Sobras roubadas da morte, por Claudia Nina

Tão caudalosa a viagem pelo mais sombrio interior de Moçambique em Rio dos bons sinais, de Nelson Saúte, que é preciso fôlego. Ainda bem que são contos, histórias bem curtas – fosse o livro um romance e o ar poderia até faltar. Não que o texto seja duro, pelo contrário. Narrativa limpa, enxuta, descrições na medida certa, um leve toque de humor, aqui e ali. Acontece que o tema frequente deste livro de 2007 (parte da coleção Ponta de lança da Língua Geral) são a morte e os funerais. Saúte não só espalha mortos às dezenas pelas cenas de suas histórias, com faz o passo a passo dos rituais fúnebres de sua terra, permeados por detalhes curiosos. Reza a tradição local, por exemplo, que haja uma bacia de água para que todos lavem as mãos. Ainda há, como escreve, “a cerimônia ulterior ao enterro, em casa do infortunado, para onde vão as pessoas. É a cerimônia do chá. Chama-se assim mas servem, muitas vezes, arroz e caril (curry)”.

A vida difícil, o cotidiano lascado. O pouco que sobra é roubado da morte. Tal o cenário em que Saúte se sente em casa com sua literatura. A vida “aflita e aturdida de quase todos nós, vida de desenrascanço” é o objeto mais caro ao escritor moçambicano para quem o código genético da sua geração está gravado os anos 80. “Moçambicano que se preze viveu nos anos 80. Quem sobreviveu nos anos 80 em Moçambique sobrevive a qualquer coisa…”, disse o autor, em entrevista ao poeta Ramon Mello, no blog Click (in) versos. Nem poderia ser diferente. Cantar a aldeia e revelar o que há nela de mais universal, eis o mantra. Um mapa-múndi que fica logo ali no quintal.

O autor rasga sua terra por dentro. As melhores histórias atam as pontas do livro – a primeira e a última já valem por si. “O viúvo do guarda-chuva amarelo”, a primeira, fala de um homem, o jovem Eufrigino dos Ídolos, que viu na infância sua mãe enxameada de sangue, ao ter a cabeça separada do corpo, e cresceu com pânico do convívio com os mortos, logo naquela família e na vizinhança, onde gente morria a toda hora - “Quando chegou à idade adulta e tinha que ir a um funeral, Eufrigino adotou um estratagema: levava consigo um guarda-chuva, assim estaria impedido de carregar a urna, aproximar-se do corpo, olhar para o rosto do morto”. As idiossincrasias de Eufrigino não param por aí, naturalmente. O último conto, que justifica o título do livro, é uma surpresa à parte, especialmente pela poesia sobrenatural que encerra.

Fantasmas sussurrantes, curandeiros, viúvas embrulhadas em infortúnios, homens em luto perpétuo, jovens suicidas, pessoas quase apodrecendo em vida e em morte, homens desencontrados e até gente sem sombra povoam as casas e ruas africanas nesta Moçambique escavada por Nelson Saúte. O livro é conciso, mas dentro dele cabe um mundo. São de fato rios de histórias afluentes que desembocam no mesmo oceano: a humanidade de todos nós. Saúte fala do cotidiano, sim, mas a condição humana é o foco central – coisa mais universal que a morte não há. E, claro está, ninguém escapa dos dois pólos da existência, a morte e as origens. Como escreve: “Podemos escapar do quotidiano, mas cedo somos confrontados pelo estigma do nome que nos deram”.

TRECHO
(A sombra vagabunda)

“- Estou a apodrecer vivo.
Olhei para trás e dei de chofre com o homem que pronunciara aquela frase. Mais do que uma pessoa, parecia o fiapo de uma extinguível sombra. Uma silhueta de si próprio, réstia de alguém que fora um ser humano. Olhei-o nos olhos. Olhei-o fixadamente. Tinha um olhar que encenava a sua própria tragédia. Um olhar que denunciava o estado do seu corpo já desfeito pelo tempo, não obstante a idade. Estava curvado e parecia levitar. Caminhava empurrado pela aragem. Com ele, havia a manhã de sol e algum frio naquele sábado findava. Tinha alguma luz naqueles olhos que acenavam à vida, que lhe fugia. Certamente”.

 

Rio dos bons sinais

Nelson Saúte

Língua Geral

 

 

Claudia Nina

 

Claudia Nina nasceu no Rio de Janeiro, onde mora. É autora de A palava usurpada (Editora da PUC-RS), sobre a obra de Clarice Lispector, tradução de sua tese de doutorado pela Universidade de Utrecht (Holanda), e de A literatura nos jornais (Summus). Sua produção infantil vai ser lançada em breve.

 

revista PESSOA

 

03.02.2011 | por martalanca