Pôr os nossos imaginários a dialogar...
“Meu filho, quando irá a acabar a sua independência?” este grito de desespero atribuído desde o início dos anos sessenta a um velho camponês do Mali ou do Benim, naturalmente que não é autêntico.
No entanto, vários jornais franceses da época difundiram-no amplamente, porque o essencial para eles era mostrar, por todos os meios, que África vivia melhor no tempo do colonialismo. Se se põe uma opinião como aquela na boca de um cidadão comum é porque, apesar de tudo, é muito incómodo para um espírito cartesiano sustentar que, aos olhos dos africanos, a sua liberdade reencontrada constitui precisamente um mau momento que se vive. Esta astúcia retórica será desmascarada a seguir, mas os esgrimistas das independências africanas nem sempre fizeram tantas cerimónias. Por exemplo, L’Etat sauvage (O Estado Selvagem), romance de Georges Conchon galardoado com o prémio Goncourt em 1964, critica com uma rara violência as novas elites africanas; dois anos antes, L’Afrique noire est mal partie (A África negra começou mal), ensaio igualmente muito polémico de René Dumont também não tinha passado despercebido e um certo Raymond Cartier, hostil a qualquer forma de ajuda aos Estados Africanos, entoa nas colunas do seu semanário: “A Corrèze antes da Zambézia!” Certamente o temerário homem caiu no esquecimento, mas teve a sua hora de glória: na época, glosava-se sem brincar o “cartierismo”…
De tudo isso emana um forte odor de afro-pessimismo ainda que a palavra não tenha sido inventada. Em África, esta salva de críticas suscita descontentamento e cólera. Acusam-se os nostálgicos da era colonial de atirarem todo o tipo de lenha para a fogueira para ficarem de consciência tranquila.
Com efeito, é preciso lembrar que, ao mesmo tempo, Nyerere, Kenyatta, Hassan II, Nkrumah, Nasser e outros « Pais-Fundadores » da Organização da Unidade Africana estão, de coração excitado, a fazer as suas malas para Addis-Abeba e já pensam quer no Festival mundial das Artes negras em Dakar, quer no festival Panafricano de Argel ou no de Lagos. Os intelectuais e os artistas reunidos alguns meses antes, em 56 e 59, nos congressos de Paris e de Roma, tinham-lhe assinalado cuidadosamente o caminho, repetindo até à saciedade: fora da cultura, não há salvação para as jovens nações independentes. Elas dizem-se, além disso, prontas a bater-se com a energia da esperança para enfrentar todos os desafios. E como quase sempre, são os poetas que exprimem com mais força as loucas esperanças do seu tempo. Um deles inflama-se: “Amanhã…Amanhã, que misterioso estremecimento!”
E não é provavelmente por acaso que, com Senghor e Césaire, a poesia dita a sua lei a todos os outros géneros literários e que Fanon, pensador essencialmente difícil e austero, se permite por vezes vastas tiradas líricas.
Admitimos que todos estes artistas insistiram um pouco no sonho. A Idade de Ouro não se decreta nem, aliás, o “Renascimento africano” que se manterá à tona num contexto político ainda mais delicado. Não deixa de perturbar que, meio século depois, já nada reste do formidável impulso panafricanista dos nossos anos sessenta. O sentimento de fracasso hoje é tal que os cínicos jubilaram nas vésperas do “Cinquentenário”. “Não há nada para celebrar” ouvimo-los gritar alto e bom som com frequência. A ideia de que a situação de África é tão desastrosa que nem sequer merece reflexão é, realmente, muito estranha. É verdade que os factos que merecem no continente uma tão má reputação não podem ser negados por ninguém. Todos temos muita dificuldade em suportar as suas imagens na televisão, mas isso não é razão para nos descartarmos delas com rasgos de humor ou com um encolher de ombros de desprezo.
