Pai (Cabé)
Aos Filhos e netos do Cabé
Ao Ladislau Silva
“Pai, tanta coisa que a gente não fala, se envergonha e com medo se cala, que tem no fundo do peito um depósito de lágrimas, lágrimas…” (Paulo Flores)
Entre o nascer, o ser, o aprender e o estar – diziam os antigos assentar – vamos conhecendo várias pessoas que nos influenciam decisivamente na forma como encaramos a vida.
Uns (e umas!) por via do conhecimento político, cultural, profissional, em quem encontramos perfis que nos levam, plenamente conscientes, vontade de lhes seguir o exemplo e, muito embora à nossa própria maneira, autónoma e soberana – como cada ser humano deve ser – seguir-lhes o rasto e, prolongá-los depois da vida através do que marcaram, e do que dentro de nós ficou. Do seu exemplo, da sua verticalidade, de uma vida verdadeira e profundamente sofrida, num mundo cada vez mais difícil, mais egoísta, menos solidário.
Outros (e outras!) encontramos numa esquina da noite, num bar, numa festa, num salão, onde os complexos se desvanecem madrugada adentro e a bebida nos solta as línguas ajudando a diálogos e a conversas que, em momentos “vulgares”, dificilmente deixaríamos escapar.
O último dos boémios com quem aprendi mais da vida, no saber partilhar, no sorrir mesmo em momentos de profundo desapontamento, na esperança em alturas quase de ruína, no repartir o pouco que muitas vezes teve, foi o Cabé.
Quantas noites passadas frente a frente num balcão onde um mundo inteiro cabia em cada palavra, em cada diálogo.
Quantas manhãs nascidas, rompendo o sol, e fosse onde fosse, sempre uma palavra amiga, um aperto de mão forte e seguro, um olhar que dizia mil coisas que os “pais e as mães” que vamos encontrando vida fora, sabem tão bem fazer. Sem nunca pôr em risco, bem pelo contrário, alicerçando tudo quanto os pais biológicos nos vão transmitindo.
Estou para aqui a dar voltas à cabeça, usando palavras à solta, sem saber como te dizer, te fazer compreender. Já meio esquecido das gargalhadas estrondosas dos 20, dos 30, até próximo dos 40 anos, mas que relembrava e reencontrava ao pé de ti. Se não éramos capazes de resolver o mundo – e na minha ingenuidade só aos 50 entendi isso – aprendi, entre muitas e muitas verdades, que, no mínimo, não somos paridos apenas para sofrer. Não!
Vai dançar, rapaz, bebe mais um copo, a vida não é só esse papo cansado das politiquices e jogos axadrezados. Curte a noite, vou escolher uma música para dançar, olha, chegou uma amiga, vou-te apresentar, vem para aqui, senta, hoje não pagas nada e amanhã aparece lá para almoçar.
O amanhã era já hoje e por aquelas noites fora – no Kilamba, no If, no Kandandu, no Kudissanga, no Chá, no Marítimo, em Carnaxide e depois nos Combatentes, o teu silêncio cúmplice no calor dos papos transpirados mas cheios de verdade e de vontade, faziam-me pensar, estás a ver, o Cabé é o único de nós que aprendeu ser inútil esta vida de queixas e lamúrias. A vida é para viver.
Pai (Cabé):
Felizmente, o Paulo disse-te em vida, cantou-te em vida, o que grande parte de nós não é capaz de dizer aos pais. Nem a todos os que amamos. Essa canção, por mim mil vezes ouvida e repetida (até pelo egoísmo de a cantar pensando nos meus próprios Pais) é das homenagens mais sentidas, mais profundas que conheço, (compreensivelmente triste quando “os cabelos começam a ficar da cor da vida” ) – e ainda assim pondo-nos à frente uma pista de dança como imitando o que nos foste ensinando durante todos estes anos – deixou-te para sempre orgulhoso.
Deixa-me agradecer a ti também, e aos poucos que me ensinaram a não cair, mesmo não tendo já a vossa mão para me segurar.
Principalmente nesta idade em que descobrimos que o mundo não é perfeito, podemos levar-te como exemplo para que, peito com peito, os filhos e netos saibam que podem contar connosco para lhes dar o que tu, Pai (Cabé) nos deste. A mim, pelo menos, durante 22 anos.
Não, não te vou dizer fica em paz e sossego. Vou sair, ainda hoje, mesmo hoje à noite, vou fechar as portas da cidade – como diz um puto da nova geração também já teu fã – e encher o copo, dançar e mesmo com as lágrimas que pensei tinham secado há muito e voltaram a cair por ti, vou ver nascer o sol.
Madrugada adentro, chamar-te-ei. E a todos os que te ficaram a dever alguma coisa. E iremos, pela Ilha, mar adentro, trauteando o que o Paulito não escondeu.
“Mais firme, mais forte, mais eu. “Sabendo que tu me amavas mesmo quando não estavas”.
Bom dia, Cabé. Até logo, Cabé.
Madrugada de 20 de Maio de 2011