Sem assumir a responsabilidade por atos concretos de abusos cometidos, não há autocrítica

Terceira carta do Coletivo de Vítimas sobre os recentes posicionamentos de Boaventura de Sousa Santos

Apresentamo-nos como um Coletivo de Mulheres que sofreu diferentes tipos de violência, resultante do padrão de abuso de poder naturalizado nas equipas de trabalho lideradas por Boaventura de Sousa Santos e percebido como inevitável pelas pessoas que ocuparam lugares de autoridade no CES durante muitos anos. Abaixo, juntamos a nossa carta inicial. Desde que começámos a partilha das nossas reflexões, o número de pessoas aumentou. Temos estado em contacto com outras mulheres, que viveram histórias parecidas com a nossa. As situações de abuso experienciadas não se limitam a momentos inconvenientes promovidos por um homem incapaz de entender que o mundo mudou. É muito difícil acreditar que um sociólogo profissional, internacionalmente considerado um dos maiores intelectuais de esquerda, não consiga entender as mudanças da sociedade e adaptar-se a elas. Mesmo com todas as condições e o poder que Boaventura teve sempre à disposição, mesmo que seus estudos tenham sempre chamado a atenção para o patriarcado como forma de opressão, Boaventura ignorou o que escreveu e não se adequou às exigências de um mundo menos opressivo. O seu comportamento com as equipas, colegas de trabalho, estudantes e orientandas não foi reflexo cultural dos tempos, mas uma escolha consciente.

As nossas experiências permitem-nos afirmar que as contradições evidentes entre a teoria de Boaventura de Sousa Santos e as relações de poder normalizadas na sua cultura de trabalho nunca puderam ser problematizadas, porque manter as hierarquias, com seus padrões de exploração e abuso, garantia-lhe vantagens evidentes de que não estava disposto a abdicar. Uma pessoa disposta a fazer uma autocrítica deve, desde logo, reconhecer que, em decorrência das relações desiguais que promoveu, consciente ou inconscientemente, recebeu vantagens. No nosso grupo, há mulheres que acumularam traumas no contexto da relação laboral com Boaventura de Sousa Santos, com sério impacto nas suas carreiras. O primeiro conjunto de perguntas que colocamos é: o Boaventura que agora faz uma autocrítica admite que, no seio da cultura de relações desiguais que promoveu, foi altamente privilegiado? Que privilégios reconhece? Que prejuízos e danos causou às mulheres com quem teve uma relação laboral ou de privilégio numa hierarquia académica? Uma autocrítica genérica não recompõe danos, nem supera desigualdades. É preciso assumir responsabilidades e fazê-lo de forma concreta.

O nosso Coletivo está focado em pressionar a constituição de uma comissão centrada na proteção das vítimas e não na defesa dos agressores. Esse é o nosso objetivo. Não queremos apelar ao cancelamento, nem o desejamos, queremos a apuração íntegra dos fatos, o respeito pelos direitos das vítimas e pelas suas histórias de dor e sofrimento. Queremos justiça! A necessária investigação dos casos tem que assegurar um espaço em que as vítimas possam testemunhar sem medo de retaliações. Sabemos que o poder está desigualmente distribuído e é por isso que muitas mulheres são silenciadas. É imprescindível que a Comissão seja instaurada e que a absoluta independência da Comissão em relação ao CES seja garantida. Desde a primeira carta que endereçámos ao CES, muito embora tenhamos obtido uma resposta célere e indicando preocupação em garantir os direitos das vítimas, nada se alterou. O que temos visto é Boaventura a usar o poder que tem para garantir tempo de antena e veicular à exaustão a sua versão dos factos, enquanto nós aguardamos e torcemos para que os procedimentos do CES sejam escorreitos e garantam que os nossos direitos serão respeitados e que seremos acolhidas num contexto seguro para apresentarmos as nossas histórias, juntamente com as evidências que estamos reunindo. É, por isso, preocupante que as notícias que chegam ao nosso conhecimento sobre a Comissão venham da comunicação social e nos gerem insegurança sobre como de facto irá funcionar. Em dado momento, há referência de que a Comissão será composta por um elemento do CES e duas pessoas externas. Em outro momento, há referência de que a Comissão será totalmente independente. O nosso segundo conjunto de perguntas é: Quando serão conhecidos do público os termos de funcionamento da Comissão (o seu mandato, garantia de autonomia e funcionamento independente, objetivos, regras éticas que está obrigada a cumprir, regras de sigilo que irá seguir, regras a serem seguidas pelo CES para seleção das pessoas)? O CES pretende apresentar um conjunto mínimo de compromissos públicos sobre a Comissão e seu funcionamento e algum cronograma que assegure uma seleção criteriosa de profissionais e garanta quando iniciarão e como serão conduzidos os trabalhos?

