Escrever uma contra-geografia

Barcos que capotam, imigrantes clandestinos que colapsam nos litorais europeus: é através deste género de imagens dramáticas que as fronteiras do sul da Europa aparecem nos telejornais. Os media acreditam que isto comunica a essência da “fronteira” de forma mais concisa e mais comovente. No entanto, nenhuma imagem destes dramas pode contar ou circunscrever a história infindável da integração e da exclusão. O acontecimento da passagem não pode reduzir-se a um ícone de violência: só a multiplicidade de passagens, as suas diversas encarnações, as suas motivações e as suas articulações podem dá-lo a conhecer. Em vez de se focalizar na simples passagem ilegal de uma linha, o facto de expor as transacções económicas transnacionais, difusas e semi-legais, que escondem as múltiplas deslocações nas regiões fronteiriças, permitem-nos compreender melhor o próprio sítio e o lugar central que ocupam as travessias clandestinas nesta questão. Paralelamente, situa o acontecimento num quadro narrativo susceptível de transcender as representações que os media lhe conferem, em particular nas informações.

A aliança vídeo / teoria pode redefinir de forma eficaz o género documentário. Existe incontestavelmente uma convergência entre a análise teórica da globalização, o estudo etnográfico da situação concreta de mulheres nas regiões em crise e o carácter abstracto das representações tecnológicas, sem esquecer a crítica desta forma de visualização que leva à hegemonia. Estes são formulações e parâmetros necessários à leitura das minhas obras.

No meu trabalho de artista e de comissária de exposições, sempre me interessei pela transformação do espaço produzida pelas deslocações das pessoas, com o objectivo de compreender como as trajectórias dos seres humanos, as suas bases de migração e os seus itinerários de viagem constituíram paisagens socioculturais específicas, e como esta experiência acaba por se inscrever no terreno concreto. A fim de visualizar estes processos, o estudo da geografia e das migrações é acompanhado pelo progresso constante de novas tecnologias da imagem, daí deriva que a representação das deslocações geográficas deve ser explorada paralelamente nos domínios físico/concreto e electrónico/tecnológico.
Escrever contra-geografias
No centro destas reflexões, situa-se a questão de saber como posso, enquanto artista, inserir-me nestas imagens ao actualizar diversos processos e ao traçar uma espécie de contra-geografia na qual as paisagens electrónicas e sociais se recortam. Neste contexto, a geografia é considerada simultaneamente um instrumento teórico que permite reexaminar as relações espaço-sujeito-movimento, e uma prática cultural, um meio simbólico de redefinir espaço.

A questão central é a de saber a que universos visuais se deve este processo, que impacto visam estas imagens, e que promessas querem satisfazer.

