Diálogos sobre Dança Contemporânea, entrevista com Kepha Oiro
Kepha Oiro é um bailarino profissional, com experiência informal em danças tradicionais, Afrofusion e técnicas de dança contemporânea, através de workshops e residências no Quénia e na África do Sul, entre 2001 e 2009. Foi mentor do projecto de acção social “Njia Yetu project”, uma organização pela reabilitação de crianças de rua (2003-04), envolveu-se activamente em actividades de justiça social relativas aos direitos e ao bem-estar para as crianças na sociedade (2005-06). Foi co-fundador de três grupos de dança contemporânea, em Nairobi: Kunja Dance Theatre, Alama Dance Group e o Tuchangamke (2005-8). Colaborou e co-coreografou obras contemporâneas como “Loud Silence” com a Alama Dance Company e “Urbanite” com a Kunja Dance Theatre e participou nos Encontros Coreográficos Africanos em Paris e na Tunísia em 2006 e 2008. Orientou workshops em diversos festivais de países africanos, europeus e sul-americanos. Actualmente, é o director artístico de um novo grupo performativo contemporâneo conhecido como Tuchangamke, sediado no Teatro Nacional do Quénia, em Nairobi, que pesquisa a fusão do movimento nas comunidades étnicas africanas. É também o director da iniciativa “Dance Marathon”.
Dança Contemporânea na África Oriental
Deixa-me antes clarificar como são as estruturas em Nairobi. Tuchangamke é um dos seis grupos de dança contemporânea a trabalhar em Nairobi. O grupo junta pessoas com diferentes formações, desde o tradicional, o hip hop, a contemporânea e o afrofusion. Ocasionalmente juntam-se membros de outras disciplinas que não a dança. Tem um núcleo duro de seis pessoas e está-se sediado no Teatro Nacional do Quénia. Trata-se de um grupo que trabalha por projectos, o que permite a flexibilidade de mais de 20 membros dependendo do tempo de cada projecto. No entanto, estamo-nos agora a focar na estrutura. Se quiserem ficar podem fazê-lo, se quiserem partir também, mas as portas estão sempre abertas.
Qual é a história desse grupo?
Surgiu quando eu saí do Kunja Dance Theatre, dirigido por James Mweu. Comecei então a dar as minhas próprias aulas no Teatro Nacional do Quénia e ali conheci vários bailarinos e não-bailarinos. Desenvolvemos uma ligação ao rodar e ao partilhar entre nós o tempo de ensino das aulas, o que ajudou muito à consistência e à sustentabilidade das mesmas. Em determinada altura, depois de uma sessão à noite, o nome do futuro grupo surgiu numa conversa de café, inspirado pelas aulas. “Vamos fazer alguma coisa, vamos ganhar energia e fazer algo” foi sempre o mote comum entre os artistas. Tuchangamke é sobre isso, levantarmo-nos e ter entusiasmo para fazer alguma coisa. Por isso é que eu digo “Tuchangamke é inclusivo e não exclusivo” – daí o pronome “tu” que em swahili significa “nós”.
Foi com este espírito que o grupo começou em 2008. Eu gosto de como começou, porque as pessoas lhe deram esse espírito, era baseado em pessoas que queriam fazer algo. E é assim que se tem construído desde então. É muito fresco, ainda é novo. Começámos também a colaborar com outros grupos e companhias, que trabalham em arte contemporânea, especificamente na dança. Um desses grupos é o Alama Dance, da Laila Masiga e o outro é o Ukenia Dance Theatre de Kebaya Moturi, outro ainda é o Jokajok, da Juliet Omoll. Juntos iniciámos o Dance Forum Nairobi. Isto estava dentro do espírito do momento, um esforço concertado de grupos e companhias com a necessidade de construir alguma coisa para os seus artistas. Uma das coisas em que colaborámos todos juntos foi a organização do Festival de Solos e Duetos, em 2007.
Todos estes grupos pertencem à cena da dança contemporânea de Nairobi?
Sim, todos. Existe também a Kunja Dance Theatre e a Dance into Space do Mathew Ondiege e do James Mweu, respectivamente. Podemos dizer que estas pessoas são a segunda geração, exceptuando o Ondiege, que está cá há mais tempo. A formação da segunda geração de bailarinos contemporâneos (ou a maioria deles) em Nairobi é resultado dos ensinamentos do Opiyo Okach, através do projecto “Gerações”.
