Excerto do espectáculo Meias~Irmãs

(…)

BEATRIZ
Há coisas que são difíceis de aceitar.

 

LÚCIA

Mas tem que se viver com elas.


BEATRIZ

Ele também devia ter feito um esforço de integração. Chegar aqui e só dizer que sente a falta de África e do mar, “a água quente e transparente do Índico” como dizia; e do calor e das chuvas de Verão e que ia ser promovido no porto… Dez, quinze, vinte anos a lamentar.

 

LÚCIA
O pai foi para Moçambique muito novo. Sabes? Ele foi para Moçambique com a mesma idade com que eu vim para aqui: aos seis anos. Se eu voltasse agora para Moçambique também não me ia sentir em casa.

 

BEATRIZ
E quantas décadas ele precisava para se adaptar aqui?

LÚCIA
O pai nunca veio de licença graciosa a Portugal, tinha lá a família mais próxima: pais e irmãos, tios, depois mulher e filhos. Ele quase não tinha ligações a este país. O que lhe aconteceu, aconteceu com muita gente. A História recambiou‐nos para a metrópole de um império que acabou em meia dúzia de meses. Mandaram‐nos para casa. Mas muita gente não tinha casa nenhuma aqui… Havia gente que nunca cá tinha estado e chamavam‐nos retornados.

 

BEATRIZ
Desde que me lembro já poucas coisas se contavam de Moçambique.

 

LÚCIA
Sim, ao longo dos anos deixou‐se de falar. Ele não queria.

 

BEATRIZ
Nem se podia dizer Moçambique nem África. Eu já só
tive direito à depressão, não sei quase nada dessa outra vida.

 

LÚCIA
A mãe não te contou nada?

 

BEATRIZ
Pouco. Mas tinha boas memórias desse tempo, misturadas com alguma amargura.

 

LÚCIA
Eu pouco me lembro. Algumas imagens felizes… Sim: água quente e transparente do Índico. Um embondeiro gigante, lindo, à saída da praia. Se calhar não é assim tão grande, mas para mim continua a ser a maior árvore do mundo.

 

BEATRIZ
Não sei se gostava de conhecer.

 

LÚCIA
Conchas e búzios como nunca voltei a ver.

 

BEATRIZ
Toda a vida vivi com esse país proibido. Onde todos foram felizes menos eu.

carla galvãocarla galvãoLÚCIA
Felizes, mas sem luxos… A mãe contou‐me muitas coisas, senão, só pelas minhas memórias também não sabia nada. Nem tudo era fácil. A mãe lavava a roupa na banheira porque o dinheiro não chegava para ter um mainato, um empregado… E ela não podia ir para os tanques onde os mainatos das outras famílias lavavam a roupa; uma senhora branca não podia fazer isso… A mãe não tinha um trabalho. Mulheres a trabalhar nas colónias… Só as que tinham estudos: professoras, enfermeiras…. Fazia em casa trabalhos de costura para as senhoras da alta… As esposas dos militares, dos quadros da administração. Vestidinhos para a filha do director do porto, era três anos mais velha que eu… Depois ainda nos deram alguns desses vestidos… Usei‐os cá… E tu também, pelo menos um deles.

 

BEATRIZ
Mas chegou aqui e nunca mais parou de trabalhar. Nem isso o pai conseguiu; não se dava bem em nenhum lado; onde aguentou mais tempo foi naquela oficina daquele… Senhor Júlio… Já faleceu… Dois anos, foi o máximo. Já não estavas cá.

 

LÚCIA
O inadaptado… Uma sombra muda. Às vezes parecia que nem existia.

 

BEATRIZ
Ou que nós não existíamos para ele…

 

LÚCIA
Sim, se não fosse a mãe…

 

BEATRIZ
Ela levou toda a família às costas.
(pausa)
E agora eu, mas já só somos dois…
(pausa)
Nunca deste uma mão… Nem saber se era preciso alguma coisa.

 

LÚCIA
(silêncio)

 

BEATRIZ
A Beatriz que se aguente…

 

LÚCIA
Eu saí daqui e comecei do zero. Nem era moçambicana, nem era alentejana, cansei‐me desta terra e decidi ir embora, para outro sítio aonde também não pertencesse; foi muito rápido. Nem sabia para onde ia… Tinha vinte anos e estava a ver a vida perder‐se aqui… Nem deu tempo aos pais de reagir; primeiro não acreditaram…


BEATRIZ
Mas não tinhas o direito de esquecer tudo o que estava para trás.

 

LÚCIA
Emigrei! Comecei do zero, ou me centrava na minha nova vida ou ficava presa ao passado.

crista alfaiatecrista alfaiateBEATRIZ
O passado somos nós aqui, primeiro quatro, depois apenas eu e o pai. Meses sem dares notícias. Anos sem sabermos nada… Eu sonhava com a minha irmã: inacessível como as estrelas de cinema, a cantar nos palcos do mundo; e nós aqui na aldeia.

 

LÚCIA
A minha carreira exigia muito de mim.

 

BEATRIZ
Nem quando a mãe e o Paulo morreram.

 

LÚCIA
Já falámos disso…

 

BEATRIZ
O Paulo tinha acabado de tirar a carta. Se estivesses cá se calhar tinhas sido tu a levar o carro…

 

LÚCIA
Beatriz!

 

BEATRIZ
Podia ter sido bem diferente…

 

LÚCIA
Não me culpes pelo acidente. Claro que se eu tivesse ficado muita coisa teria sido diferente. E hoje eu estava a fazer o quê?

 

BEATRIZ
Não sei, podíamos estar aqui os cinco a passar o Natal.

(…)

 

por Nuno Milagre
Mukanda | 21 Setembro 2010 | alentejo, meias~irmãs, retornados, teatro, Teatro da Terra