Dêem-lhes armas que matam-se entre si
Bateram no portão com força, estava tudo fechado a sete chaves, pularam o muro e vandalizaram o quintal. Deram um tiro no cachorro que tanto ladrava para avisar aos seus donos que havia intrusos na casa, foram do lado traseiro onde dormia o Paito, arrombaram a sua porta de zinco, acenderam as suas lanternas, ele acordou e perguntou o que se estava a passar, eles disseram: cala-te, cabrão. Eram cinco homens bem armados, três fardados e dois não, um deles tirou o instrumento que lhe conferia poder, jogou fora os lençóis do pobre jovem e espancou-o até que o sangue escorresse pelas narinas. Ele ficou deitado no chão e o agente da polícia pisou o seu rosto com a bota que havia envergado, tão dura quanto a rocha. Paito questionou o motivo de tamanha violência, mas nenhum deles respondeu. Dizem que não é da responsabilidade das autoridades responder a um simples cidadão.
Sua mãe ouviu os gritos, abriu a porta, viu o filho algemado e ferido, tentou interpelá-los e recebeu um insulto e chapada no rosto. Ela desmaiou!
Paito foi rastejado, ameaçado e sem direito a defesa. Raquelina, sua irmã, mergulhava no mais profundo dos sonhos quando o irmão visitou o seu cérebro pedindo ajuda e despertou. Ela conseguiu escutar o barulho que ainda se fazia sentir, saltou da cama desesperada, a mãe estava deitada no chão. De seguida, ouviu o irmão chamando por ela, correu até ao portão e, do lado de fora, viu-o debruçado nos bancos do famoso mahindra, algemado como um cão vadio. Ela fixou o olhar no motorista, era o seu primo Betinho. Não quis acreditar que o sangue do seu sangue estava a assistir ao cenário sem intervir. Imediatamente, foi acordar a mãe e o mahindra tinha ido embora.
— Mãe, não vais acreditar quem está a conduzir o carro que levará o mano até ao posto policial: é o primo Betinho, filho da tia Rofina.
— Não é possível, filha. Será mesmo que os pretos não se podem governar? Que é só dar-lhes armas que matam-se entre si? O poder transformou seres humanos em verdadeiros insensíveis seres humanos.
As duas questionavam-se o motivo que levou Paito a prisão, ele era um homem de boa índole. Não demorou para que a vizinhança saísse. Raquelina caminhou até à esquadra na companhia do amigo, quando lá chegaram, foram travados na porta por um agente, ela perguntou incansavelmente o motivo da prisão do irmão e ele respondeu que a sua tonalidade de voz era desacato à autoridade, então ela perguntou, o que seria desacatar a autoridade? Nenhum deles respondeu, mostraram ignorância nas próprias palavras. Evidenciando que, para eles, o poder está na arma e no uso do medo como instrumento de dominação.
— Meteram-me na cela, enquanto mano Paito era chamboqueado do outro lado, vivemos um neo-colonialismo no nosso próprio país. Depois dos chambocos, um deles disse-me que o mano estava a ser detido por ensinar as crianças a cantar: Povo no Poder. Fiquei em choque.
Raquelina insistiu tanto na liberdade do irmão que também foi detida. Ficou vinte e quatro horas trancada numa cela escura com insectos, sem contacto com o mundo externo, sofreu uma violência psicológica e nenhum dos que tinham o dever de a proteger o fizeram. No dia seguinte, saiu da cela e recebeu a triste notícia do desaparecimento físico do irmão, ela não acreditou, e quando procurou saber como tudo sucedeu, apontaram-lhe uma arma… foi doloroso chegar a casa e contar para sua mãe.
As cerimónias fúnebres foram realizadas e ninguém se pronunciou a respeito da súbita morte, nem mesmo os que detêm o poder. Primo Betinho foi o primeiro a derramar lágrimas de nostalgia no funeral, não lhe faltou vontade de pedir aos coveiros que lhe enterrassem com o malogrado. Morreu como cão, nas mãos de terroristas disfarçados de gente que carrega o cinto da paz.
Raquelina decidiu seguir um curso de Comunicação Social, reportar as causas ocultas, documentar factos. Encontrou na escrita o seu refúgio. Tempos depois, foi novamente presa, acusada de usar seus textos para infringir todas as regras, nem mesmo o seu talento foi respeitado. Ele deveria permanecer na gaveta para não despertar às elites.
É quase madrugada e Raquelina não chega, a preocupação no coração de sua mãe é ainda maior. Nas primeiras horas do dia, a senhora fez-se à rua e, no seu muro, uma imagem do filho Paito colada à de Raquelina com uma cruz desenhada na testa de ambos. Gritou e os vizinhos saíram para assistir. Todos os traumas voltaram. Pobre mãe, decidiu arrumar suas coisas e regressar a casa que lhe viu nascer, onde durante anos fugiu da guerra civil.
Hoje, ela chora a morte dos filhos, ninguém pagará por isso, mas os seus pagaram com a própria vida em busca do bem comum e defesa dos direitos de cidadania.