Ensaio (?) sobre o Perdão
O activista angolano Luaty Beirão escreveu um diário, enquanto esteve na prisão, antes do julgamento em que foi condenado a cinco anos e meio de prisão.
Os textos não estão datados, mas terão sido escritos entre 6 de Julho e 15 de Novembro de 2015, durante o período que o activista ficou preso cinco dias na 29.ª esquadra de Luanda. Foi transportado para Calomboloca na madrugada do dia 26 de Junho — a família de Luaty Beirão nunca foi informada pelas autoridades sobre o local onde ele realmente estava. O activista fez uma greve de fome de 36 dias e ficou sete dias no hospital prisão S. Paulo, antes de ser transferido para a clínica privada do Girassol em Luanda. Após o término da greve de fome, voltou para o hospital prisão S. Paulo onde ficou com os restantes 14 activistas acusados. A 18 de Dezembro os activistas ficaram em prisão domiciliária e foram a julgamento em Março, tendo a sentença, em que foram condenados, sido dada a 28 de Março.
“O nosso país passou por (quase) ininterruptos 41 anos de guerra (1961-2002) e, ao dissipar do cheiro da pólvora e do fumo dos monacaxito, despontam todos os horrores da carnificina, dos traumas, dos desarranjos que deixaram profundas cicatrizes na psique do povo angolano, tão injustamente martirizado, um povo que, como todos os outros alheados dos centros de decisões, deseja apenas viver em paz e harmonia*. Para agora à situação e, já numa era de promessas de futuro repetidas vezes goradas, acrescenta-se a esta pletora de infortúnios o flagelo da corrupção que, de tão endémica, se tornou institucional e oficializada em discursos que sugerem despudoradamente que nenhum angolano sobrevive do seu salário. O que este suplício traz por arrasto não augura rigorosamente nada de positivo, pois entra-se no paradoxo shakespeareano onde “Foul is faur, and fair is foul”, sendo a corrupção praticamente um laço de irmandade de consanguinidade entre a classe dominante e compensada com promoções ao invés de sancionada.
Dispondo de exemplos de honra, dignidade e decoro, entregamo-nos a um bacanal de arbitrariedades e (graves) violações de direitos humanos elementares perpetrados por aqueles que deveriam ser os arautos da dignidade, o que engendra um degradante fenómeno de contágio do tipo para a base da estrutura piramidal ao ponto de se tornar “normal”, pois raros são os que se inibem de usar os seus pequenos poderes (deles abusando) para conseguir incrementar então os salários dos quais auferem.
“Ao longo desses anos, a prioridade era o esforço de guerra e, concomitantemente, a educação e a saúde foram ocupando lugares periféricos na distribuição do orçamento, pois precisavam-se de soldados e não de doutores. Preocupante é, no entanto, que 14 anos depois do silenciar/ribombear dos canhões essas rubricas não tenham ainda o posto cimeiro das prioridades de investimento, preteridas consistentemente para a “segurança”(?).
Entendo a delicadeza da situação à qual fomos sendo trazidos e a complexa teia de interesses que se teceu em torno da cúpula do poder que se vê agora com as suas posições dominantes em causa; parece-nos adequado, em nome da harmonia nacional que defendemos, enviar um sinal de tranquilização para as muitas almas que se inquietam pelos seus futuros quando deixarem de ter influência (ilícita) sobre os actores do poder público e se operar a tão almejada completa separação de poderes. Parece-nos sensato que, ao invés das vinganças e perseguições, se promova e se cultive doravante a ideia do perdão e da amnistia como forma de pacificar os corações e se poder começar da estaca zero. Necessário será convencer o povo acerca desta via, discutindo ampla e publicamente acerca das modalidades deste perdão.
A imprensa deve ser “desamarrada” e o assunto tornar-se o centro de francas, descomplexadas, “atemerárias” e apaixonadas discussões onde os argumentos mais convincentes prevaleçam; ninguém possa ficar com a impressão de marginalização ou manipulação e os argumentos vencidos tenham legitimidade para se impor.
