivemos um franco avanço na divulgação e ediçāo dos primeiros grupos de RAP em Portugal, mas o mesmo período histórico e político (cavaquismo) cultivou a ideia de que todos viviam muitíssimo bem, das classes baixas às médias baixas. Essa ideia de avanço não correspondeu, como se veio a verificar mais tarde, à realidade. Muitos destes grupos ficaram pelo caminho, sobretudo os/as que deram de si e se motivaram em função das promessas de “momentos auspiciosos” vividos por uma indústria cultural ainda convencional. O que foi “novo” na narrativa da cultura popular, hoje relevante, ficou asfixiado por um discurso “integracionista”, “cosmopolítico” superficial e bastante romantizado.
Falar de violência doméstica, sexismo e desigualdades em função do género dentro de grupos racializados na década de noventa, como o fizeram Djamal e Divine, e no fim da década de noventa Backwords, culminou efectivamente na sua sub-representação.
Com estas primeiras rappers – e, depois destas, outras rappers surgiram –, muitas delas não gravaram um disco ou tiveram a possibilidade de publicar em editoras com o alcance das etiquetas discográficas já mencionadas. Apesar de tudo, não deixaram de criar, até de gravar, sobretudo em circuitos independentes, e de promover encontros e propostas interessantes, mordazes, «politicamente incorrectas» dir-se-ia hoje, no seio dos seus itinerários socioculturais: Telma T-Von, com as Red Chikas, Backwords, ZJ Zuka que integrou o grupo Divine, ou alguns exemplos mais recentes como Dama Bete, Mynda Guevara, Eva RAP Diva ou Samantha Muleca, entre outras, são alguns exemplos.
Links úteis sobre o tema:
https://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/17695.pdf