A Mãe
A biblioteca da sala era composta por cinco livros: Eva e a África (?), Portugal Amordaçado (Mário Soares) , O Barão Trepador (Italo Calvino), Lady L (Romain Gary) e a Bíblia Sagrada. À direita ficavam os três álbuns de família; no lado esquerdo os pisa-papéis de água, com a Ópera de Sidney dentro, e as fotografias da família nas molduras e nos fundos da faiança, mandada gravar em Yokohama, por familiares embarcados, sinal de que haviam tocado um porto japonês (o Japão e o golfo Pérsico como última fronteira para os marinheiros crioulos).
Os dias mais cinzentos pareciam ser os preferidos para pôr a correspondência em dia. Finais de tarde mergulhados numa penumbra fresca e sinuosa, que entrava pela janela das traseiras da sala de jantar. Quando o dia se rendia, ela dirigia-se para a biblioteca, retirava os cinco livros do lugar, e colocava-os, como objectos raros, ao lado da folha da carta. Ele observava da porta e escutava o som daquela esferográfica desenhando, parcimoniosamente, as letras no papel. Aproximava-se e espreitava-lhe por cima do ombro. Os pontos e os traços bem vincados; a harmoniosa caligrafia seguindo os lábios que soletravam o raciocínio, sob o rosto pálido e solene.
A noite chegava sem que ela desse conta e só interrompia a escrita quando a penumbra na sala tornava a sua missão quase impossível. Não eram religiosos. Aquele era talvez o momento de maior espiritualidade de que ele se lembrava de terem lá em casa. Os livros dando à sua mãe aquela aura monástica e letrada, apesar da lentidão com que avançava pelas linhas de cada folha.
Um dia, anos mais tarde, duvidou que ela fosse assim tão letrada. Descobriu que, afinal, usava as páginas dos livros como gavetas para os selos das cartas. Eva e a África continha os selos para a Europa; Portugal Amordaçado os do Brasil, e Lady L os selos para Cabo Verde. Aquela foi também uma tarde muito especial para ele: o dia em que escreveu a sua primeira palavra. “Para”. Ela levantou os olhos por cima dos óculos, como se fosse algo bastante natural, e voltou para a sua carta.
Nunca soube se ela chegou a descobrir as personagens e toda a vida contida naquelas páginas, ou se continuou vendo nos livros apenas gavetas para selos. Não que estes não proporcionassem também um fluxo de vida, quando o ritmo do tempo ainda era benevolente para com as pessoas e tudo parecia ser mais tangível. Uma das destinatárias era uma velha amiga de infância da mãe. Terão convivido na Lisboa dos anos sessenta, dançado no Sanzala, no Campo Grande, e passeado por Faro – para onde a mãe foi trabalhar - e foram, certamente, ver as amendoeiras em flor e os mercados de Olhão. Era fácil imaginá-la de colar de contas ao pescoço, gabardine e lenço na cabeça, passeando-se pelas praias e as serras algarvias. Ela acabou por se instalar definitivamente em Lisboa e a amiga seguiu o seu caminho para os Estados Unidos. Durante mais de quarenta anos, as cartas da sua mãe continuaram a resumir o enfado e a gratidão, os nascimentos, as mortes, os filhos, os netos, num vaivém entre as duas margens do Atlântico, como se o tempo as tivesse envolvido numa especial redoma de vidro e nada mais importasse. Há amizades que caminham largamente pela vida assim: uma foto desbotada de vez enquando, uma carta esporádica, a voz enrouquecendo em chamadas internacionais. O elogio da fragilidade.