O perdão, no entender de quem subscrever estes argumentos, não deve ser incondicional, é preciso saber o que se perdoa e isso pressupõe confissão, um acto que aqui deve ser entendido como nobre e patriótico, pois é do futuro das gerações vindouras que se trata e para se atingir a verdadeira paz é preciso, necessário, essencial, purgar rancores que carregamos nos nossos corações.
Se usarmos uma árvore como analogia, podemos afirmar que toda a convicção que os nossos limites intelectuais dizem que sem raízes fortes, firmemente arreigadas num solo farto de nutrientes, a árvore não se desenvolverá com o esplendor que tem como potencial, mas ficará raquítica; e a folhagem e frutos pouco carnudos, sumarentos e saborosos – o que cresce acima do solo, caule, folhas, flores e frutos – são o permanente reciclar de futuros projectados para a eternidade; e, obviamente, as raízes são o passado com o qual nos reconciliámos e aprendemos a aceitar, permitindo que se desenvolvam e sejam fortes e saudáveis, o que, por sua vez, irá aumentar consideravelmente as probabilidades de os frutos serem doces, desejáveis e apetecíveis.
Será necessário dividir os tipos de crimes a ser perdoados por tantas categorias quanto se revele necessário, sendo que haverá crimes de lesa-pátria que poderão ser automaticamente perdoados, mas outros de índole mais (?) não caberão na generalidade do que é percebido como [susceptível de] perdoar mas aos directamente ofendidos (casos de homicídio, por exemplo). Apenas os crimes confessados serão perdoados! O indivíduo poderá não se recordar de todas as “imprevidências” que cometeu e regressar ao “confessionário” tantas vezes quantas queira, de livre vontade ou solicitado. Quaisquer mentiras deliberadas, omissões voluntárias de crimes que venham a lume, depois da fase determinada para confissões (poderá ser investigada), estarão já dentro do sistema de justiça de Angola de futuro e serão tratadas com o rigor que dele se espera.
Os cidadãos que beneficiaram do enriquecimento ilícito cunhado de “acumulação” primitiva de capital que tenham sido amnistiados deverão ter restrições/limitações quanto a propriedade e sociedade e empreendimentos privados durante um certo número de anos, pois apresentar-se-ão em posição de desequilíbrio da vantagem em relação a todos os outros, correndo o país o risco de erigir oligarquias que controlando toda a economia (detendo um excessivo poderio económico doméstico) exerceriam indubitavelmente uma influência inaceitável sobre o poder político constituído por fortes lobbies que condicionariam sobremaneira a execução do mais bem-intencionado dos governos.
Leis especiais e temporárias deverão regular estas limitações, reduzindo ao máximo a possibilidade de contorná-las com astúcias que cairiam em “loopholes” jurídicos.
Aquele que considere desprestigiante ou vergonhoso sujeitar-se ao confessionário e decida ir-se embora do país deverá ter a liberdade de o fazer, ficando no entanto sujeito a investigações acerca da sua idoneidade na gestão da coisa pública (e outros crimes que tenha eventualmente cometido), podendo ser julgado à revelia e confiscados/penhorados os seus bens em caso de condenação, sujeitando-se ainda ao veredicto do tribunal, caso decida, um dia, regressar ao país.
Estou inibido de escrever, pois sei que a qualquer altura se baixa uma ordem para virem virar tudo de cangalhas e levam-me todos os papéis e a minha escritura e os outros lêem como se tivessem sido eles a escrever, inescrupulosamente. Gente baixa, reles, vil, mesquinha que acha que tudo vale para quem tem poder e tudo estão dispostos a fazer para caírem nas suas boas graças. Não sei se voltarei a escrever em forma de diário, certamente não neste caderno, mas, mesmo que o outro me seja devolvido, é ultrajante, uma sensação de violação perante a barbaridade do acto consumado. Também acreditar em direitos dos presos na situação em que me encontro foi de manifesta ingenuidade, tornando-me então co-responsável pelo sucedido.
“A minha mente é uma fortaleza.”
Publicado originalmente no PÚBLICO, a 05/04/2016