25 balas por Moçambique

O primeiro tiro foi-me dado na cabeça, julgaram ser a minha mente o teor e ameaça das suas vidas luxuosas voltadas aos “moet et chandon”. Ainda na minha teimosia, resisti. Uma bala era ainda insuficiente para cobrir a minha consciência revolucionária que, para eles, é tida como agitadora da juventude para as questões de índole social. Quando dei por mim, foram mais quatro balas na cabeça, para se ter a certeza de que mais uma mente pensante tinha sido abatida. A mente, como sempre, causa temor em momentos de incerteza e tomada de decisão, mais ainda, para os que não têm cabedal para assumir a derrota. Recebi mais uma bala na boca. Sim! É a minha boca, cotas, foi ela que me matou. Tanto quanto vocês, só queria clamar por uma sociedade mais justa e igualitária.

Perdi a noção de tudo, quando senti duas balas. Foram balas de prémio para cada ouvido, por ter escolhido ouvir aqueles que sempre tentaram despertar a nossa consciência para além daquilo que aprendemos nos livros de história.

Pai, eu chorei quando li nos livros a história da vossa morte. Chorei até receber estas balas sempre que ouvia os meus filhos voltarem da escola e a gritarem que os heróis que conduziram o país à independência morreram um a um, por uma bomba encomendada ou por um acidente de viação. 

Ao menos a vocês deixaram registros destas memórias, quanto a mim, um rebelde, dirão em jornais e televisões que gostar de saias foi o que me tirou a vida. Manchou-se a imagem de um defunto! Já não choro por mim, choro pelos meus e tantas futuras gerações que, ao chegar a idade dos 25, dirão — Completamos a morte do nosso pai herói. 

Não vou devagar, o tempo que temos não é o mesmo que os que lá ficaram têm para ler estes dizeres e continuar com a revolução, enquanto esperam a sua vez de receber tiros e gás lacrimogéneo. Pouco entendo do motivo que me fez levar estas expressões, pois quem precisa é o povo que ficou, que sente na pele a dor da violação destes direitos por parte dos seus irmãos que carregam instrumentos com os quais deveriam os proteger e os matam, mostrando o quão nada eles são, para além de cultivar sem ter terra mesmo sendo dono dela. 

Recebi no peito todas as restantes balas, estas balas não foram para mim, elas foram para o peito de cada moçambicano que sente a dor de acordar sem ter o que dar aos filhos, essas balas são para cada moçambicano que, naquela madrugada, sentiu a dor através de mim e questionou se um dia terá para onde regressar e sentir orgulho da sua identidade, ou será sempre espezinhado mesmo com seu grão de mestre, doutor, e até mesmo empregado doméstico no estrangeiro. 

Estas balas chegaram à aldeia, fizeram aquela mamana pousar a enxada para sentir a dor na coluna e questionar-se de onde vinha esta “massinguita”. Era o meu corpo a receber as balas que hoje até despertam os petizes que desafiam os pais para ir gritar com os mais velhos: “Este país é nosso, salve Moçambique”. Sem ter noção do perigo que isso lhes pode causar, por conta da violência policial. 

São estas balas cravadas no meu peito que levantam choros e dor. Desperta para a vida, desperta tu que ainda dormes, porque o momento de ressuscitar os Mondlane, Machel, Azagaia e tantos outros que aqui, nessa eterna espera, se encontram, chegou. 25 balas por Moçambique, carreguei esta dor, mas com satisfação de saber que a luta continua. 

Assisti ao meu próprio massacre mas, deste lado, os relatos nos chegam de forma drástica. Prefiro ser eu a contar e deixar que estes jovens tenham o descanso que não tiveram na terra, nesta espera, até os demónios estão comovidos.

Quando decidiu sair de casa para ver o que se passava, Quinho envergava uma camiseta verde para alimentar a esperança que ainda transbordava pelo futuro risonho que todos iam alcançar. Minutos depois,  as mesmas balas que me calaram, tiraram a vida do jovem Quinho que nunca mais sentiu o calor das chapas que cobriam sua miséria enquanto dormia. Gritam por justiça, cotas, os que ficaram, mas onde alcançarão essa justiça se a certidão de óbito escolheu dar motivo para o que lhe aconteceu. Que justiça é essa numa terra onde preservar seus bens materiais é mais importante que a vida? Que justiça se espera para esse e tantos jovens que foram esquecidos na própria tumba? 

Ainda me paira uma dúvida deste lado, para onde foram as partes que completam a boca, o nariz, os olhos, as orelhas daqueles que os perderam no terror daquelas avenidas e quarteirões. Será que ficaram nas armas que os polícias usaram para, posteriormente,  servirem de petisco quando olharem para os lados e descobrirem que no fundo também vivem numa miséria? Enquanto os donos gemem de dor nas suas casas e com medo do que será dito deles e das suas imagens que ainda podem servir de exemplos de caricatura? Não sei por que insisto nisto,  se no fundo,  a maior parte de nós foi entregue ao esquecimento.

Eu, deste lado, digo são 25 balas, porque elas não foram, elas sempre serão até que o som da justiça cubra todo povo moçambicano. 

por Edna Matavel
Vou lá visitar | 28 Novembro 2024 | contestação, juventude, luta, moçambique, repressão