Havia então um grupo de bailarinos que trabalhou com ele e que depois se espalhou para desenvolver os seus próprios projectos e instituições?
Eles já estavam em algum lado. Mas como estas formações com o Opiyo começaram a viajar, inspiraram-se para fazer algo por si mesmos. Alguns dos projectos ou iniciativas que saíram desta altura foram o Kunja Dance Theatre, o Ukenia Dance, o Alama Dance. Eu diria que o Tuchangamke resulta deste período mas com uma certa distância. Porque o Tuchangamke não foi só criado por mim. Foi feito por um grupo de pessoas que nunca estiveram nos workshops do Opiyo. Eu sou o único que esteve ligado a ele.
Este processo de separação é doloroso ou é assim que as coisas são?
É desenvolvimento e crescimento. É como teres uma família, os teus pais, os teus irmãos e irmãs, eles crescem, mais tarde partem e constroem a sua própria casa, família, alguns casam, a família espalha-se, cresce, torna-se uma família alargada. Passa-se o mesmo com a dança. Precisas de crescer, as pessoas vão crescer contigo, depois precisam de sair, de fazer algo elas mesmas. É um indicador de sucesso. Tu precisas disso, precisas desse tipo de estruturas e organização, em que algo se inicia contigo, mas que depois te ultrapassa e cresce para fora. E mais pessoas que não tiveram a oportunidade de fazê-lo contigo, podem fazê-lo agora noutro lugar. Isto é o efeito da propagação. Ainda não é bem uma indústria, mas é bom para a área. Haver acesso a esta dança, é a única forma disto crescer. De outro modo seria muito egoísta, se as pessoas não quisessem que crescesse, que permanecesse como um grupo que não sai de si mesmo.
Todos estes grupos querem a atenção internacional ou há alguns mais preocupados a nível local?
Chegámos a auto intitularmo-nos de Dance Forum Nairobi para criar uma plataforma para o festival de solos e duetos. No contexto desse festival, vimos a necessidade e o apetite das pessoas saberem mais sobre isto. A ideia do ensino foi gerada aí. Ensinar para uma nova e diferente geração de bailarinos. E como vivemos em Nairobi, podemos fazer melhor porque temos a vantagem da proximidade. O programa de formação Dance Montage foi resultado disto. Tudo leva a uma outra coisa. Um evento faz um outro evento de si mesmo. Desenvolvemos estes programas a um nível local e internacional. Reconhecemos que há coisas que precisamos de fazer para desenvolver o programa, o treino, as técnicas, os materiais, as estruturas e para isso precisamos de colaborações. As colaborações internacionais fazem sentido, porque há instituições que estão aqui há muito tempo. Podiam ensinar-nos, misturar-se, dar algo que seja do seu foro específico. Podiam dar-nos algo dependendo da filosofia que estamos a desenvolver para o programa. É aqui que o aspecto internacional entra. Estudantes internacionais também podiam vir e aprender o que existe nesta formação. Este é o desenvolvimento que queremos para o programa.
Como vai ser a estrutura organizacional?
Deve ser um currículo completo. A graduação acontece ao fim de três anos. Dentro destes três anos, passa-se de um nível intermédio para outro avançado até um ponto em que podes fazer as tuas próprias coreografias ou ser assimilado por uma companhia. Em paralelo, vou direccionar para que, ao fim de três anos, já sejamos uma companhia pronta para trabalhar. O currículo implica aulas dadas pelas pessoas que estão envolvidas desde o início, assim como por professores vindos de fora. Dependendo do objectivo de cada projecto, identificamos com que professores é que queremos trabalhar nos workshops. E no fim de cada ano, os participantes mostram o seu reportório no festival. São também envolvidos na organização e administração do mesmo, como parte da sua aprendizagem. O festival é também uma oportunidade para conhecer artistas de diferentes países e para os coreógrafos mostrarem o seu trabalho. É um lugar de marketing, para onde convidamos programadores para ver trabalhos que sejam interessantes. Sei que o Globalize Cologne está interessado neste tipo de relação, mais numa colaboração técnica. Este é o tipo de organização que procuramos com o Dance Forum e o Training Program.