A resposta que Boaventura de Sousa Santos fez circular em reação às acusações da ativista indígena Mapuche Moira Millan não nos convenceu. Não deixa de ser surpreendente ver como Boaventura, um intelectual ativista de causas progressistas, entre elas o feminismo, seguiu à risca as estratégias de desmoralização das vítimas e o argumento da falta de denúncia quando as violências ocorreram no contexto de uma estrutura em que ele detinha um altíssimo poder hierárquico e alta influência sobre a carreira e o universo de trabalho ou ativismo das suas vítimas. Respondemos à carta no dia 27 de abril, ainda que tenha tido pouca visibilidade, sobretudo nos meios de comunicação social portugueses

O último texto que Boaventura de Sousa Santos pôs em circulação, contrariando o próprio título, não é uma autocrítica. Aqui, mais uma vez, Boaventura segue a cartilha: fazer seguir às tentativas de desmoralização das vítimas, uma autocrítica absolutamente protocolar que, no fundo, é mais um documento para tentar convencer o público da alegada injustiça que sofre e que não é responsável pelos atos de que está acusado, apesar de existir um número cada vez maior de mulheres corroborando as informações. A título ilustrativo do padrão que Boaventura usa nas suas respostas, reproduzimos alguns trechos da declaração dada por Harvey Weinstein, em resposta às acusações de assédio sexual: I came of age in the 60’s and 70’s, when all the rules about behavior and workplaces were different. That was the culture then. I have since learned it’s not an excuse, in the office - or out of it. To anyone. I realized some time ago that I needed to be a better person and my interactions with the people I work with have changed. I appreciate the way I’ve behaved with colleagues in the past has caused a lot of pain, and I sincerely apologize for it.

Em vez de uma análise do seu próprio privilégio, Boaventura apresenta uma leitura superficial e genérica do panorama social que resulta das transformações que ocorreram nas sociedades modernas em resultado das lutas feministas e dos desafios que temos hoje. No seu discurso, argumenta que muito do que não é aceitável hoje, era aceitável na época da qual veio. Acontece que, como assume, os direitos humanos, nomeadamente os direitos das mulheres, foram centrais na sociologia que desenvolveu e nos compromissos que assumiu com os movimentos sociais. É difícil aceitar como desculpa a ignorância ou a falta de noção, depois de tanto livro escrito; tanta palestra, tanta aula, tanta oficina, tanto fórum sobre o heteropatriarcado. O texto acaba por provar como Boaventura vem aprendendo seletivamente, e de acordo com seus interesses, as lições das lutas sociais feministas e por direitos humanos. Não aprendeu, por exemplo, o que significa responsabilização. Uma autocrítica vazia de responsabilização é apenas mais um passo de quem tem poder para controlar a narrativa. O movimento de direitos humanos, há anos, mostra que responsabilização significa assumir concretamente os atos cometidos, reconhecer a violência dos mesmos e os danos causados e reparar as vítimas. O terceiro conjunto de perguntas é novamente dirigido a Boaventura: Os atos inapropriados, que atribui à cultura, e não a si mesmo, foram cometidos contra quem? Dizem respeito a que tipo de situações: assédio moral ou assédio sexual ou ambos? Que medidas Boaventura tomou ou pretende tomar para reparar as vítimas dos seus atos lesivos? Ou está a falar apenas de atos inapropriados inofensivos que não trouxeram danos ou sofrimento a ninguém? Se não trouxeram danos ou sofrimento, porquê a necessidade de fazer a autocrítica? 

