600 quilómetros
Depois de algumas idas e voltas Lisboa-Madrid-Lisboa, e de outras idas e voltas Maputo-Joanesburgo-Maputo comecei a encontrar pontos de encontro entre a viagem no Sudoeste europeu e a viagem no Sudeste africano. Os dois percursos têm cerca de seiscentos quilómetros, de país para país, de capital para capital; sintonizar noutro idioma ao passar a fronteira, cambiar as notas por outras - actualmente já se salta este passo na Península Ibérica. São viagens em longitude, para Oriente: Madrid e Maputo; para Ocidente: Lisboa e Joanesburgo.
De avião bastam 45 minutos, mas não se vê mais que nuvens e aeroportos. Pode-se ir também de comboio, mas são linhas pouco rectas que não vão direitas ao assunto. Não tendo pressa de chegar, o melhor é ir por estrada, poder sentir a distância espalhada pelas horas que avançam no asfalto. As estradas são boas e a paisagem é bonita, vai-se desenrolando nos vidros, a xis quilómetros por hora: longa-metragem em 3D, com aromas e banco tremido.
É normal que em alguns cantos do planeta, viajando por estrada, quando nos afastamos da urbanidade, quando não passam carros, nem há casas, nem gente; onde há só campo, só mato, às vezes pareça que a paisagem que corre lá fora se poderia localizar noutros longínquos recantos do globo. A paisagem não humanizada é universal e tem pontos de encontro nos dois hemisférios: o mesmo tipo de relevo, cursos de água, prados, arbustos parecidos, vento indistinguível de outros ventos, no seu movimento sem causa aparente.
A zona de Boane pode parecer o território antes ou depois de Navalmoral, e perto de Estremoz poderíamos afinal estar na região de Mpumalanga.
Se aterrássemos sem referências em alguns locais escolhidos a dedo na África do Sul, Espanha, Moçambique ou Portugal, em locais com o mínimo de vestígios dos seus habitantes, facilmente nos poderíamos enganar jurando estar noutro continente.
Durante as horas de viagem podemo-nos entreter a colher simetrias geográficas, mas chegando às cidades, mesmo de olhos fechados, as diferenças saltam à vista.
Em Madrid existe a Plaza de Oriente. Dizem que se chama assim por ter a sua morada a oriente do Palácio Real, construído onde existia o antigo alcazar devorado por um incêndio que o consumiu durante mais de três dias.
A Oriente da Plaza de Oriente, está o hexagonal Teatro Real, heterodoxa geometria do Teatro de Ópera de Madrid. Entre o Palácio e o Teatro, um jardim ao estilo barroco com estátuas de reis visigodos e católicos. Estas e outras estátuas foram feitas para pontuar a cornija superior do Palácio Real, mas reza a lenda que a lisboeta rainha espanhola Maria Bárbara de Bragança, esposa do castelhano Rei Fernando VI, sonhou, no sossego do Palácio, com o estrondoso colapso da cornija sob o peso das estátuas reais, e estas a caírem redondas no chão. Perante apocalíptico pesadelo, e outras conveniências políticas, foram poucas as figuras de pedra que tiveram a honra de ficar a morar no alto do Palácio, com vista para os pontos cardeais. A maior parte ficou-se pelo rés-do-chão, no jardim da praça, ou foram espalhadas pela capital e por outras cidades de Espanha.
Vizinha da ponte Nelson Mandela, a Oriental Plaza de Joanesburgo é tão diferente da madrilena que só no oriental nome coincidem. Aqui, a Oriental Plaza é um grande espaço comercial, com áreas cobertas e ao ar livre. Uma espécie de outlet por grosso e a retalho onde há de tudo. Um grande bazar de produtos orientais, a preços muito em conta ou não a anunciassem como a Meca dos Preços. Nas trezentas lojas da Oriental Plaza encontramos cabeleireiros, filmes e música, electrónica, casas de câmbios, restaurantes, mobiliário, tecidos e roupa, minimercados, lingerie, telemóveis, jóias, e muito mais!