Mas, cartas houve de que ele não poderia ter tido conhecimento prévio. Certo dia a mãe levou-o ao quarto, abriu o armário e pegou numa caixa de papelão. Retirou umas cartas antigas enroladas com um elástico, mas elas voltaram a enrolar-se, uma e outra vez, de tão antigas que eram e dos anos passados naquela posição e ficaram ali naquilo, até que ela colocou sobre cada uma que lhe mostrava um peso em cada canto. Tudo aquilo devia ser muito importante, pensou, pela forma como a mãe lhas mostrava e lhe lia o seu conteúdo. Finalmente compreendeu. Tinham sido escritas pelo homem que tinha sido o seu pai, e de imediato esta ideia acordou nele a figura abstracta, sem rosto nem voz, que habitava os confins da sua imaginação, e que só muito distraidamente merecia a sua atenção. E ela falava-lhe dele e daquelas cartas como se fossem a prova vital de alguma coisa que lhe continuava a escapar ao seu entendimento. Tinha apenas doze anos e talvez fosse por essa razão que ele não conseguia compreender tudo o que ela lhe dizia e muito menos porque lhe estava a contar todas aquelas coisas que lhe eram perfeitamente remotas. Ele disse sempre que sim a tudo, mesmo quando não compreendia, adivinhando que era isso que ela esperava que ele dissesse. Mas o mais longe que a sua memória podia recuar, nos seus poucos anos de vida, era a um tempo que tinha o aroma a mangas verdes e a melaço de cana. E aonde não constava nenhuma lembrança do homem sem forma e sem cara.
Tinham deixado as ilhas, eram os finais de sessenta, igual a milhões de outros peregrinos que aspiram tão-somente a sobreviver, pensando que do outro lado do mar se respira melhor o perfume do bem-estar. Mas, na verdade, nunca deixaram as ilhas. Perderam foi um tempo de boas águas, como se diz nas ilhas. Chuvas bem-ditas. Perde-se sempre qualquer coisa quando se abandona o pátio da infância. O perfil sinuoso da montanha: cavalos, monstros, mulheres de lenço na cabeça. Vozes que desciam a encosta arrastando pela trela alimárias teimosas. Mas o tempo nunca lhes pertenceu. Passou por eles, como uma estival e densa onda de calor, e nele viram florir os campos em volta: flores, espinhos, regos de água desprendendo-se de diques, pela madrugada, e amaciando as pedras à sua passagem. A ilha fingia que se deslocava e o aroma adocicado da inocência parecia descer directamente dos montes em castelo que protegiam o vale e os seus habitantes. Partiram. E para trás ficou, por entre a antiga levada e as paredes arruinadas da velha casa da família, um parente esquecido, o único que, por sinal, não podia viajar com eles: um velho pé de tamarindo.
Alguém disse que há uma árvore no imaginário de cada um. A qual delas se referiam? À do pecado original ou às outras, as da Natureza? É uma ideia feliz: uma árvore em cada um de nós. Bosque pessoal encantado. Mas eles haviam deixado para trás a sua árvore, aquela que lhes coubera - abandonada, na companhia das pedras e do vento. Ao longo da sua vida muitas vezes pensou nela. Dera-se conta de que nunca subira nos seus ramos, talvez porque na época ele fosse demasiado criança. Fosse como fosse, seria como escalar os ombros de um primo, de um tio ou um irmão.
A árvore não podia ler. A irmã-de-criação da sua mãe, dez anos mais velha do que ela, também não sabia ler. Não receberiam cartas com as novidades do outro lado do mar, onde o mundo tinha mais mundo. A sua tia-de-criação morrera, muito antes de ele nascer. Um grau de parentesco tão raro que chegava a ser necessário uma fome de grandes proporções para o promover. Já ninguém fala destas coisas, não há mais irmãos de criação, famílias entregando os seus filhos para outras famílias menos pobres poderem alimentar, vestir e tratar como suas. As leis da adopção afectiva nunca foram codificadas. As pessoas, as coisas, costuma-se dizer, só morrem verdadeiramente quando se apaga a última lembrança que se tem delas. Significa que as árvores podem viver também muitas gerações, mesmo depois de tombarem por terra.