As respostas precisam de ser concretas. Temos as nossas histórias para exigir verdadeira responsabilização. Sabemos que o que sofremos não foram situações inofensivas de um professor que ficou parado no tempo e não se apercebeu que o mundo andou. Estamos a falar de um padrão sistemático de abusos que foi reproduzido com diferentes mulheres, em situações diversas. O último texto de Boaventura contradiz sua própria intenção, não avança um milímetro no reconhecimento das lutas feministas e dos direitos das mulheres, embora nele Boaventura se sinta surpreendentemente à vontade para ditar regras sobre como os procedimentos devem funcionar nos casos de assédio em que nunca foi vítima.

Sabemos que Boaventura conhece com profundidade como funcionam as relações de poder e as formas de dominação na sociedade. Compreende tão bem como funciona o patriarcado, que soube sempre colocá-lo ao seu serviço e de várias formas. Compreende tão bem a força das lutas sociais, que se valeu de mulheres dispostas a sacrificarem-se, porque denunciá-lo seria sempre aproveitado para detonar todas lutas que defendia publicamente e que são verdadeiramente importantes para nós. 

Mesmo que a desculpa da ignorância pudesse ser aceitável, lamentar o desconforto que causou nas vítimas é, no mínimo, insuficiente e é, do nosso ponto de vista, ofensivo. Não queremos falar do desconforto com o qual aprendemos desde sempre a lidar, que cansa mas não nos derrota. Queremos falar de um padrão de abuso normalizado, que ficou demasiado evidente para o podermos ignorar. Queremos falar de traumas silenciados; de carreiras interrompidas, estagnadas ou altamente sacrificadas; de perseguições resultantes de uma distribuição arbitrária de poder que o servia. Não pode existir justiça sem verdade sobre o que aconteceu, não pode haver absolvição sem qualquer esforço de reparação dos danos.  

Enquanto o CES não constituir a prometida comissão de investigação é Boaventura quem fica a ganhar, porque tem poder para controlar a narrativa. Enquanto ele prepara a sua comunicação de crise, sem reconhecer uma única falha concreta, as nossas carreiras e nossas vidas continuam abaladas, sem um fim à vista. A desigualdade continua a pesar sobre nós e as nossas cartas não são publicadas à mesma velocidade e no mesmo número de meios de comunicação social. Continuamos aqui a reviver os traumas e contamos apenas umas com as outras. A nossa cura ainda está por fazer.

Em 6 de junho de 2023. 

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Segunda Carta Aberta 

DO COLETIVO DE MULHERES VÍTIMAS DE ASSÉDIOS, EM RESPOSTA AOS ARGUMENTOS APRESENTADOS POR BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS EM SUA DEFESA PÚBLICA

EXPOR A VULNERABILIDADE DE QUEM ACUSA NÃO CONSTITUI PROVA DE INOCÊNCIA.

Apresentamo-nos como um coletivo de mulheres que sofreu diferentes tipos de violência, resultante do padrão de abuso de poder naturalizado nas equipes de trabalho lideradas por Boaventura de Sousa Santos e percebido como inevitável pelas pessoas que ocuparam lugares de autoridade no CES durante muitos anos [anexamos a nossa Carta inicial].

O nosso coletivo está focado em pressionar a constituição de uma comissão centrada na proteção das vítimas e não na defesa dos agressores. A necessária investigação dos casos tem que assegurar um espaço em que as vítimas possam testemunhar sem medo de retaliações. Sabemos que o poder está desigualmente distribuído e é por isso que muitas mulheres são silenciadas. 

