“Vamos embora!” é a farra angolana
É ano novo. A prima Letinha foi incumbida de pedir ao DJ para mudar a música, era preciso animar o pessoal. A aniversariante explicou: “Esse miúdo, o filho da Katerça é muito teimoso, não varia a música. Experimenta ainda Lete, vai só falar com ele.”
É que era uma da manhã e a comadre da mãe do miudinho já tinha ido para o carro dormir. A Lete voltou com a resposta do teimoso. Disse: “Oh tia, hum… Esses cotas??? Num DANÇAM.” E ela: “Está bem, mas tu põe uns merengues, uns sambas.” Resposta igual e bem pachorrenta: “Oh tia, esses cotas? NÃO DANÇAM.” E acrescentou: “Quem vai dançar somos nós mesmo, (eles, os miúdos), depois das quatro da manhã”. E nós: “Mas já viram esses miúdos, até para dançar, os cotas agora é que são os incompetentes?” Para chegar àquela morada do Lar do Patriota, foi obra. “Dar com os nomes e números das ruas é complicação tão grande que às tantas estávamos com uma jovem polícia no carro.”
Algo habitual para ela. Contava-nos estórias sobre as extremas dificuldades para se achar uma morada no Lar do Patriota. Como a de uma certa esposa que ia ter com o marido e, ao fim de muitas e muitas voltas, desistiu, dormiu no carro ao lado do Posto da Polícia para continuar a busca no dia seguinte.
Alguém teve mesmo que sair da festa para nos apanhar. Porque assim ninguém se entende: “Vocês estão aonde?” Referência: “Olha eu estou aqui ao pé de um montinho de areia.”
Às três da manhã, e dançar que é bom, nada. Questionamo-nos: “Será que o puto tem razão?” Algumas senhoras dispostas a dar uma lição aos cotas, saltaram para a pista, naquela mesmo de lhes mostrar que eles é que são os pernetas. Com o lugar que ocupa a farra na mwangolé1 society, ser incompetente para dançar é grave, é mesmo preocupante.
Alguns às dez da manhã estão a entrar em casa com um ar esgazeado. A mulher de mão na cintura. “Mas você anda aonde?” Tá a responder: “Desbunda minha querida, desbunda da grossa. Farra num quintal com chuva!” Vivem novas realidades. “Pedidos de casamento, hoje em dia, não têm mais nada a ver com aquele jantarzinho intimo. É farra rija”, explicam. Alugam salão, decoram a festa, mariscada, tem a ala dos bolos, a ala das frutas, a ala do churrasco, “pergunta ao Kamané!”
O tal que tem os 131 toques para não passar vergonhas, como o outro que acabou a noite a dançar no Cazenga, e a dama perguntou: “Moço como é? Não tens mais passada?” Para se precaver destes vexames, o Kamané tem em carteira os 131 toques. E esclarece: “Agora casam com três farras: do pedido, do casamento, no civil e na igreja. Um camba meu deu mais uma para os que não puderam estar com eminentes figuras”.
Os nossos pais tiveram filhos à vontade, somos famílias numerosas onde não há tédio, deixamos de curtir as nossas próprias emoções para desfrutar da onda dos filhos, sobrinhos e netos. E como somos mãos largas, os homens sustentam várias mulheres, mas estas também os sustentam mais os seus rebentos de dentro e de fora do casamento, e fica tudo em família. Por isso há muitas farras, aniversários, baptizados, bodas de ouro e de prata, pedidos de casamento, caldos de poeira, etc.
Toda a mulher aprende, pelo menos, a cor do verniz da moda. A carteira, o sapato, a moda é muito importante, porque nas farras há que comparecer sempre “bem arreado” e de cara alegre. A vida sorri-nos, mas se não sorrir não somos de nos queixar.