Muitos anos depois ele visitou a velha casa. Sentou-se diante da tambarina por breves instantes, tentando reconhecer alguma lasca ou sinal do tempo de criança, e deu-se conta de que aquele era um dos momentos mais aguardados de toda a sua existência. Olhou em volta para o que restava do seu universo encantado, o terreno das suas descobertas, e viu como o deserto havia destruído quase tudo, como um fogo invisível, cremando tudo à sua passagem. Do outro lado do vale via-se perfeitamente a encosta ressequida da montanha, o caminho serpenteando as poucas árvores e o tanque de rega dos mergulhos e das tardes de brincadeira. Entre a casa e o tanque de rega, onde antes existiram mangueiras frondosas e outras árvores enormes, ficava agora um chão triste e desolador, onde agonizavam cadáveres de coqueiros, goiabeiras e palmeiras. O deserto também expulsara a maior parte dos habitantes do vale. Noutras paragens, um homem consegue ver a sua família aumentando, as gerações sucedendo-se, os seus genes espalham-se pela sua terra; os filhos dos irmãos, os filhos dos sobrinhos, os primos e os tios envelhecendo.
A seca sempre fizera parte do quotidiano das ilhas, arruinando culturas e vidas ao longo da sua história. Mas depois chegavam as chuvas e tudo voltava a recompor-se. Porém, a partir dos anos sessenta a época das chuvas quase desapareceu do calendário dos agricultores, levando a maior parte a emigrar. O agricultor humilde, na sua sã ignorância, não compreende esta mudança e interpreta este fenómeno como sendo algo natural, mas todos os anos volta a semear e a ter esperança numa boa colheita. E tudo se repete uma vez mais. Vê os campos a definharem, aceitando resignado a sua impotência face aos elementos. Não poderá compreender que o fenómeno não é tão natural como parece, nem nunca saberá que o que o impede de ter um bom ano agrícola tem origem nas mudanças climáticas dos últimos cinquenta anos, na alteração do ritmo das monções do continente africano. E que essas mudanças, em parte, estão directamente ligadas a uma alteração da composição das nuvens, pelos níveis elevados de dióxido de carbono produzido na Europa, nos Estados Unidos e no Sudeste Asiático. O pobre agricultor pensa que é a única vítima desta ingratidão dos céus e não compreende porque razão os seus netos não podem viver numa terra mais farta, mais verde, como ele viu em criança. Não sabe que do outro lado do mar, a centenas de milhas dali, entrando pelo continente adentro, são milhões de pessoas na mesma situação. E todas ignoram que não é aos deuses a quem devem pedir explicações.
A mãe ainda tinha muitos amigos dessa época de abundância e era capaz de atravessar o país para uma boa tarde de prosa à moda antiga. Alguns cultivavam legumes e árvores de fruto em pequenos quintais, talvez para manterem a tradição e o contacto com a terra. Referia-se a esses condiscípulos octogenários por aquele rapaz… aquele rapaz que morava em…. Ao longo de mais de quatro décadas, manteve um contacto estreito com um desses rapazes, que a colocava a par do estado na ilha, das colheitas, do vale e da casa velha. Mas mesmo ela sente que alguma coisa mudou, que também acabou por criar raízes novas nesta terra onde lhe nasceram filhos e netos. Sente a falta da ilha, sem dúvida. Mas talvez goste mais desta sensação de desejo, de viver esse momento de memória, o prazer das coisas lembradas, do que propriamente viver na ilha. Nas suas deambulações oníricas, percorre os montes e todos os caminhos que passam pelos poços de água, pelas plantações de mandioca e cana da Fajã, pelas velhas propriedades da família engolidas pelo deserto, os picos das montanhas. Exausta. Mas um mês depois de chegar à ilha, o telefone toca em Lisboa, prevenindo todos de que está de regresso.
