Uma segunda parte para Nelson Mandela
Em Yeoville, um bairro pobre e cosmopolita de Joanesburgo, os habitantes não têm grandes propriedades para alugar aos estrangeiros durante o Campeonato do Mundo, mas cada um espera, de um ou de outro modo, tirar partido do acontecimento. Sipho, por exemplo, vende bandeiras sul-africanas na Raleigh Street. Isso fá-lo ganhar mais dinheiro do que habitualmente mas confessa, com uma gargalhada, que já começa a desejar que a competição acabe o mais depressa possível e que tudo volte a ser como antes. Sipho não será, seguramente, o único a dar um suspiro de alívio depois da final a 11 de Julho. Entre os seus vizinhos mais abastados do Observatory mas também de Melrose, o bairro chique e excessivamente louco dos “black diamonds” - negros milionários – espera-se o fim desta World Cup como uma alívio. É que a África do Sul está com os nervos à flor da pele. Não é fácil jogar a sua reputação e a de um continente inteiro num simples torneio desportivo, por mais prestigiante que seja. Não sendo a Itália nem a Argentina, sente-se obscenamente observada e sabe que não lhe será perdoado nenhum erro. Nunca foram tão obstinadamente postas em dúvida, muitas vezes a partir de simples preconceitos, as capacidades do país anfitrião. A tal ponto que, há dois anos, Danny Jordaan, o patrão do Comité organizador, deixou explodir a sua raiva contra um jornalista: “Quer saber, você também, se estamos preparados? Pois bem, é isto que tenho para lhe dizer: decidi não responder a essa pergunta!”
Na expectativa de saber se Al-Qaeda vai atacar, a África do Sul tenta fazer pelo menos boa figura. A contagem decrescente tornou-se um jogo nacional e os média divertem-se a indicar quase ao segundo o tempo que falta para o jogo de abertura entre os Bafana-Bafana e o México. Todos os caminhos vão dar ao “Mundial”. Descobriram um fóssil de dois milhões de anos em Maropeng, berço da humanidade? Logo o Vice-Presidente Motlanthe, normalmente bastante reservado, se entusiasma e declara que o Campeonato do Mundo será, efectivamente, para centenas de milhares de visitantes, a oportunidade de regresso à terra do seu antepassado Australaupithecus Sediba… E nem se pense em publicidade sem uma bola de futebol, o governo também instituiu o «soccer Friday». Com efeito, todos os dias, a África do Sul deixa explodir o seu orgulho em ser uma «Rainbow nation». Zuma, os seus ministros e os apresentadores de televisão fazem questão de ser vistos com a camisola amarela e verde e as seis cores da bandeira nacional flutuam em todos os carros. E há ainda a vuvuzela, palavra de origem incerta e que o mundo inteiro aprendeu a pronunciar. É um instrumento de sopro que, à partida, era um corno e que se tornou uma corneta de plástico. É suposto que crie ambiente, mas as autoridades têm medo: dezenas de milhares de adeptos furiosos e armados de vuvuzelas, pode tornar-se perigoso. Por isso advertiram: ao primeiro problema, será proibida no estádio. Também podia acontecer que as equipas visitantes, pouco habituadas a este barulho ensurdecedor – na realidade mais monótono que alegre – exijam o seu afastamento. Poderão contar com o apoio dos médicos que consideram a vuvuzela perigosa para os ouvidos. Ou seja, é um assunto a acompanhar… Dito isto, Joburg, a Cidade do Cabo, Polokwane, Nelson Mandela Bay, Tshwane e as outras 4 cidades anfitriãs estão prontas. «Feel it, it’s here!», berra constantemente uma voz na rádio. Dir-se-ia que este grito acompanha o ritmo de cada batimento cardíaco.
Porém, talvez nos enganemos em considerar este entusiasmo como lucro certo. Se existe, realmente, uma coisa que o estrangeiro aprende depressa à sua custa, é que a África do Sul, terra de contrastes, sabe ser tão exuberante como secreta. É curioso, por exemplo, notar que, com ou sem “Mundial”, a vida segue o seu curso normal. A série Scandal! continua em cartaz todas as noites, Julius Malema e os jovens do ANC exigem a nacionalização das minas e das terras e Zuma assegura: estas cabeças exaltadas inventam, de facto, todo o tipo de coisas; isso nunca esteve em questão. Noutros países, talvez tivesse havido uma trégua social. Aqui, pelo contrário, as greves, se bem que raramente violentas, vêm-se multiplicando há semanas. A da Transnet acaba de findar, mas o sector da electricidade, os mineiros e até os soldados, ameaçam entrar na dança, se necessário durante o campeonato. Vavi, o líder do poderoso COSATU (Congresso dos sindicatos sul-africanos) foi muito claro: “O nosso combate, declarou-a a 28 de Maio, é para nós mais importante que o Campeonato do Mundo.”