Outra questão estrutural futura é conseguirmos a nossa própria terra, a nossa própria estrutura, o nosso próprio edifício, ter hotéis para visitantes internacionais assim como para os nosso próprios alunos, ter uma estrutura auto-suficiente perfeitamente funcional. Como a que vês na École dês Sables no Senegal. Estamos a tentar desenvolver alguma coisa na África Oriental. Esse é o objectivo e a estrada para onde nos dirigimos. Neste momento estamos baseados no GoDown Art Centre, que nos oferece espaço e per diems para os professores. São o maior parceiro deste projecto. Neste momento o nosso alvo é o Quénia, temos que ver primeiro como nos encaixamos nos nossos próprios sapatos antes de tentarmos encaixar nos dos outros. Visa to Dance, na Tanzânia está a fazer um trabalho notável, a desenvolver o seu próprio programa de formação. O que poderemos fazer é desenvolver parcerias através de laboratórios, workshops, plataformas. Estas são as principais áreas que podemos desenvolver. O mesmo acontece com a Dance Week no Uganda. Veremos se nos podemos aliar numa rede comum, como podemos dividir e minimizar os custos de transporte e distribuição das obras e também ter fluxos de entrada e saída de artistas dentro da região. Quanto mais trabalharmos como parceiros, mais se torna possível isto materializar-se.
O Programa de Formação Dance Montage
O que vai ser ensinado no programa?
Antes de mais temos que nos caracterizar. Construímos a nossa identidade através de erros, avaliações e enganos. O que é importante para mim, e isto é o Tuchangamke, é desenvolvermo-nos a partir do nosso próprio ambiente e história. E esse ambiente pode ser o urbano. Estou a iniciar pesquisas no sentido de perceber os eventos em relação a determinadas circunstâncias e situações. Penso que é importante para eles terem informação sobre a sua história e conhecimento. Precisamos de sedimentar a estrutura, onde o conteúdo é local, harmoniza-se e transforma-se numa outra coisa, que podes chamar contemporânea, com este tipo de relações entre diferentes técnicas, como o “Flying Low” no chão, “Release Techniques” ou algo do género. Movimentos tradicionais, que já cá estão há muito tempo, são um importante ponto de pesquisa. Serão ensinados com a sua estrutura corporal própria, e com essa estrutura os estudantes recebem informação e conhecimento sobre os mesmos. A seguir vem a liberdade para adaptar e desenvolver a sua própria linguagem. No primeiro ano estávamos a trabalhar mais sobre as danças tradicionais, as suas formações, mas vamos vendo que isso não é realmente necessário. A ideia não é ensinar uma série de passos, a ideia é que o aluno entenda o movimento e a sua relação com o som, a melodia e o tambor. É importante para eles reconhecerem batidas e serem capazes de compor as suas próprias, haver esta relação entre o músico e a dança e ser capaz de caminhar por toda uma atmosfera histórica e ambiental. Compreender é um ponto fulcral, explorar o âmago, como funciona, os saltos, os abanões, as vibrações. Olhar para estes temas específicos e ir mais fundo. Não será limitado a um olhar superficial mas à natureza do entendimento, para desenvolver uma filosofia a partir daí. Precisamos de olhar para isto como uma técnica e não da abrangência da “dança tradicional”. Precisamos da técnica dentro da estrutura educacional, quando a tivermos definido, estruturado e devidamente investigado. Os primeiros três anos centram-se no desenvolvimento deste tipo de aproximação, para que o segundo grupo de estudantes encontre algo já mais estabelecido. É um processo.
Cada um deve desenvolver a sua filosofia durante os três anos? O que queres dizer com filosofia? É também uma filosofia personificada?