Certa vez, ocorreu-lhe um pensamento: talvez ela fosse feliz em Cabo Verde vivendo em Lisboa - no Bairro da Cova da Moura, por exemplo, junto dos que descobriram a fórmula exacta para essa feliz ubiquidade. De facto, também ela tentara viver nesse limbo dos eleitos. Nos anos oitenta, quando o país era um vasto campo de experiências sociais, comprou uma barraca vetusta por quinze contos, no Alto de Santa Catarina, um bairro clandestino de emigrantes cabo-verdianos. Comprou assim, sem assinar papéis nem imprimir carimbos. A ideia até nem era má, tendo em conta a vista soberba sobre o Bugio e o estuário do Tejo. Foi uma digna tentativa para obter o melhor dos dois mundos, como qualquer bichinho-de-conta teria feito.
Todos sabiam que era uma questão de tempo até serem expulsos da colina fantástica, mas deixavam-se enganar, com a mesma serenidade e esperança que anima os habitantes da Chã das Caldeiras, na ilha do Fogo, confiantes de que o vulcão não os molestará mais do que o sopro de um vento de Leste. É claro que os proprietários esperavam apenas uma alta do negócio imobiliário para mandar avançar as máquinas. Mesmo assim, e durante alguns anos, a ilha no cimo da colina florescia sempre mais alguns metros, logo depois jantar, quando pedreiros e serventes, à luz da Lua, subiam paredes, cimentavam passeios e alinhavam ruas estreitas.
Conheceu o bairro, pela primeira vez, durante uma espécie de visita turística familiar, em alegre romaria, com parentes vindos da longínqua Outra Banda. Era um desses domingos solarengos que fazem reluzir melhor os cromados dos automóveis. Tomaram o eléctrico rumo a Cruz Quebrada, com toda a gente contente e a falar alto. Almoçaram modge , à moda da terra, de uma panela de ferro de três pernas, e saíram a cumprimentar velhos amigos e compadres. Essa foi a sua primeira experiência dessa luso-tropical utopia. E quando ela lhes deu a notícia da barraca toda a gente ficou mais ou menos contente com a perspectiva de uma segunda habitação de férias, ainda que modesta e pequena, é verdade – só contava uma única divisão -, mas com um terreno simpático em volta. Logo que tomou posse do imóvel ela olhou em volta e sugeriu que se devia plantar ali qualquer coisa. Milho, naturalmente. A casa precisava de obras, alguém se lembrou de dizer. Chegaram os mesmos pedreiros e serventes com colheres e prumos, cercaram o terreno, demarcaram os limites do seu domínio, e nos olhos da mãe ele viu surgir uma felicidade antiga. Tão antiga que o mar do Bugio lhe terá parecido o Mar de Catchorr, na costa Norte da ilha de São Nicolau, onde, em criança, ela vira despontar submarinos alemães no horizonte. Terão mesmo chegado a comprar um cão de guarda, ou seria uma cadela? Como era de esperar, ela fez de imediato amizades na nova vizinhança, com a mesma naturalidade e deferência como teria acontecido num Cabo Verde de verdade.
Durante algum tempo os fins-de-semana tiveram sempre o mesmo destino. Mesmo o primo mais velho, burguês e letrado, de camisas lacoste e pulôveres de losangos, era incapaz de negar uma almoçarada junto dos nativos parentes, seguida de uma sesta, pela tarde fora. Na altura pareceu a todos perfeitamente normal que uma família de emigrantes cabo-verdianos, razoavelmente instalada num quarto andar de um prédio mais novo do que velho, num bairro normal povoado por gente das Beiras e dos Alentejos, se decidisse em cruzar a cidade de Lisboa para passar os fins-de-semana, cercado de seus patrícios, numa divisão com chão de cimento frio de uma barraca de zinco e caiada de branco, construída sem lei nem fundações. A verdade é que essa foi uma época de grande encantamento e paz que a sua mãe não tinha desde o tempo das águas jovens, das manhãs de bruma e dos risos navegáveis.
