O Homem que chorava sumo de tomates

Os tomates fazem parte de uma categoria de produtos agrícolas de extrema importância para a saúde dos mortais.

Há-os, bons, suculentos e sumarentos.

Há-os, menos maus, de pouco sumo, mas que ainda assim, servem para salada.

Depois, bem depois, há os que os têm e as que os têm.

E há os que já nunca jamais em tempo algum – nem que a vaca tussa – os hão-de ter alguma vez…

Falo dos homens e das mulheres que, depois de um certo tempo de aprendizagem na vida, já não choram. Nem a sumo de tomates choram.

Cresceram, alguns na mais vil pobreza e miséria, mas depois, com estes anos que deram para pôr a jeito muita coisa, com uma surpreendente inteligência e astúcia, se puseram na alheta das nossas vistas e hoje está nas calendas das memórias os tempos em que choravam choro de verdade.

O homem que chorava sumo de tomates é mais uma partida (insistente, teimosa, e lúcida) da Ana Clara Guerra Marques, que, nos multifuncionalismos que nos são oferecidos hoje pelo som, pela imagem, pelo texto, e pela disponibilidade de jovens e menos jovens na teimosia da criação, nos impõe que, no mínimo, reflictamos sobre esta confusão definitiva e (des)organizada em que nos transformaram.

Tudo nos perpassa pela frente. Tudo aquilo a que somos obrigados diariamente a enfrentar na mira de chegar ao fim de um dia, e depois outro dia, depois meses, depois anos, à beira de ataques cardíacos e avêcês em massa, à quinta esquina da vida tresloucada e doentia deste mar de gente em que estamos afundados.

Entre o físico e o psicológico, entre o ruído e a paranóia, entre os pedintes e os policias de trânsito mafiosos, entre os cones que ocupam lugares públicos para os seguranças facturarem e a ameaça de se não pagares “volta aqui amanhã…”, tudo é empurrado para nós. E quando escrevo empurrado é no sentido literal do termo.

foto de Rui Tavaresfoto de Rui Tavares

A Companhia de Dança Contemporânea, mais uma vez (e esta preocupação já é antiga, vinda das primeiras criação da Prof. Ana Clara), escolhe, porque vai radicalizando na forma e no conteúdo consoante nós vamos atingindo níveis cada vez mais altos de degradação moral e física, os pequenos pormenores, os ínfimos detalhes que passarão despercebidos aos homens a quem sobrou apenas o sumo dos tomates para chorarem, mas que a nós, simples mortais e sempre culpados de qualquer coisa há mais de 30 anos, nos agridem, nos apequenam, nos destróiem.

As grandes e pequenas manifestações de arrogância. Os automóveis luxuosos que podem parar em segundas filas e jamais serão multados e nunca aprenderam na vida uma coisa tão simples chamada serviço público – é mesmo assim – em teoria seriam nossos servidores. A forma vertical como se exerce permanece uma cultura de agressividade, no trânsito, no bairro, em casa, nos bares e boites, a padronização da boçalidade, da falta de respeito, do desprezo por tudo e por todos.

Em tudo isto se encaixam não apenas o som, por vezes e propositadamente estridente, os zungueiros, os bailarinos tão significantes, quer nas cerimónias hipócritas (vidé a cena do casamento) quer na distinção classista dos ricos e dos pobres, o súbito interesse por todas as santas madres igrejas, com um fundo claramente de Ningi, que oferece como ninguém o texto e as imagens que ajudam à aprimorar o quadro geral que a Companhia nos oferece.

Não é agradável O homem que chorava sumo de tomates.

Como não é, em definitivo, agradável a nossa vida.

foto de Rui Tavaresfoto de Rui Tavares

Como já não sonhamos ser possível, um dia, em qualquer grande desafio, lembrando Mestre Jacinto, voltarmos a ser iguais entre iguais.

Entre buzinas e sirenes, gritos histéricos e cerveja para consumir o esquecimento e a consciência, entre a ansiedade de que falava Agostinho Neto, cada vez mais presente, mais dolorosa, mais cortante, entre vendedores que só não querem passar fome e os polícias de giro e de trânsito que nos assaltam, entre o despudor e o desprezo pelo mínimo que falamos enquanto seres humanos, enquanto cidadãos;

entre a raiva e o caos, entre o silêncio cúmplice e cobarde e as manifestações de uma burguesia nascida à nossa custa, criada demasiado rapidamente para ter um gesto que seja de cultura, de civismo, de humanidade, e vou mais longe, até de pena ( pelo menos para os que viraram religiosos naquela hora em que os oportunismos se prestaram a tudo…), ainda conseguimos agir, pensar, raciocinar e ter o simples direito de intervir.

foto de Rui Tavaresfoto de Rui Tavares

É o que a Companhia, conduzida pela Ana Clara Guerra Marques se limita a fazer,   nos ilimites da criação e de todas as rebeldias que nos ensinaram a ter aos 15 anos, para agora nos quererem obedientes, calados mas ainda assim, ainda assim, chorando de verdade e rindo de verdade, o que provavelmente já esqueceram de fazer há muitos anos.

 

por Carlos Ferreira (Cassé)
Palcos | 13 Junho 2011 | Companhia de Dança Contemporânea