A resposta que Boaventura de Sousa Santos fez circular em reação às acusações da ativista indígena Mapuche Moira Millan (a que a própria também já respondeu) vem ao encontro de parte das nossas preocupações. Esclarecemos, desde já, que não conhecemos e, até ao momento, nunca contatamos a ativista em questão. Levamos, no entanto, muito a sério a sua história.

Se toda a crítica tem direito a resposta e toda a acusação tem direito a defesa, é preciso romper com o pacto acadêmico de produção de verdade assente em hierarquias que atribuem ao lado mais forte o poder de definir o que é racional e o que é irracional, o que é provável e o que é improvável, o que é verdade e o que é mentira e quais são as perguntas que interessa fazer e sobretudo responder.

Na narrativa que assume como prova de inocência, Boaventura usa uma lógica de produção de verdade que reproduz problemas estruturais da academia: o professor catedrático escolhe a quem quer responder e ao que quer responder; define os termos do debate; desclassifica a vítima e assume que a sua palavra tem mais valor. 

Na cartilha de defesa dos abusadores encontra-se o recurso a evidências da cordialidade ou até da simpatia das mulheres após os comportamentos abusivos traumáticos que relatam. Ainda que toda a troca de e-mails que alegadamente prova uma continuidade nas relações entre Moira Millá e Boaventura fosse verdadeira (o que Moira Millán desmente), isso não produz prova de inexistência de abuso. 

É comum as mulheres sofrerem abuso e ainda se verem na obrigação de ser bem-educadas com o agressor. Todas sabemos, porque também fomos educadas a silenciar o que sentimos para evitar o desconforto geral, seja no jantar de Natal, seja na reunião de trabalho. Falhar essa regra, resulta em classificações bem conhecidas pelo patriarcado e pelas mulheres que o contestam: insubordinada, conflituosa, difícil, emocional, histérica, louca, desesperada, egoísta. 

São tantas as razões possíveis para manter a cordialidade, que só podemos dar exemplos: abusadores são manipuladores e podem fazer passar por insensibilidade e falta de empatia aquilo que foi uma rejeição do abuso; a culpa que as mulheres historicamente carregam faz com que muitas vezes questionem o que disseram, o que vestiram, como se movimentaram antes de conseguirem chamar violência ao que viveram; o poder de difamação do abusador é exponencialmente superior ao poder da vítima para denunciar; abusadores podem ser líderes de projetos e causas que as vítimas veem como mais importante do que a sua condição individual de sofrimento. 

No final da sua resposta, Boaventura Sousa Santos afirma “não posso aceitar que me façam acusações falsas como os factos bem demonstram”, mas os fatos apresentados por ele só podem ser entendidos como prova de inocência por quem não tenha qualquer ideia do que é sofrer assédio numa sociedade que soube sempre proteger melhor os agressores do que as vítimas. 

“Gostaria de não ter que avançar por meios jurídicos para resolver esta questão” é o tipo de formulação que serve em tantas situações e tão bem reconhecemos: a ameaça em tom suave, condescendente e patriarcal. Moira sabe que se não desistir, a guerra vai ser dura e Boaventura espera que a ameaça seja suficiente. Habituou-se na vida a que assim fosse. 

Para começar, Boaventura assume que as pichações que surgiram nas paredes de Coimbra com acusações de violência sexual se referiam à agressão sobre Moira. Todas sabemos que não é verdade. O caso mais conhecido era o abuso sexual exercido sobre a atual deputada brasileira Isabella Gonçalves, na altura uma jovem estudante de doutoramento no CES. Boaventura passa assim uma borracha sobre esse caso, como se nunca tivesse existido e não houvesse uma denúncia real. 

Sabemos que existiu. Mas Boaventura está habituado a definir quais são as perguntas e os casos relevantes, assim como as interlocutoras válidas e as inválidas, porque é esse o poder que a academia atribuiu a um professor catedrático e é esse sistema de validação que tem que ser questionado. 