No Lar do Patriota, lá para as quinhentas, um cota corajoso dirige-se a Gilda, que, com os sms’s do fim do ano, parecia a única que se estava a divertir num ambiente mais de velório do que de festa. O cota, numa de tomar medidas, assanhadamente, arranca-lhe o telefone das mãos: “Vá, deixa lá isso, vamos dançar!” Ops! Nem três passadas e pumbas… foi pisado. Reclamou: “estou enferrujada,” disse ela. Resposta: “Pois, mas treinar é em casa”. E ela: “Só que aqui, desde as 22 às três da manhã, eu já podia ter treinado bastante”.
Os cotas queriam era mostrar que não dançam porque até nem são de farras. Naquela de que “esses miúdos só querem é o mexe-bunda, beber e fumar e roubar. CUIDADO!”
É ano novo. Maré de balanços e recomendações. Parafraseando recados já dados e na onda da tolerância zero pedimos também que “roubem menos” e que “viagem mais”, esperando que uma coisa nada tenha a ver com a outra. Que se trabalhe e se “descomplique” mais, pondo o dedo nas feridas para as ultrapassarmos e fazermos de Angola um país melhor. Mas vão mais vezes. Luanda respira sem os “tubarões” dos que vão em “retiro sabático”, aos médicos, para importar negócios e know how. Portanto, mwangolés, viagem, deixem as estradas transitáveis aqui na Lua. Isto já é como uma palavra de ordem, vós ides, mais para fora do que para dentro, ides a passeio, ou para ficar, ides às compras, aos cabeleireiros, ides, pois se vós podeis então ides.
Não é uma ideia tão despropositada viajar para ir a um salão de beleza, o trânsito luandense complica até uma simples ida ao cabeleireiro, e estes, “através” das farras, tornaram-se indispensáveis. Se saímos de casa a pensar dez vezes sobre onde deixar o carro e no que vamos pagar nos estacionamentos, aos guardas e as multas, claro que se justifica ir até “Portugalééé” ou outro país qualquer. Mangop viaja para os mais estranhos destinos e tem porto em todo mundo. As conversas giram em torno de: “Quando é que vais? Quando é que vens? É “chiqui”!”
Nos salões de beleza impingem-te serviços vários e as mulheres mwangolés preferem ir então, não apenas para pôr cabelo, mas matar 2, 3, 4 coelhos de uma só, poupando assim bastante tempo e dinheiro. Embora, não seja por isso, não somos cá de poupanças quando é para fazer bonito na fotografia. Pagamos sem olhar para a factura e depois de esperar horas para sermos atendidos. Sabemos de antemão que o nosso é o único país do mundo onde o empregado tem sempre razão e tudo faz para que o cliente, consecutivamente mal servido e mal tratado, desista, mas o mais cedo que lhe for possível, para que também ele possa tratar da sua vidinha.
Mas há clientes chatos, pedem o livro de reclamações, o livro vem antes de todos os outros pedidos, nas mãos de um empregado feliz e sorridente. Mas aos salões de beleza, temos que ir mesmo, até porque os nossos polícias gostam de nos ver bem “penteadinhos” sempre. Os chineses, pensando no trânsito e para mitigar possíveis quebras, montam estabelecimentos onde te “amandam” logo com tudo. Depilações, porque andar peludo tornou-se muito anti-higiénico, tanto para mulheres como para homens. Stressado do trânsito? “Vai uma massagem, ao lado tens o restaurante. Sais dali massajado, depilado, de mocotós arranjados.”
Já foi pior, mas viajar em Angola é daquelas coisas que exige muito de nós. Porém, quando tem que ser, o mangop corre, de passagem na mão, encara a luta do visto, depois a luta nos bancos para trocar dinheiro, todos lhe complicam, invejosos, mas ele transpira, se vira nos trinta, espera no trânsito, arranja divórcio, não pode é perder o avião. Indolentes e pouco expeditos, nós? Não é verdade. O que temos tido de paciência e genica para ir arejar ou “não morrer” na peruca, todo ano, não há cá época alta nem baixa, e nem essa necessidade de “poupar”. Somos mãos largas, desconhecemos o conceito e finish.
A nossa época é de festa e passeio todo ano. Tanto que já aparecem figuras a dar como justificação ao chefe: “Não escrevi ainda o relatório porque tive que descansar da festa de aniversário da minha mãe”. Não é anedota.