Uma Ilha no Tecto do Mundo, A Ilha do Tesouro, A Ilha Encantada, A Ilha do Diabo, A Ilha Negra. Livros, histórias sobre rincões solarengos ou infestados de escorpiões e de outros perigos espreitando na bruma. Em a História Interminável, uma ilha rochosa, por sinal muito familiar, atravessava as nuvens, deslocando-se pelo céu como um disco voador. A sua ilha viajava com eles para qualquer parte e era amiúde invocada, como um mito da criação tribal, em volta da mesa do jantar. Os nativos têm os seus totens, os seus campos de pastagem e os seus rios de águas abundantes. Eles tinham um pé de tamarindo, uma casa em ruínas e uma ilha condenada pela seca. Mas eram fiéis ao seu território primordial.
Finalmente, um dia as máquinas ligaram os motores e fizeram surgir no alto da utópica colina um condomínio fechado, uma ilha nova em cimento e betão, para a classe média-alta portuguesa. E as sombras, cabisbaixas, pegaram nos filhos e nas suas trouxas e procuraram asilo e consolo junto de familiares mais ou menos remediados, nos concelhos em volta. Os mais sortudos foram realojados, mas as chaves das novas casas não chegavam para todas as mãos. A ilha grande, no topo da colina, estilhaçou-se em centenas de outras que se espalhariam pelos prédios dos bairros da Grande Lisboa. Mas por essa altura, e talvez antecipando o irremediável, a barraca caiada de branco e tecto de zinco já havia sido vendida com razoável lucro. E assim foi o fim da ilha do Alto de Santa Catarina.
Aos treze anos fizeram uma viagem pelo Norte do país: ele, a mãe e um casal de vizinhos reformados encantadores, num velho Opel Taunus castanho, para irem conhecer o homem que tinha sido o seu pai. Pararam no meio de pinhais para ele urinar e curar o enjoo das curvas. Passaram a noite numa pensão húmida e bafienta, numa rua de chão empedrado, em Cabeceiras de Basto, e no dia seguinte o carro subiu serras e desceu vales, até que parou num cruzamento e esperaram dentro do carro, enquanto o vizinho foi procurar a pessoa indicada no endereço. Daí a poucos minutos ele viu que ele voltava pela mesma estrada na companhia de um sujeito alto, de membros compridos e de barrete na cabeça, logo seguidos por uma mulher vestida de preto, baixa, que arrastava, apressadamente, os pés nuns chinelos gastos. O homem que a sua mãe dissera ser o seu pai - um homem branco, português do Norte, inconfundivelmente labrego - , olhava-os através da janela do carro, talvez ainda incrédulo por aquela aparição vinda do Sul e do fundo do seu passado. Aqueles estranhos que tinham viajado desde a capital para lhe pregarem um susto daqueles, mas que na verdade não podiam ser assim tão estranhos, essa mulher mestiça e aquele garoto, pois que num outro tempo terão ocupado o centro das suas preocupações.
Aos treze anos não se tem muito para dizer; espera-se é que as pessoas digam as coisas, façam as perguntas, que tenham a iniciativa, que ajudem a quebrar a púbere timidez. Não lhe cabia dizer o que quer que fosse, nem olhar fixamente quem quer que fosse. Entre a forçada simpatia e a estupefacção, o tempo como que se cristalizou, deixando no ar uma insuportável tensão.