(…)
Gerar espaços de mediação simbólicos

Todos os meus vídeos tratam explicitamente de assuntos que não são intrinsecamente artísticos. Exprimem formas estéticas e teóricas mais próximas do ensaio do que do documentário. A prática do ensaio implica uma intensa reflexão sobre si (auto-reflexivo na relação da produção da imagem, não de mim como artista), pois não cessa de interrogar o acto de criação de imagens e de produção de sentido. É conscientemente que se livra da actividade da representação. Tendo em conta estas características, o ensaio presta-se particularmente ao estudo das relações complexas. A abordagem do ensaísta não consiste em documentar factos reais, mas em dar ordem à complexidade. O vídeo rentabiliza esta qualidade, pois deve reagir simultaneamente a um ambiente mediático sempre em mudança e a uma sociedade de crescente complexidade; para explicar isto, a simples representação de realidades visíveis já não é suficiente. O ensaio permite captar os processos quase intangíveis e abstractos das mutações sociais e culturais. O ensaio presta-se então perfeitamente à exploração dos processos de globalização: as leituras literal e metafórica do termo “transnacional” encontram-se em inúmeros pontos.
Tal como o próprio facto transnacional, o ensaio pratica a deslocação, cruza as fronteiras e os continentes, reúne lugares díspares graças à sua lógica particular. No ensaio, uma voz que transcende a narração amontoa os diversos elementos num feixe de reflexões que obedecem a uma lógica subjectiva. A voz do autor, do “narrador”, é claramente situada, exprime um ponto de vista muito pessoal, o da mulher migrante, ou o de um trabalhador branco – que a distingue da voz do documentarista ou do cientista. A narração é portanto situada em termos de identificação, sem ser no entanto localizada no sentido geográfico do termo. É a voz “translocal” de um sujeito móvel, itinerante, que não pertence ao lugar que descreve, mas que o conhece suficientemente bem para lhe deslindar diversos extractos de significação. Reunir informação e factos não apresenta em si nada de interessante: o ensaísta não pensa que a realidade é representável. Visa antes uma reflexão sobre o mundo e sobre a ordem social, fazendo-o ao integrar os materiais num campo de relações específico. Por outras palavras, a abordagem do ensaísta não consiste em documentar factos concretos, mas em organizar a complexidade. Ela é caracterizada por um movimento de pensamento não-linear e não-lógico, alimentando-se de diversos domínios de conhecimento.
Sendo a minha obra fundada na hipótese de o espaço geográfico ser, em última análise, constituído pela deslocação das pessoas, parece apropriado examinar o papel do corpo tanto da zona transnacional como no espaço do ensaio. Na tradição do documentário, a realidade é inseparável do corpo; a câmara segue o corpo que vive várias situações, o actor social – e, neste sentido, trata-se de um corpo histórico. Na ficção, o corpo representa uma personagem que é objecto de um relato, é um corpo contado. No ensaio, os corpos não são instrumentalizados de nenhuma destas maneiras, não exercem uma função representativa. Pelo contrário, os corpos do ensaísta contribuem para construir outros objectos – neste caso, fronteiras.
Os meus vídeos são inclusive apresentados e analisados em contextos militantes, universitários e artísticos. É de facto desejável que os vídeos invistam nestes diversos espaços, pois operam uma síntese de dados saídos de vários campos de conhecimento. Aquando das discussões em contextos público ou pedagógico, é impressionante constatar a que ponto os objectivos políticos e artísticos são confundidos. E, qualquer que seja o contexto, acaba quase sempre por se pôr a questão da eficácia de um vídeo. Talvez seja devido ao facto de que tratar este assunto - apesar da apresentação distanciada e (abordagem estrutural aos problemas) própria ao vídeo - ajuda a ganhar consciência das injustiças sociais às quais eu não posso trazer soluções.

Esta atitude explicar-se-á pela prática corrente dos documentários e das reportagens jornalísticas, que desejam que uma problemática social seja exposta por intermédio de um destino específico, de um sofrimento individual tornado mais perceptível. Este processo, que almeja suscitar a comiseração, parece-se extremamente suspeito, porque produz um estímulo emocional muito próximo do voyeurismo, que não leva a nada do ponto de vista político e nem sequer a uma mediação (ou seja, habilidade para agir?). No entanto, e talvez precisamente porque não é utilizada no vídeo, a necessidade deste estímulo emocional transparece nas expectativas do público. A frustração suscita uma reacção particular: como o vídeo não é capaz de mudar as condições de vida inaceitáveis é, por consequência, desadequado. Percebe-se pelas perguntas do público que o vídeo deveria ser exibido nos lugares onde era preciso que as coisas mudassem, e que devia contribuir para esta mudança.

Existem certamente inúmeras ONG’s bem organizadas e que dispõem de uma rede global, que estão particularmente bem posicionadas para obter mudanças tanto sociais como legislativas. Tal não é de todo o objecto da minha intervenção. A minha prática estética visa gerar um espaço de mediação diferente, ainda que aconteça muitas vezes as ong’s utilizarem os meus vídeos para fins de lobby e de relações públicas. Decidi agir na esfera simbólica, o objectivo não é mudar o mundo, mas mudar o discurso em relação ao mundo. Qualquer que ele seja, as questões do público marcam muitas vezes o momento no qual me sinto enfim confiante que o projecto atingiu o seu objectivo, a saber, contribui para a tomada de consciência da nossa própria responsabilidade nos fenómenos globais. No meu trabalho artístico e textual, esforço-me o mais possível para clarificar a correlação entre as sociedades de alta tecnologia e o surgimento de condições de vida precárias. Um dos meus principais objectivos é dar a conhecer que as causas e as soluções não estão sempre “noutros lados”.

Ver “The Transnational Video”, em: Ursula Biemann (éd.), Stuff It - the video essay in the digital age,
Voldemeer/Springer,Vienne et New York, 2003.
Europlex, Ursula Biemann & Angela Sanders, 20 min., 2003

 

versão francesa publicado em: Appel à témoin, Le Quartier, Centre pour l’art contemporain, Quimper, 2003 e aqui

versão portuguesa publicada na revista Jogos Sem Fronteiras

 

Translation:  Marta Lança

por Ursula Biemann
Jogos Sem Fronteiras | 27 Junho 2010 | corpo, documentário, ensaio, fronteiras, migração, tecnologia, vídeo