Boaventura assume como prova de inexistência de assédio o fato de a sua casa não ter um sistema de segurança, como Moira afirma. Acontece que, em Portugal, é comum os prédios, que raramente têm porteiros, serem protegidos por uma porta comum de acesso aos moradores, que pode ser aberta por fora com recurso a um código ou uma chave. Para sair, nada disso é necessário, mas, para quem perceba alguma coisa de interculturalidade ou simplesmente já se tenha sentido insegura em lugares onde não conhece as regras, é fácil compreender como aquelas portas possam ser entendidas como sistema de segurança para quem vem de um lugar muito diferente. 

Insistimos que todas estas acusações devem ser investigadas e sabemos que os acusados têm direito a defesa, mas essa não pode assentar nas mesmas regras que fizeram calar-nos tanto tempo. Os abusadores não podem escolher as perguntas a que respondem e não têm o direito de selecionar e (des)classificar as vítimas. 

Boaventura mostrou, ao procurar defender-se, que conhece bem as regras que protegem o patriarcado e que sabe usá-las. Não nos convenceu. Enviamos daqui uma mensagem de solidariedade à Moira Millán: nós acreditamos, porque nós reconhecemos o padrão. 

Por fim, recorda-se que o e-mail querocontarminhahistoriaem23@gmail.com segue à disposição a todas que foram afetadas pelas práticas abusivas de Boaventura de Sousa Santos e precisam de um espaço seguro para partilhar suas histórias.

Do Brasil para Portugal, 27 de abril de 2023.

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NÃO É DIFAMAÇÃO, NEM É VINGANÇA. SEMPRE FOI ASSÉDIO: CARTA ABERTA AO CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA

Primeira carta do Coletivo de Vítimas de Boaventura de Sousa Santos 

Somos um Coletivo Internacional de Mulheres, hoje em diferentes lugares e posições, que têm, ou tiveram em algum momento, um vínculo com o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, exercendo funções dentro de equipas de investigação dirigidas por Boaventura de Sousa Santos. Nossas experiências dizem respeito ao período entre 2000 e 2019.

Somos Mulheres de áreas diversas, com perfis individuais distintos, que partilham uma experiência de trauma resultante de um padrão abusivo na relação de trabalho com Boaventura Sousa Santos ou pessoas com autoridade legitimada por ele. 

As nossas histórias são diferentes, a forma como lidamos com a dor também. Encontramo-nos em diferentes momentos de cura. Algumas de nós já tinham trabalhado o trauma, outras estavam a fazê-lo, outras estão a começar a aceitar que a violência vivida tem um nome. Todas estivemos nos últimos dias remexendo camadas profundas de dor que estiveram silenciadas por muitos anos.

O abuso não é sempre fácil de identificar. Nos momentos em que partilhámos com outras pessoas as violências vividas, encontrámos uma reiterada normalização das más práticas ou a ideia da sua inevitabilidade em relações de hierarquia entre homens e mulheres. No caso em questão, entre um homem no mais alto patamar da carreira acadêmica e mulheres em diferentes níveis de precariedade e vulnerabilidade. Temos diferentes histórias e necessidades.

Temos vozes individuais, que foram silenciadas. Algumas de nós precisam de muito tempo para processar o que viveram. 1 Esta Carta Aberta está sendo encaminhada concomitantemente à Presidência do Conselho Científico, à Direção e Vice Direção do CES, à Diretora Executiva, à Comissão de Ética e à Provedoria. Também será distribuída à Imprensa Nacional e Internacional. 

Partilhamos a urgência de quebrar o nosso silêncio e legitimar as vozes de quem teve a coragem de denunciar publicamente um padrão de violência que resulta dos processos de validação académicos patriarcais; a profunda convicção de que é necessário construir outra realidade, dentro e fora das universidades e centros de investigação, e que o CES tem condições para dar o exemplo, mas não pode seguir em frente sem reconhecer o passado de abusos, sem assegurar que a verdade é abordada de frente e sem dar garantias contundentes de não repetição. 

