Construir uma parceria UE-África entre iguais
Cidade do Cabo – Este seria supostamente o ano em que a Europa e a África redefiniriam o seu relacionamento. Em Março, a Comissão Europeia desvendou a sua visão para uma “estratégia abrangente com África”, um pretendido pontapé inicial a um processo de consulta, que culminaria, na cimeira de Outubro entre a União Europeia e a União Africana, num acordo para um novo modelo de relacionamento que conferisse a África um poder significativamente maior. Depois, apareceu a COVID-19.
Mesmo sem a pandemia, o caminho para uma parceria mais robusta e mais igualitária entre a UE e África já teria sido difícil. Quando o ano começou, existiam tensões elevadas em muitas regiões do mundo, que criavam graves riscos geopolíticos e de segurança. Além disso, a rivalidade estratégica entre os Estados Unidos e a China tinha-se intensificado numa guerra comercial. O multilateralismo vacilava.
Embora estas condições fossem desafiantes, também encorajavam o progresso, ao sublinharem a evolução da importância destes interesses. A determinação de África era evidente: uma série de cimeiras e reuniões da UA indicou que o continente estava finalmente empenhado em implementar a Zona Continental Africana de Comércio Livre (AfCFTA, sigla da denominação em inglês), a reformar os órgãos regionais e a escolher um rumo mais ambicioso para o desenvolvimento. Estas iniciativas implicavam uma reformulação dos princípios de qualquer parceira com o continente.
A crise da COVID-19 sabotou os planos para engendrar essa reformulação com a Europa. Mas também sublinhou a sua necessidade, nomeadamente por ser a UE o principal parceiro comercial e de investimento de África.
A pandemia demonstrou as implicações práticas da desigualdade, revelou a dependência excessiva relativamente a cadeias de valor críticas em determinadas economias, especialmente a da China, e expôs as vulnerabilidades do sistema financeiro internacional. Também evidenciou os limites das actuais formas de cooperação global, mesmo diante de crises partilhadas.
Consequentemente, o desejo de “regressar à normalidade” dá cada vez mais lugar aos apelos a “reconstruir melhor”. A evolução no sentido do Acordo Verde Europeu reflecte a determinação dos legisladores em aproveitarem as perturbações actuais para promoção da verdadeira mudança. África deveria seguir o exemplo, começando por acelerar a implementação da AfCFTA.
Um mercado continental integrado poderia ter amortecido o choque da redução do comércio internacional durante a crise da COVID-19, salvaguardando empregos e sustentos. Em vez disso, África debate-se para reanimar as suas economias, apesar de ter sido significativamente menos afectada pelo vírus do que muitas outras zonas do mundo. Os líderes do continente têm de garantir que África estará preparada quando a próxima crise ocorrer.
Dado ser provável uma nova crise sanitária (os especialistas avisam que os riscos pandémicos estão a subir), isso significa, entre outras coisas, garantir o fornecimento estável de equipamento clínico essencial. As restrições iniciais às exportações de produtos clínicos e o mais recente “nacionalismo vacínico” evidenciado por alguns países demonstram a rapidez com que os países podem recorrer ao proteccionismo. Por conseguinte, é do interesse de África promover a promoção de produtos estratégicos e criar cadeias de valor robustas para produtos farmacêuticos e equipamentos clínicos no continente. A AfCFTA facilitaria estes esforços.
Mas a implementação da AfCFTA terá de ser acompanhada por um envolvimento internacional mais amplo, especialmente com a UE. Durante a crise da COVID-19, África necessitou de um alívio em larga escala da sua dívida e de acesso facilitado a liquidez, para que os países pudessem implementar medidas de apoio económico semelhantes às das economias avançadas. Não os conseguiu, pelo menos na medida necessária.
Evidentemente que não é ideal para os africanos assumirem que outros os devam socorrer. Mas isto não é uma opção: é um problema sistémico. Actualmente, alguns países africanos (especialmente os que dispõem de um espaço muito limitado para a política monetária) precisam de apoio externo, especialmente do Fundo Monetário Internacional, para poderem responder a choques exógenos. A UE pode e deve desempenhar aqui um papel essencial.
Esta cooperação deve ir além dos imperativos de curto prazo e abordar desafios estruturais de médio e longo prazo. Por exemplo, embora o alívio da dívida seja importante, e a insistência de vários países do G20 nesse sentido seja bem-vinda, não será suficiente para redinamizar as economias africanas. Repensar as abordagens de financiamento ao investimento em infra-estruturas, para apoio da implementação da AfCFTA, teria maior impacto no longo prazo.
A construção de uma parceria mais forte e mais estratégica com África também obrigará os países da UE a abandonarem a sua obsessão com a “ameaça” das migrações e a reconhecerem a importância estratégica do continente. Um debate sincero sobre a expansão das vias judiciais para garantir a mobilidade, nomeadamente as migrações circulares, seria benéfico.
A ideia de voltar ao “normal” depois da crise da COVID-19 poderá ainda tentar muitas pessoas. Mas, no que respeita ao relacionamento entre a UE e África, isso não é opção. A parceria tem de ser repensada e reformulada. Para tal, ambas as partes têm de abandonar a abordagem desequilibrada e fragmentada do passado, e colaborar no sentido da criação de um mecanismo eficaz de governação conjunta.
Na próxima “mini-cimeira”, os líderes da UE e da UA dispõem de uma oportunidade ideal para catalisar este processo. Quando a verdadeira cimeira ocorrer no próximo ano, deverão ser capazes de apresentar uma visão clara de uma parceria adequada ao século XXI.
Artigo originalmente publicado em Project Syndicate a 04/12/2020