A cultura está a diminuir nos aglomerados urbanos. Tentar restaurar e recapturar os valores tornou-se parte da minha vida quotidiana. Se tiveres uma instituição que recomenda o valor da história e da cultura e que personifica o mesmo no seu programa, haverá um sentido do valor quando partirem. Podem chegar completamente inconscientes do que isto é, mas podem sair sendo educados e pela redescoberta. Têm a possibilidade de conhecer a importância e o sentido disto. Uma instituição sempre propagou a sua própria agenda mas precisamos de instalar um certo valor, que para nós é o reclamar do que estamos a perder o tempo todo: a música, o movimento. Torna-se uma batalha qualificar ambos, mas não deveria ser uma batalha. Precisamos de pô-los ao mesmo nível. Eu posso ter uma “Flying Low Technique” estruturada sendo muito bem explicada, podemos ter o mesmo para a dança tradicional. Eu sei que é um evento, acontece em certas ocasiões, a nossa vida sempre foi integrada sempre numa só embalagem, mas agora encaramos a necessidade de separar as coisas, de desconstruí-las para que as pessoas as entendam, porque é esse o momento em que estamos na cultura. Há uma série de subculturas, precisas de desconstruir as coisas para que as pessoas entendam. Já não é integrado como era. A urbanização trouxe essa sensação. Se vens das zonas rurais já é diferente. A migração do campo para a cidade está a aumentar, os centros urbanos estão sobrepovoados e cada vez menos jovens ficam nas áreas rurais. A reinstalação torna-se cada vez mais importante, o centro urbano é um centro multicultural onde é muito difícil encontrar um sentido de identidade. Como instituição, não nos estamos a tornar num museu mas num arquivo de conhecimento. É isto que queremos, não é fácil mas tentamos manter o foco nisto.
Pesquisa na/através da Dança
Se esta pesquisa parte de tudo isso, como é que é feita? Vocês vão às zonas rurais?
Antes de mais tornou-se um ponto de interesse. Eu não diria que estou a pesquisar a dança tradicional. É um termo demasiado lato. Eu diria que pesquiso vibrações, como é que estas se ligam a sons e ritmos e de que forma se conectam com o passado, em determinadas culturas. Começo então a olhar para como diferentes culturas usaram a vibração em diferentes sentidos. Por exemplo, tento perceber como é que a vibração é usada no Botswana, na cultura moderna em Lagos, Nigéria ou na Etiópia. Tento identificar esta comunidade, tento encontrar-lhe o sentido, de onde vem, porque preciso de olhar de forma mais profunda, preciso de perceber se leva ao transe ou não, a que é que se liga, como é que ecoa na música. Eu gosto de me fazer estas perguntas. Depois, com estas recolhas, sou capaz de chegar a conclusões sobre a base desta vibração. Reúno informação em torno dela que pode ser apresentada e ser dada a uma instituição para que a use. Tens informação que está aqui, gosto definitivamente de trabalhar com vibrações. Quando trabalho com tremores, uso o mesmo método para entrar neles. E outras áreas estranhas como o homem da medicina ou os Sangomas, qualquer nome que determinada civilização lhes atribua, voodoo, etc. Estão ainda conectados à natureza; estão sintonizados e comunicam com o ambiente. A maneira como os ritmos e os padrões se traduzem e são interpretados é muito diferente da nossa. O seu método de cura é diferente. É assim que realizo a minha pesquisa. Se significa que consigo esta informação num país diferente, então tenho que me preparar em termos de orçamento e agenda e tornar possível realizá-lo.
A vibração é o foco da tua pesquisa?
Há a vibração e outros, há também o som, o correr. Correr e como é que isso funciona com o ritmo, para incluir os braços e eventualmente a dança. Olhar também para a simplicidade dos movimentos. É como uma simples semente, é plantada no chão e eventualmente transforma-se numa árvore. Eu gosto de começar neste lugares simples, a corrida, os abanos, os saltos. Quanto mais olho para ele, mais vejo a importância do movimento natural e cru. Está tudo tão ligado ao ambiente. É por isso que o ambiente é sempre uma enorme questão para mim, determina muito. É por isso que a dança contemporânea está a desenvolver a sua própria textura e cor neste momento, porque está em Nairobi. Para o que faço, preciso de pesquisa e para o que quero desenvolver preciso do ambiente em que me insiro.
Como é que chegaste a estes pontos?