Neste momento, estamos organizadas como um Coletivo de Vítimas. Entendemos que é preciso haver um espaço seguro que possa acolher pessoas que sofreram as violações e outras formas de violência que estão sendo denunciadas, ajudar num processo de cura coletivo e discutir estratégias que atendam às necessidades das mulheres, nas suas diferenças. Colocamo-nos à disposição de outras mulheres, como nós, afetadas por esses abusos sistemáticos e que necessitem de acolhimento e escuta sem julgamentos. 

Queremos que nossas histórias, com as narrativas de violência que sofremos, sejam ouvidas. Os abusos que sofremos, para além do trauma, tiveram sérios impactos no desenvolvimento das nossas carreiras. Estamos, há anos, gerindo por conta própria os danos emocionais e materiais dessa relação laboral.

Com a nossa experiência vivida e o farto material probatório que estamos organizando, queremos oferecer evidências para que possa haver investigação séria, que resulte na devida responsabilização. Reunimos testemunhos e provas que corroboram as práticas descritas no artigo “As paredes falaram quando mais ninguém podia”, nomeadamente exemplos de extrativismo intelectual (apropriação do trabalho intelectual de assistentes de investigação, sem o devido reconhecimento de autoria e remuneração); assédio sexual, com retaliação e assédio moral em decorrência da negativa ao avanço sexual; e reprodução e manutenção de ambiente tóxico nas equipas de trabalho, por parte de Boaventura de Sousa Santos. 

Temos, ainda, evidências de um padrão de discriminação de género, que desgasta emocionalmente e funciona como bloqueio continuado ao avanço na carreira e ao crescimento profissional de mulheres investigadoras. A sobrecarga das mulheres com tarefas administrativas, de gestão de projetos e gestão emocional; o desvio de função do trabalho de investigadoras que ficaram consumidas atendendo demandas extras excessivas, a depreciação do trabalho desenvolvido por mulheres e as dificuldades colocadas à criação de maior autonomia ou construção de parcerias independentes com outros/as investigadores/as foram práticas reiteradas, que compõem o amplo panorama de abusos sofridos pelas mulheres, e devem ser também investigadas. 

Nossa organização em um Coletivo mostra que não são casos isolados e que não se trata de “vingança”. Entendemos que há um padrão sistemático de abusos que, ao longo dos anos, tem afetado desproporcionalmente as mulheres. É necessário que a investigação dos casos seja segura e garanta às vítimas sigilo e um espaço de escuta e acolhimento em que possam testemunhar sem medo de retaliações. Por essa razão, consideramos absolutamente necessário que a Comissão de Investigação do caso seja totalmente independente e imparcial em relação ao CES, que sejam criados mecanismos para recebimento de outras denúncias e materiais probatórios e que seja dada garantia absoluta de sigilo às mulheres que queiram denunciar ou juntar provas a esse processo. 

Perguntamos: Se mais mulheres quiserem denunciar e contar suas histórias de abuso, como a investigação em curso pretende proceder? Qual o caminho para oferecer testemunhos e outras provas ao caso que está sendo investigado? Que garantias estão asseguradas para que as mulheres possam contar suas histórias em segurança? 

Para começar um processo de mudança, é preciso mudar o padrão de tratamento desses casos, colocando a defesa, proteção e cuidado das vítimas no centro. Se conseguimos sobreviver a esses danos, que sirva para estimular mudança e que mais nenhuma mulher passe pelo que passamos.

17 de abril de 2023

Daniela Felix

Rep. Legal do Coletivo de Vítimas

Advogada Feminista 

por várias
Mukanda | 8 Junho 2023 | assédio, Boaventura Sousa Santos, carta aberta, CES, feminismo, heteropatriarcado, poder, universidades