Por comparação a Espanha, a África do Sul tem uma ligação mais marcada e mais antiga com o Oriente. Muito antes de Joanesburgo existir, os holandeses deslocaram para a Cidade do Cabo milhares de escravos do Extremo Oriente a partir do final do século XVII, a meio do século seguinte havia mais escravos que europeus na região do Cabo. A África do Sul, enganadoramente apresentada como um país a preto e branco, tem uma sociedade muito cosmopolita onde vivem há muitas gerações grandes comunidades indianas, malaias, javanesas e outras: mais de um milhão de sul-africanos, cidadãos que não são os pretos nem os brancos do país.
Joanesburgo é uma cidade nova, com pouco mais de cem anos, mas é seguramente uma das cidades do mundo com maior diversidade de comunidades de origem estrangeira. Cresceu com sucessivas vagas de imigrantes vindos da Europa, de todo o continente africano e de muitos países do Médio Oriente e do sul da Ásia: do Líbano à Indonésia. Uns vieram em busca do ouro e da fortuna, outros para trabalhar nas minas, a fazer a fortuna alheia. Já se esgotou o ouro da região de Joanesburgo - as minas hoje são parques temáticos para turistas - mas novos imigrantes continuam a vir para ficar nesta metrópole que ainda exerce grande poder de atracção.
Política sincronizada
Tal como as duas praças orientais de Madrid e Joanesburgo; Lisboa e Maputo também têm duas avenidas com o mesmo nome: Avenida 24 de Julho. Os nomes remetem para o mesmo dia de anos diferentes. O 24 de Julho de 1833 em Lisboa, celebra a entrada na cidade das tropas liberais sob o comando do Duque da Terceira. Em Maputo, o 24 de Julho, até à independência do país, assinalava que nesse dia de 1875 o Presidente francês, Patrice Mac-Mahon, moderando uma contenda entre Portugal e Inglaterra, sentenciou a favor de Portugal na disputa do território do sul de Moçambique que a Império Inglês cobiçava. 24 de Julho, deu o nome à avenida e veio a tornar-se também no feriado municipal, dia da cidade de Lourenço Marques, nome de Maputo no tempo colonial.
Pela mão de um outro Presidente, o primeiro da República de Moçambique, Samora Moisés Machel, um mês depois da independência do país, publicou-se a Lei das Nacionalizações: no dia 24 de Julho de 1975. Pontaria certeira, um novo marco histórico, precisamente cem anos depois da decisão de Mac-Mahon em 1875.
Após a independência, muitos nomes de cidades moçambicanas e quase todos os nomes das ruas, praças e avenidas das localidades foram alterados. Mas com este sincronismo político irrepreensível entre Machel e Mac-Mahon, manteve-se o nome da Avenida 24 de Julho em Maputo, só mudou a efeméride. Menos umas placas para trocar, e seriam bastantes, pois a avenida é muito longa, sai do centro da cidade alta e só termina na rotunda que já nos encaminha à auto-estrada para Joanesburgo.
Rumar a Madrid e Joanesburgo é ir para a cidade grande e perigosa; onde nos podemos perder, ou encontrar a fama e o glamour, longe do mar, das praias e da boa vida, com clima continental e seco. Cidades mais modernas, cheias de novidades, modernices e perdições, grandes centros de produção cultural e com voos directos para meio mundo.
Rumar a Maputo e Lisboa é ir para o lado mais relaxado dos continentes: menos organização e regras, um ar mais limpo pelos ventos dos oceanos, cidades mais pequenas, com menos milhões de habitantes e de cifrões, mas com palmeiras na marginal à beira Índico ou miradouros para esticar a vista a ver o Tejo. Temperatura mais amena durante todo o ano, metrópoles ma non troppo que prezam com sabedoria o dolce far niente. E o mar ali ao lado, praias, marisco e peixe fresco.
Para um lado, para o outro, para o outro ou para o outro, vale bem a pena fazer os seiscentos quilómetros.
Originalmente publicado na revista Fugas do jornal Público em Setembro de 2008