Estava numa encruzilhada na África do Sul em 2006. Estava a fazer um musical chamado “Sing Africa Dance”, que era mais uma combinação de diferentes tradições e práticas culturais africanas, uma tentativa de colocá-las num palco global. A África do Sul é conhecida pelos seus musicais extravagantes e oferecia a oportunidade de juntar num palco todas estas culturas e talentos maravilhosos. Durante este processo, conheci um bailarino/percussionista do Gana, um bailarino e cantor do Mali, artistas dos Camarões, do Zimbabué, do Botswana, da África do Sul e nós do Quénia. No projecto tínhamos diferentes nacionalidades. O resultado é que sofres uma enorme influência disto. Sei que a minha peça do puzzle chegou quando me tornei amigo de um bailarino do Botswana que, na minha opinião, tinha uma forma única e controlada de dançar, que me encantava. Assim que aprendi o jeito dele, tornei-me ainda mais interessado noutros – via o sentido de tudo. Também desenvolvi um fascínio em haver uma voz comum, haver um sentido comunitário. Por isso gosto de trabalhar com muita gente no palco a trazer uma voz, uma mensagem. Via isto como algo que gostaria de trabalhar no futuro, guardei-o numa espécie de memória fotográfica. A voz, as pessoas, o número, é incrível. A voz das pessoas sempre a querer fazer-se ouvir, isto tornou-se cada vez mais importante para mim. A voz e o sentido da comunidade vem com as pessoas. E se as juntas para inspirar este processo, tens algo muito forte. Desinteressei-me pelos solos e duetos e virei-me mais para o desenvolvimento de algo grande no palco. Depois surgiu esta ideia, do trabalho com base na produção, a necessidade de trabalhar com pessoas com experiências diferentes, juntar várias culturas no palco, para desenvolver alguma coisa.
Estamos num mundo em que as tendências mudam o tempo todo, precisamos de estar sempre em reflexão. Eu preciso de ser envolvido nisto, oferecer diferentes propostas, tocar diferentes temas. Para mim, no Quénia, o principal tema é a política, o impacto político na minha vida enquanto artista, o impacto político da nossa sociedade como um todo. A política está a tornar-se mais um cancro do que um programa de desenvolvimento. Está a arruinar os nossos valores e culturas, o nosso sentido de irmandade. Estamo-nos a tornar cada vez mais divididos, a olhar em diferentes direcções, a prática política facilita isso e vejo como me afecta, então é um programa para mim. Preciso de ver este processo através do meu e de outros pontos de vista. E de alguma forma dizer algo numa voz artística. O artista tem uma responsabilidade na comunidade, uma responsabilidade social, uma responsabilidade política.
Não há arte sem esta responsabilidade? Não se pode libertar dela?
No Quénia é difícil, mas é possível. É possível trabalhar em total isolamento e ignorá-la. Mas eu penso que a arte e a cultura são a única salvação no Quénia, trazem o país ao âmago da sua identidade. Podemos voltar a desenvolver uma consciência cultural que se perdeu. Cada vez mais as pessoas nos aglomerados urbanos não identificam o que são, estão tão polarizadas nas suas políticas étnicas que estão constantemente a ver a tribo à frente. Não vêem a tribo como tal, vêm-na como um lugar de sobrevivência, como a sua própria sobrevivência. “Se eu sou a minha tribo, estou salvo para viver amanhã, porque estamos seguros quando temos alguém que nos lidere”. Então o sentido de liderança também se perdeu, porque tens que usar uma ferramenta que os políticos usam, a divisão pela tribo. Observo o desenvolvimento e impacto desse processo. Tento perceber o que posso fazer em palco com isso.
Dance Marathon.
Quando me falaste da Dance Marathon fiquei com a impressão de que também é algo muito político. Juntar os directores dos grupos de dança, mesmo que não tenham interesse em falar uns com os outros – podemos comparar isso à situação no Quénia e outros países.