A quando remonta o desamor dos descendentes de Césaire pela África das Independências”? Provavelmente ao ano de 1991 que viu surgir, um a seguir ao outro, três ensaios, dos quais o emblemático, mas não menos peremptório e superficial, de Axelle Kabou, “Et si l’Afrique refusait le développement?” (E se a África recusasse o desenvolvimento?). De facto, desde 1968, Ouologuem e Kourouma tinham dado o sinal de alerta com dois romances de títulos muito sugestivos, O dever de violência e Os sóis das independências. As suas obras ainda suscitaram reacções indignadas aqui e além, mas estava feita a viragem. Os romances africanos começam a ser povoados por jovens que, a exemplo de Ahmed Nara ou de Douldé, arrastam o seu desejo de nada e um desinteresse muito sartriano num universo devastado, sobretudo moralmente, por ditaduras brutais. Resumindo, ao État sauvage de Conchon, vai responder em eco, apenas 10 anos mais tarde, L’État honteux (O estado vergonhoso) de Labou Tansi. A mutação opera-se, no entanto, ao nível do “eu” romanesco, do texto a contemplar o seu próprio desfile diante do espelho. A suspeita de mimetismo pesa rapidamente sobre os autores ditos de segunda geração, tentados simultaneamente pelo realismo mágico latino-americano, pelo existencialismo e –last but not least – pelos mais velhos com quem por vezes tiveram a sorte de conviver: Beti, Achebe ou Ngugi Wa Thiong’o…
É no Ocidente que os seus caminhos se cruzam quase sempre porque uns e outros, com raras excepções, fugiram dos seus países para escapar à prisão. Não é a primeira vez que a literatura africana se escreve essencialmente no exílio. Mas desta vez o afastamento tem qualquer coisa de definitivo, não se tratando de ir roubar as suas “armas miraculosas” ao inimigo, ou de aprender com ele “como vencer sem ter razão”, nas famosas palavras da Grande Royale, no romance de Cheikh Hamidou Kane… Na verdade, o escritor já não tem nenhuma razão para se orgulhar e, de qualquer modo, a sua verdadeira pátria será doravante o seu país de adopção, ainda que nem sempre ele seja bem vindo. As suas origens e o seu itinerário dão-lhe autoridade para falar do continente e ele não se priva disso. Através das obras literárias e das declarações públicas, passa-se pouco a pouco da ideia de que “A África está mergulhada no caos apesar das Independências” a uma outra, expressa com um pouco de mágoa ou com um humor aguçado e divertido: “África está mergulhada no caos por causa das Independências”… Trata-se de uma mudança radical de perspectiva.
Este fraseado existencialista, no âmago dos conceitos de “recusa do desenvolvimento” (Axelle Kabou) ou de “ajustamento cultural” (Etounga-Manguellle), é preciso dizê-lo, teve graves consequências. Sem querer, estes ensaístas e autores de ficção libertaram dos seus últimos escrúpulos os negrófobos que, aliás, os citam sempre a torto e a direito, numa postura que significa: “Eu cá não sou racista, eu apenas refiro as opiniões dos seus intelectuais”. Sem estes últimos, etiquetados nessa altura como “corajosos” e “honestos”, um texto tão insultante como Négrologie não teria encontrado editor e Sarkozy nunca teria ousado pronunciar em Dakar um discurso de tão incrível candura revisionista. O voto para o Parlamento francês da lei de Fevereiro de 2005 sobre “os aspectos positivos da colonização” não surge do nada, nem o crescente poder dos grupos xenófobos que tomam como alvo prioritário os emigrantes africanos da Europa. Estas coisas podem ir muito longe, porque se a ONU deixou perecer um milhão de Tutsi ruandeses, foi também porque uma certa literatura só sabe falar da violência em África em termos de confrontos étnicos.
Dito isto, há uma certa grandeza de alma na recusa de se assumirem como vítimas de outros e podem compreender-se aqueles que se impõem não evocar sistematicamente o tráfico de escravos e a colonização com medo de reavivar um debate estéril sobre o “arrependimento”. No entanto, neste assunto, trata-se muito menos do passado que do presente.
Vistas com clareza, as independências outorgadas pelas antigas potências coloniais foram quase sempre independentes da vontade dos povos africanos. Depois de terem assassinado Lumumba e de terem instalado solidamente Mobutu no poder, é possível que a Bélgica e a América se declarem inocentes das décadas de desastre que resultaram da sua acção no Congo? O mesmo se pode dizer de França que, nas palavras de Edgar Faure, só deixou a África “para aí permanecer melhor”.