Dito isto, a África do Sul apostou em mostrar que, ao mesmo tempo que se considera um país totalmente africano, é também um país à parte, e não quer ser associada à imagem de caos e ineficácia colada ao continente. Ela já tinha organizado – e ganho – em 95 e 96 a Taça do Mundo de rugby e o CAN (Campeonato Africano das Nações) de futebol e não teve qualquer dificuldade em contrariar os seus detractores. Em quatro anos, foram construídos cinco estádios e renovados outros cinco; com uma frota de sessenta aviões, a competente South African Airways tinha a certeza de fazer face a um acréscimo de procura; o aeroporto internacional Oliver Tambo de Joanesburgo, principal ponto de entrada no país, tem nova roupagem e dotou-se, além disso, de 53 novos pórticos de segurança. Em Durban, o aeroporto de King Shaka International, que custou cerca de um bilião de dólares, foi inaugurado no dia 2 de Maio. Vindas de tão longe como a China e a Tailândia, mas sobretudo do vizinho Zimbabwe, 40 mil prostitutas – exactamente tantas como na Alemanha em 2008 – são esperadas e um bilião de preservativos vão ser distribuídos gratuitamente.
Falta, no entanto, convencer os amantes de futebol que estarão em segurança nas cidades mais perigosas do mundo. Nos media sul-africanos só se fala de assassinatos e ataques à mão armada e no passado dia 25 de Maio, desapareceram 98 armas de fogo de um posto de polícia de Durban. Sinal da psicose de segurança: uma correspondente de imprensa europeia confiou-me ter “ conversado com gangsters nas townships da Cidade do Cabo e de Joanesburgo”, que lhe teriam dito mais ou menos o que iria acontecer durante o Campeonato do Mundo! O sentimento de que pequenos bandidos e grandes criminosos não vão deixar passar uma tão choruda oportunidade de negócios, complica terrivelmente a actividade dos organizadores, mas o Estado decidiu agarrar o touro pelos cornos: 41 mil polícias estão a postos e 56 tribunais especiais, os « Night courts », funcionam 15 horas por dia. Um juiz teve mesmo a crueldade de sugerir que, aos condenados, fosse proibido ver os jogos na televisão… As sociedades de segurança privada, que já florescem por todo o lado, também não vão ficar desocupadas. Outras chegam, diz-se, do Iraque e do Haiti para assegurar a protecção de personalidades e delegações estrangeiras. Estas precauções não são demasiadas porque acabam de ser presos dois empregados do hotel onde estavam instalados os jogadores colombianos: tinham-lhes roubado 3 mil dólares… Mas será uma razão para dar aos visitantes a impressão de que não vão sair vivos da África do Sul? Vendo bem, os confrontos entre Mamelodi Sundown, Kaizer Chiefs e Orlando Pirates não deram origem a distúrbios sangrentos. Aliás a Taça das Confederações em Junho de 2009 foi um teste em escala natural e, no dizer de todos, muito conclusivo.
É bastante curioso que se fale menos do transporte urbano que continua a inspirar localmente reais preocupações. Houve um enorme engarrafamento antes do jogo amigável África do sul – Colômbia e o acesso às tribunas do Estádio Soccer City – a sumptuosa cabaça multicolorida de 90 mil lugares – não foi muito tranquilo. Ainda que este eventual problema corra o risco de fazer esquecer à última hora todo o trabalho que desenvolveu, a África do Sul pode orgulhar-se hoje de ter cumprido perfeitamente o seu contrato.