A farra agasta-nos, viajar também, mas permite-nos trazer fatos mais em conta. Senão “só para se esticar” podemos passar fome ou perder o conforto o resto do ano. E lá fora até sai tudo mais barato, isso até o mais alto mandatário disse e lamentou.
Faz todo o sentido se nos estafamos e só pararmos quando já estamos dentro do avião, a percorrer milhas no ar, sujeitos a cair, chateados com a esposa ou esposo que também queria ir, mas não pode, porque está no hospital. Os nossos motivos são inadiáveis. E é para regressar já na semana seguinte, com os adereços todos e mais alguns pedidos e listas resolvidos. Estão a ver a corrida, mas eh pá, nós temos que nos apresentar devidamente nas farras. E não só, caprichar para nós é todo o dia, andamos nos saltos. Para saltar buracos? Não interessa, é mesmo para ir trabalhar, para caminhar, enquanto não podemos “flutuar”.
Os que flutuam saem de casa nos Xs 5 ou X7, entram directo para as garagens ou à porta está o guarda que apenas guarda o lugar do carro. Passam ao lado das dificuldades impostas aos que andam de carro. Se queres ir para a farra fazer má figura, melhor que fiques em casa, não é por ti, é que envergonhas também a tua família. Eu cá, finalmente, consegui perceber porque que temos que estar mesmo todos “bem arreados”.
O mangop até pode ter preguiça de pensar e escrever o relatório, mas compensa com a falta de “preguiça na língua”, como diz o puto Pedro justificando a sua língua afiada, “não tenho preguiça na língua”. Para comentar o teu “arreanço”, ou que te viram com a mulher do fulano, etc. Isso, é para já chefe!!!
Acham-te graça porque não estás na moda nem usas marcas caríssimas, porque tens rastas e não gostas das mesmas coisas que todo mundo gosta, e consideram-se “todo mundo”. Faz parte do que chamam “estiga”. E daí surgem figuras que declaram: “angolano só serve para ir com ele para a farra, como eu não gosto de farra, para mim não serve para nada”. Xé, mas, a culpa é nossa se não dança por ser rija de cintura e anca?
Somos alegres porque “através da farra” ultrapassamos tudo, e sustentamos este sorriso aberto. Ali temos que estar de bom humor e recriar o ambiente. Não fazemos como a madrinha do miudinho. Ir pró carro dormir? Depois do que sofremos para lá estar? Façamos o ambiente, não está quente a gente aquece. Por isso toda a música de um cantor angolano tem sempre este refrão: “Vamos embora”. E há quem diga: “Faltou no hino”.
Chegamos à farra para mostrar que conseguimos estar bem na moda, só nos sentimos inferiores e incapacitados se não exibirmos, como outros exibem, digamos, toda aquela “chiqueza”. Mas acreditamos que o nosso dia vai chegar e que o dinheiro foi feito para gastar em todas essas coisas supérfluas. Bebemos mal e comemos à toa, até no funge de sábado, não deixa de ser trabalhoso, ou não seria preciso tentar explicar ao chefe a necessidade de descansar da festa de aniversário da mãe.
Para farrar, o mangop corre com as panelas de um lado para outro, da casa deste para a casa daquele, corre para o salão do boda, bumba horas a fio em frente ao fogão, e mais o cuidar da aparência. Todo este desdobramento faz com que já haja teachers a aliciar os alunos da seguinte maneira: “Para vocês fazerem este trabalho, imaginem que vão organizar uma farra. Então? Há que ter método, orçamentar. E os quitutes da terra? Ponham as novidades e iguarias da terra.”
O professor que até é estrangeiro, reconhece “farrar é trabalho very dificult.” Está provado que nos empenhamos a fundo e damos tudo se temos um bom motivo. É que quando tu pensas “trabalho”, eh pá, estraga-se logo tudo, ou não havia aqueles ditados: “Se trabalhar dá saúde …” Agonia, porque exige sempre alguma ou muita responsabilidade. Isso é universal, todos festejamos a sexta e os feriados, todos preferimos a praia, ler um bom livro, dar risada até do que não tem graça, com os cambas, na esquina da rua, tudo que não nos exige nenhum tipo de responsabilidade. Concordamos que o trabalho deve ser feito “leve-leve”. Sem pressão buscando a perfeição, conforme explica o colega de S. Tomé, “leve-leve” não quer dizer deixar andar, é não ter pressa de acabar para fazer bem feito e não a despachar de qualquer maneira. E a gente até se anula se outros o fizerem por nós o que tem que ser feito.