Em Fondements économiques et culturels d’un futur Etat fédéral d’Afrique noire (Fundamentos económicos e culturais de um futuro Estado Federal da África negra), Cheikh Anta Diop descreve o preciso instante em que o General de Gaulle assina a acta de nascimento da África francófona. “Nada, escreve Diop, é mais extraordinário, mais fantástico, que esta distribuição pelo chefe de estado francês das diversas bandeiras, na praça da Concórdia, aos chefes de Estado da Comunidade, no dia 14 de Julho de 1959”. O círculo fecha-se em si mesmo quando, no dia 10 de Julho de 2010, todos os sucessores destes chefes de Estado africanos – à excepção, notável, do da Costa de Marfim – aceitam a convocatória de Sarkozy que preside a um imponente desfile militar franco-africano nos Campos Elíseos…
Se a França se agarra ao seu “pré-quadrado” é, em primeiro lugar, para controlar as suas riquezas. Ela atribui também uma grande importância à expansão da sua língua, mas a falência dos Estados-clientes arrasta a do seu sistema educativo. Os autores africanos de língua francesa estão, por isso, cada vez mais isolados dos seus leitores. É de resto para contornar esta dificuldade que Sembène Ousmane se inscreveu aos quarenta anos numa escola de cinema de Moscovo. De Borom Sarret a Molaade, uma dezena de filmes permitiu-lhe ampliar a sua audiência. Mas, na verdade, estes filmes foram mais frequentemente visto no Ocidente, em festivais que nas capitais ou aldeias de África. Não é culpa dos criadores africanos se o seu público se encontra sobretudo no Ocidente. No entanto, não se pode negar que tal facto influencia escolhas estéticas que encontram o álibi de uma estranha modernidade.
Entre os próprios actores culturais africanos, o fosso não deixou de aumentar no decurso destes cinquenta anos de independência. Festivais, exposições, colóquios mantêm, é verdade, a velha ilusão lírica, mas muitas vezes têm lugar em função das línguas dos antigos colonizadores que são, de resto e bastante ironicamente, os únicos organizadores… Definitivamente, um artista da Guiné-Bissau tem mais hipótese de fazer intercâmbios com os seus pares de Lisboa e de Maputo do que com os que lhe são geográfica e culturalmente mais próximos, do Senegal ou da Gâmbia. O mesmo acontece de um lado e do outro do Saara em que se sentem cada vez menos pontos comuns. Os grandes autores - Achebe, Ayi Kwei Armah ou Mongo Beti – tornaram-se clássicos em todo o continente, mas que jovem senegalês de hoje ouviu sequer falar do sulafricano Lewis Nkosi, do angolano Pepetela ou do Zimbabueano Chenjerai Hove?
Quanto à relação entre a África e a diáspora, não basta dizer que ela já não é o que era… O autor do “Cahier” reivindicava com vivacidade “antepassados Bambarra” e o seu encontro com Senghor nos anos trinta esteve na origem de um movimento de ideias de que se gostou ou que se odiou, mas que contaram. Actualmente, o seu diálogo pareceria de certeza muito menos natural e confiante. É verdade que, para além de todas as mudanças que fizeram divergir os caminhos, a nossa época é mais sábia. Não tem nada a ver com aquela em que Fannon dava a sua vida pela libertação da Argélia e em que uma viagem de Malcom X a Lagos era saudada pelos nigerianos excitados, como o regresso do Filho Pródigo… E quem poderá hoje imaginar Stokely Carmichael a ir viver para Conacri sob o nome de Kwamé Touré?
Em 2009, o segundo festival de Argel tentou, com quarenta anos de intervalo, investir nestes fervores – a bem dizer um pouco ingénuos – de outrora e parece de facto que esta é também a ambição do próximo Festival mundial das Artes negras de Dakar. Talvez seja pensar fora das realidades. No decorrer do último século – e sobretudo depois do fim da guerra-fria – o mundo mudou como talvez nunca antes, ao longo da história humana. Acontece o mesmo com a África. Longe de ser a aldeia continental que se comprazem a imaginar, ela está literalmente atomizada. Os seus estados voltam as costas uns aos outros e as suas populações têm, por razões práticas, a maior dificuldade em se encontrarem. É preciso passar à acção. A melhor forma de forçar as portas do futuro, é fazer com que, ao menos, os nossos imaginários possam conversar. Que formidável reviravolta se, por formulas a inventar, os livros e os filmes africanos pudessem circular todos os dias do Cairo até ao Cabo…
Falar do panafricanismo faria então sentido. Obstinar-se a imitar sem discernimento o passado não será, por assim dizer, ficar para trás na sua própria loucura?
* As imagens que ilustram este artigo são pinturas do artista Ihosvanny.