Há tons e subtons. Não é uma afirmação política óbvia. Eu entendo a necessidade disto. O impacto que podemos ter como sociedade quando nos juntamos, o impacto que podemos ter como artistas, quando estamos juntos. Não estamos a construir muros em nome da competição. Se nós, como artistas, desenvolvermos uma voz e conhecermo-nos uns aos outros, conversarmos à mesa do café, aí podemos ver as possibilidades que existem. A necessidade que encontrei na Dance Marathon era a de fazer uma ponte, nem sequer uma ponte, antes destruir as pontes e congregar o rio. Já fizemos as pontes. É antes trazer os artistas para onde já não há pontes, podem entrar e sair. Desenvolver um sentido de comunidade dentro da comunidade artística. A arte é uma comunidade mas eles não são uma comunidade. Desenvolver este tipo de relações desenvolve uma voz. Uma vez que tens uma voz forte, é fácil passar para o próximo programa. E este é estar em harmonia com a comunidade. Como é que os artistas e a comunidade se juntam? A Dance Marathon põe esta questão. Juntar no mínimo 500 pessoas e reunir 40 artistas que façam a mobilização. E depois tentar trabalhar durante seis horas numa maratona, onde estão envolvidos músicos, percussionistas, bailarinos, voluntários, organizações comunitárias, diferentes gerações. Com isto, começas a desenvolver uma cultura – a da comunidade. O tema em 2009 foi o desfazer as fronteiras, que saiu da violência pós-eleitoral onde foram criadas fronteiras durante três meses. Ao eliminar estas fronteiras, juntar pessoas para rir, cansarem-se pelo esforço físico e pelo desafio – no fim do dia sentem algo diferente por si mesmos. Terminam o dia com uma outra perspectiva. Ao construir este sentido, as pessoas ficam curiosas e podem também libertar-se, um dia para se soltarem. Juntar diferentes pessoas era também entrar nesta ideia de divisão criada pela política, sacar uma mensagem, afirmar que a cultura e a arte podem de facto juntar as pessoas.
É este o impacto que a arte e a cultura conseguem causar, encaminhar as pessoas para um encontro, para dizerem algo, olhar os resultados, construir sobre isso num panorama mais geral. Não o fazer apenas em Nairobi mas em toda a nação, em cerca de dez cidades ao mesmo tempo. Tentar trazer de volta a cultura da comunidade, apagar fronteiras e deixar as pessoas descobrirem por si mesmas as coisas novas que estão aqui implicadas. Chegar a ser uma parte política da cena. Levar todo o país a apreciar-se um ao outro em algum ponto no futuro. Num dia, num ano, a nação chegará a apreciar-se uma à outra. Este é o sonho maior e a ideia da Dance Marathon é iniciá-lo, num ponto mais pequeno.
Porque é importante fazer a Dance Marathon em Colónia?
Para mim é uma surpresa e um elogio no sentido em que nunca tinha pensado tão longe, nunca tinha atravessado as fronteiras. Só via Nairobi e Quénia. E agora estou aqui, num intercâmbio de residências e este é um dos benefícios deste intercâmbio. Conheces novas pessoas e contactos, e em conversa e no diálogo algo se propõe a si mesmo. Quanto mais oiço falar em realizar a Dance Marathon em Colónia mais me dá esperança de realizá-la numa maior escala em Nairobi, porque as pessoas vêem a ideia adoptada, fizeram-no em Colónia, aconteceu lá fora. Algo que é mais apreciado fora do que dentro do teu próprio país, o que funciona neste caso. E também descobrir como é que a situação aqui pode ter impacto, porque aqui é diferente e as pessoas têm a suas próprias pequenas fronteiras. Estou curioso para ver isso, qual o resultado ao fim de alguns meses. Será que as pessoas falam umas com as outras, foram a tal lugar, têm uma sensação diferente, haverá um impacto? Realizá-lo aqui é uma boa extensão e um elogio e desenvolve ligações entre Colónia e Nairobi. Esta actividade criativa está a criar um diálogo cultural entre ambas as cidades. Isto é uma conquista, não foi planeado mas aconteceu por si mesmo.
GLOSSÁRIO
DANCE FORUM NAIROBI – DF-N: associação de quatro grupos de dança contemporânea a trabalhar em Nairobi.
NAIROBI SOLOS SND DUETS: uma plataforma anual para obras contemporâneas, que acontece em Nairobi, em Novembro.
DANCE MONTAGE TRAINING PROGRAM: um projecto-piloto de três anos para o desenvolvimento de uma escola de dança contemporânea.
DANCE MARATHON: evento de seis horas que funciona como plataforma onde se juntam diferentes artistas.
VISA TO DANCE: uma plataforma anual de dança contemporânea em Dar es Salaam na Tanzânia, que acontece Outubro.
DANCE WEEK: uma plataforma de artes performativas para todo o tipo de práticas artísticas, que acontece sobretudo em Fevereiro em Kumpala.
Contacto: oirokepa@yahoo.com
Esta é a primeira de uma série de conversas com bailarinos contemporâneos. A conversa aconteceu em Colónia, na Alemanha, durante uma residência artística, entre Outubro de 2009 e Março de 2010.