Mas, para gastar como gastamos, no bem estar, nos carros de luxo, casas sumptuosas e nas farras constantes, temos que ganhar para poder continuar a gastar. Estamos afoitos, porque a hora é esta, e apanhamos todo tipo de banhadas, tentamos até vender o que não tem preço. O pior ainda é que vamos ter mesmo que trabalhar mais e arriscar mais e dar muito mais de nós.
Imaginem um patrão atrás do empregado para lhe dar o salário, antes do final do mês. E espera e luta com os telefones para conseguir contactar o tal que nem para mostrar serviço correu. Porque há os que dizem: “Você me dá cem, por mês e prontos: eu corro, me rebolo e me exploras como quiseres”. Mas outros nem por cem, nem trezentos, nem por mês, nem por semana. BEM FEITO. O problema não é o dinheiro. Quem foi que te disse que dinheiro tudo resolve aqui na Lua? Que deves andar por aí a pôr notas de cem nas mãos de todos aqueles que pretendes subornar por qualquer motivo? Pensas que aqui não existe a confiança?
E é toda esta azáfama que faz com que surjam também figuras em delírio a dizer: “Eu desisto de Angola, desisto dos angolanos, divorcio-me disto”. Mas que “ganda lata” destas pessoas que flutuam por esta triste Angola dando-se ao luxo de abrir a boca e jorrar palavras sem querer sequer perceber o que estão a dizer. Desistem fácil porque desistem daquilo que nunca levaram a sério. Melhor figura fariam se seguissem o exemplo do Vava que foi dar aulas na Universidade, sofre no trânsito para lá chegar, mas diz “Quero fazer a minha parte”.
Devemos sim, tentar resgatar um futuro que não nos pertence. Os mais novos não são culpados do que nos recusamos a fazer por preguiça e falta de carácter.
Os que desistem de Angola ao pôr o pé no avião, porque serão recebidos pela parentela em crise ou vão viver da renda da casa que alugaram em Angola, acham que acumularam o suficiente e vão alardeando cansaço “dos cérebros tacanhos dos mwangolés” só demonstram que do que não desistem mesmo é de ganhar à custa dos mwangolés que também não desistem de trabalhar, estudar e de se superar. Era preciso que nunca tivessem cá estado.
Façam “leve-leve”, refaçam, corrijam, reavaliem as prioridades, façam de novo, tornem a fazer, tornem a corrigir, “vamos embora” porque falar não é fazer e não se desiste do que começa com crença e vontade.
Angola não depende da vontade de pessoas que falam em desistir do que mal começaram, mas certos mangops, com a mesma ligeireza e imprudência com que enganam os outros, enganam-se a eles próprios e, com a sua falta de preguiça na língua, dão a entender que se sentem em condições de desistir, ir para um mundo mais desenvolvido, levem pois toda a sua pobreza de espírito. Para fazer “show off”, ou “banga” não é preciso desistir, nem recomeçar, nem acabar nada.
Aconselhamos a água do Bengo para que sintam Angola como uma paixão fulminante e incontornável, uma química inexplicável da qual queremos depender para sempre, nós, os nossos descendentes todos, e mais uns milhares que também desistiram, foram e já voltaram e olham para o mwangolé a tentar decifrar: “O quê que este quer?”
Na farra do lar do Patriota os miúdos às 4 da manhã pulavam. Nós “cansadas do chá de cadeira”. A prima falou: “Já viste os miúdos? O prometido é devido”. Os cotas não dançaram. Agora qual semba? Qual merengue quê? Ao som dos “martelinhos” para dormir também não dava.
- 1. angolano