O silêncio durou breves instantes. A velha mulher de preto tentava perceber o que se estava ali a passar, que pessoas estranhas eram aquelas, que rapaz era aquele dentro do carro que parecia ser o centro daquele inusitado acontecimento, que viera perturbar a sua manhã de sábado. Enfiado no banco de trás do velho Taunus, e do meio de uma aparente indiferença, ele sentiu tudo isto e mais qualquer coisa no olhar desconfortável da mulher de preto - um misto de surpresa e recusa em aceitar evidência daquela situação. Nisto, ela terá balbuciado alguma coisa do tipo os senhores estão enganados, o meu marido não conhece nenhuma dessas pessoas que estão aí dentro desse carro, é um enorme equívoco, por isso não nos façam perder mais tempo, que temos as obras da casa para terminar. E assim foi. Ela pegou pela mão o homem que a sua mãe minutos antes lhe apresentara como sendo seu pai e arrastou-o dali, metendo-se de novo pela estrada de terra, antes que fosse tarde e a situação voltasse a escapar-lhe. E lá foram à sua vida, ela arrastando os chinelos salpicados de cimento e ele olhando de vez em quando para trás, perguntado-se, talvez, se aquilo a que acabava de assistir tinha mesmo acontecido.
Desceram a estrada rumo ao Sul. O vizinho ligou o rádio do carro e a Petite Demoiselle, de Art Sullivan, ajudou a trazer de volta os espíritos e o vento nas janelas acabou por secar o resto das lágrimas. Ele já só pensava nas três mesas de bilhar do café do bairro e no torneio que iria ter início na segunda feira seguinte. O homem que a sua mãe lhe apresentara como sendo seu pai não era agora mais do que uma sombra, seguida de uma mulher de preto, até desaparecer por completo na curva da estrada, à espera de encontrar um canto na sua memória futura.
Quinze anos depois, ela era guitarrista num conjunto musical, em tournée pela região, e não resistiu em fazer um desvio para saber notícias do homem que a sua mãe lhe apresentara, anos antes, como sendo seu pai. Encontraram-se num café. Olharam-se mais do que falaram. Mais curiosidade do que fascínio. A curiosidade de dois homens, dois adultos, tão iguais e tão diferentes entre si. Um colega disse-lhe que era como se estivesse a ver a sua imagem futura, como ele haveria de ser dali a quatro décadas. Mas a desilusão foi imediata. Havia qualquer coisa que não estava a funcionar. Julgara poder passar uma agradável hora que fosse na companhia daquela figura que era a sua sombra envelhecida. Mas minutos depois ele já não via qualquer razão para ficarem ali diante um do outro. Não havia nenhum assunto para falar, nada para recordar. Apenas comentários soltos e hesitantes, as suas presenças forçadas, o olhar procurando auxílio pelos cantos do café. Apesar dos mesmos gestos, da mesma maneira de andar, do mesmo olhar e dos mesmos ombros curvados, já não eram parentes de verdade. Eram forma sem substância. Mas nada disse à mãe, guardando segredo, evitando feri-la com esta evocação pálida do homem que ela lhe apresentara como sendo seu pai e a quem ela amara mais do que a qualquer outro na vida, ainda que, ao todo, não tivessem passado mais do que alguns meses juntos.
Entretanto, os anos foram passando e ele viu a família a crescer. Na ilha, os mais velhos, os do conhecimento antigo, dos valores eternos e das sábias profecias, invocadas à mesa da cozinha, envelheceram e secaram como as velhas mangueiras em volta da casa velha. Morreram nas ilhas, entrando pela terra adentro, levando consigo os velhos vocábulos da língua crioula e toda a instrução do mundo e a memória das águas. Os seus espíritos, as suas vozes, circulam por entre as ruínas dos recantos abandonados, soprados no vento, subindo as rochas, perdendo-se nas névoas. Que haveriam eles de pensar deste novo mundo? Agora a família estava a mudar. Tinha novas caras, novas falas, outras pronúncias, outros modos, novas gerações nascidas na Europa, para quem a sabedoria dos antigos, amiúde invocada pela avó mestiça à mesa do jantar, não era merecedora sequer de um segundo da sua atenção.
