“Canta mais alto, por detrás do lamento…”, sobre Maiúca

Canta mais alto, por detrás do lamento…

Manuel Rui Monteiro

 

ficámos à espera de tanta coisa… pequenas grandes coisas a quem já ninguém dá importância, mas completam a vida, são-lhe essenciais; fazem com que não seja tão pobre, tão fugidia, tão inútil tantas vezes…

à espera de um reencontro para as bandas de Coimbra, todos juntos, a Mila a adoptar a minha Leda, os vossos netos a brincarem, o Ahmed, o Djelany e o Gerson, confusão misturada com alegria. Ou então a ginjinha, um ritual obrigatório mal começavam as férias…

à tua espera na Chicala, o Tio Jorge já preparado, violão na mão, aquelas olhos de gente de verdade, o Varela a arrancar acordes de sonho, o Neves a preparar-se para acompanhar e a tua voz, límpida, forte e porém, tão suave e melodiosa a soltar-se ao som das águas, companheiras de tantas noites de alegria e de companheirismo…

à espera do disco que devíamos ter começado depois do sucesso e da qualidade do “Mar Largo”, aguardando apoios, porque a tua arte não é a dos ricos de agora, da música má que as rádios passam, nem para ser falada nos pasquins da cidade, onde todos querem sair na fotografia, de muito bom papel e sem valerem um chavo…

à espera da voz que nunca puseste no “Cacimbos II”, naquele poema que o nosso Pedro Rodrigues está para acabar há vinte anos;

MaiukaMaiuka

à espera do telefonema semanal, para escolher os números de uma sorte que nunca veio,  discutir como ia o Benfica jogar, ou quando podíamos ir, mais o Emanuel, buscar mais umas melancias naquele bocado de terra criado pela Mila, para podermos ter um pouco de paz, sossego e tranquilidade;

à espera dos frutos desta Terra, que amaste tanto e se tornou tua por direito, e continua a demorar tanto a dar, por mais que também tu a tenhas ajudado a plantar;

à espera da papelada que ficaste de tratar para pedires a nacionalidade angolana, como um Homem de dignidade e de consciência, que sempre foste;

à espera do teu sorriso fraterno, abraço sincero, coração grande, sempre atento a detalhes que neste mundozinho em que vivemos, fútil e hipócrita, cada vez mais orientado pela lógica material, já quase ninguém dá conta;

à espera de uma antiga e prometida viagem a Cabo Verde, onde acabámos por ir, sem ti e sem o Pedro, mas que serviu para reencontrar parte essencial das minhas raízes e conhecer bons e grandes amigos só de falar em ti;

à espera de que prolifere um dia, gente como tu, de coluna vertebral inquebrável, altivo e orgulhoso, em nome de uma seriedade e competência profissionais que já não se usam, em nome de princípios básicos de educação, moral, ética, e ao mesmo tempo, de modéstia e verdadeira fraternidade;

à espera de outros fazendo coro e “cantando mais alto por detrás do lamento” celebrando a vida, pausadamente, lucidamente, convocando as mulheres e os homens de boa vontade, cabeça limpa e bom coração para outro modelo, nesta existência trôpega, agressiva, cada vez mais sem razões que lhe dêem um sentido;

à espera que exemplos como o teu frutifiquem e que as gerações seguintes saibam que, mesmo num tempo cinzento, às vezes bafiento e triste, houve gente a cantar, a encantar, a trabalhar, a amar, a viver, plena e inteiramente;

à espera de mais gente íntegra, gente com sangue de cor humana, com sorriso verdadeiro, amizade desinteressada, cantando este “Mar Largo” que nos abre, apesar de tudo, um mundo como o teu, diferente deste mundo velho em que nos arrastamos há tanto tempo, até “que fendam os ares os pássaros da liberdade”, e então sim, “haver tempo para amar”, como escreveu o nosso Ovídio Martins.

à tua espera… até sempre!

 

Ao Mário Marta (Maiúca), à Mila Marta

por Carlos Ferreira (Cassé)
Palcos | 20 Dezembro 2011 | canto, Maiúca, poesia