Mas talvez já sinta que os lucros estão nitidamente aquém das suas expectativas. Os peritos tinham anunciado a criação de 100 mil empregos e um maná financeiro da ordem dos 4 biliões de dólares. Ficar-se-á longe dessa conta. Esperava receber 450 mil visitantes: serão no máximo um pouco mais de 300 mil. Os proprietários dos numerosos Bread and breakfast abertos para a ocasião, mas também os simples cidadãos que tinham feito obras nas suas casas com o objectivo de as alugar estão bastante aborrecidos. No segundo caso seriam 600 em Joburg, segundo o quotidiano The Star. O mais grave é que este número baixo de visitantes – quatro vezes menor que o último “Mundial” alemão – resulta sobretudo da desistência maciça de última hora. Uma campanha mediática hostil pode explicar em parte, mas os homens de negócios sul-africanos, esses, não estão longe de suspeitar de sombrios subornos da FIFA. O escândalo tem um nome, detestado por todos aqui: Match Hospitality. Numa quota de 380 mil bilhetes, esta estrutura não conseguiu vender senão… 2 mil porque o seu pacote era demasiado caro. A restituição dos que não foram vendidos à FIFA teve um efeito de bola de neve desastroso, porque ela tinha a exclusividade para o alojamento. A Match teve assim que anular 45 mil reservas de avião e não menos de 450 mil dormidas de hotel em 1.800 mil. O muito sério Mail and Guardian que apresenta estes números na sua edição de 23 de Abril, também interrogou os donos dos hotéis de Durban, Cidade do Cabo e Joanesburgo. Todos disseram que, devido a estas anulações, 50 por cento dos seus quartos estão vazios. Na sua opinião, os preços impostos pela Match desencorajaram uma clientela já muito hesitante em dirigir-se à África do Sul. O negócio é tanto mais badalado quanto Philippe Blatter, sobrinho do patrão da FIFA, é também presidente da Infront Sports and Media AG, que detém acções na Match Hospitality. Recorde-se que, em Fevereiro, Jérôme Valcke, secretário-geral da FIFA, tinha reconhecido a restituição pela Sony e Coca-Cola de um “número significativo” dos 550.106 bilhetes que lhe tinham sido atribuídos. A FIFA apressou-se a pô-los à disposição do público no dia 15 de Abril, mas – facto raro a tão poucos dias do pontapé de saída – havia ainda 160 mil à venda a dia 28 de Maio. Aliás, nestas duas ocasiões, o sistema informático da Match – também encarregada desta operação – avariou, o que fez aumentar a impressão de caos generalizado.
Na verdade, a África do Sul está a descobrir com amargura que este “Mundial” é menos seu que da FIFA e suporta cada vez menos as suas imposições. Homens de negócios da township de Alexandra ameaçaram combatê-la abertamente ao declararem: “ É possível que a FIFA tenha comprado todo o nosso país, mas nós em Alexandra não nos deixaremos cilindrar!”
O Estado que até aqui não tem nada que se lhe reprove arrisca-se, contudo, a arcar com as consequências da ganância da FIFA. Já se lhe pede que explique as suas “despesas de prestígio” e o seu “endividamento colossal”. A ONG Equal Education fulmina: com o dinheiro do estádio da Cidade do Cabo, poder-se-iam ter aberto 9 mil bibliotecas! O cineasta Craig Turner também ele critica as opções do seu país em Farenheit 2010, documentário não difundido na África do Sul. Pensa-se que, em vez de se gastar 840 milhões de dólares nos três estádios de Nelspruit, Durban e Cidade do Cabo, se poderiam ter adaptado os três já existentes às normas da FIFA e investir o dinheiro assim poupado na educação. Embora simplista e até ridículo sob alguns aspectos, este tipo de raciocínio pode causar danos se, no final, o balanço do Campeonato do Mundo for negativo. Mas apesar destes sinais inquietantes, isso ainda não acontece e, de qualquer modo, o impacto da competição deve ser igualmente apreciado a longo prazo – fluxo turístico e melhoria das infra-estruturas, em particular dos meios de comunicação. Mas para lá da economia, trata-se sobretudo de ajudar um país a exorcizar os seus demónios. Ninguém pode acusar Desmond Tutu de detestar a educação, mas ele consegue permanecer lúcido: “Nesta altura, diz ele, passam-se tantas coisas terríveis em África que, para nós, este Campeonato do Mundo será um momento magnífico. E se, no final, nos encontrarmos com alguns elefantes brancos, não é grave”. Podemos imaginar que este herói da luta anti-apartheid sabe do que fala. A África do Sul quer-se “nação do arco-íris”, mas as suas equipas nacionais de futebol e de rugby continuam a ter nomes e públicos diferentes. Invictus conta como Mandela tentou com sucesso parcial uma aproximação em 1995. Quinze anos depois dos Springboks, é a vez dos Bafana-Bafana tomarem o testemunho. Para esse velho homem que já não se vê nem se ouve, será indubitavelmente não apenas uma estranha segunda parte, mas sobretudo uma segunda oportunidade para o seu país.
Publicado em Le temps, à Geneve.
Fotos tiradas na África do Sul em 2009 por Marta Lança, Marta Mestre, Luhuna Carvalho, Ruy Duarte de Carvalho.