Agora ele tinha a mesma idade da mãe quando ela o levou ao Norte a conhecer o homem que era o seu pai, e o seu único filho tinha a mesma idade que ele tinha. Ela ligara-lhe uma manhã bem cedo para o escritório, pedindo se ele não poderia passar lá por casa que tinha um assunto para lhe falar. A frase fora dita de forma lenta e articulada com um inabitual cuidado, como se ela receasse não ser compreendida. O lá por casa tinha um sentido ambíguo, sempre que ela o dizia, e acentuou-se ainda mais depois de ele e os irmãos terem casado e arranjado as suas famílias. Era como se ela dissesse lá pela casa que foi nossa, de nós todos, mas que agora é quase só minha, habitada por esta solidão. A casa aonde agora tu e os teus irmãos demoram mais em visitar, mesmo se esta demora não é mais do que a expressão da minha urgência de viver. Lá pela casa que antes foi cheia e festiva e que agora é silenciosa, bafienta e sombria, em que a visita de um de vós é um raio de sol na minha face.
O assunto era delicado, disse-lhe, e foi directa e fluente: o homem que ela lhe apresentara como seu pai estava a morrer. Como soubera ela? Recebera aquele mesma semana uma chamada com a notícia, e a pessoa que tivera o cuidado de a avisar, que ela desconfiava ser o filho mais velho, dos quatro que ele tinha tido com a mulher legítima, dissera que o homem que era o seu pai não duraria muito. Ele olhou para ela enquanto pensava nalguma coisa para dizer. Uma notícia dessas assim, alguém que está a morrer, pede sempre que se diga qualquer coisa, que se reaja de algum modo. Mas ela parecia já ter pensado muito sobre o assunto, como se não tivesse feito mais nada nos últimos dois ou três dias. Ele imaginou-o deitado num leito vitoriano, com um pijama branco e tossindo como um tuberculoso, rodeado pela família. As imagens que lhe vinham à cabeça eram das histórias de moribundos de que ele se lembrava de ter lido ou visto no cinema, e sentiu-se incomodado com a frieza do seu pensamento. Não lhe ocorreu nenhuma ideia, nenhuma acção, como seria normal com uma pessoa conhecida. Quis perguntar o que pensava fazer a sua mãe de seguida, se tinha guardado o número de telefone do dono dessa voz misteriosa, que se escondera no anonimato - ou que ela não tivera a coragem de questionar no preciso momento. Mas ela foi refugiar-se no seu canto silencioso do sofá da sala, olhando fixamente para a janela, invocando talvez o passado, aquele passado de que ele próprio, apesar de tudo, continuava a ser a prova irrefutável. O máximo que conseguiu dizer foi que passaria aquela noite com ela. Dormiria no quarto que fora seu e dos irmãos. Uma decisão premonitória, como se veio a confirmar. A meio da noite, ela teve uma crise de intestinos, a velha crise que acordava sempre nestes momentos de grande carga emocional, e que a prostrava, como se a vida se lhe quisesse esvair pelo corpo abaixo. No dia seguinte, já recomposta dos líquidos perdidos, mas ainda demasiado fraca para caminhar, ela pediu-lhe um favor de mãe para filho, uma benesse que ele não lhe podia por nada negar. Ouviu o pedido sem qualquer reacção. Para sua surpresa, achou que o que ela lhe pedia parecia estar destinado a acontecer, e que nada deste mundo poderia impedir. Mesmo correndo o risco de uma viagem até às terras do Norte em vão, e de o homem que era seu pai poder iniciar a sua derradeira viagem antes do último reencontro desejado. Iriam mais uma vez ao Norte, estava decidido, como poderia ele negar tal coisa à sua mãe? Com certeza a última, apesar de ela própria não estar em grandes condições disso. Mas desta vez, a última, insistia ela, teriam de levar mais alguém com eles. Ela parecia ter tudo preparado, tratado de todos os pormenores, zelando para que o último capítulo daquela história tivesse o melhor final possível. O homem que tinha sido o seu pai haveria de querer conhecer o neto, um neto muito especial, acreditava ela, antes de fechar para sempre os olhos. Ela abraço-o e disse-lhe obrigada, meu filho, obrigada, e limpou as lágrimas na cara.