A Beleza da Arquitectura Elusiva –exposição de António Ole “Na pele da cidade”

O local não é uma prisão;

é composto por mapas e histórias

materiais mas inacabados.

James Clifford[1]

'Na Margem da Zona Limite', Johannesburg Biennale, 1995'Na Margem da Zona Limite', Johannesburg Biennale, 1995

No seu projecto de exposição Na pele da cidade, António Ole fala sobre espaço. Trata-se de uma exposição sobre a sua cidade natal Luanda, mas poderia ser sobre qualquer outra cidade. É um local onde ele parou, numa das suas muitas viagens, para absorver as suas particularidades; para absorvê-las e permitir que se entranhem na sua própria pele. Nos últimos anos, ele visitou diversos lugares e viajou ao encontro de diversas exposições do mundo internacional da arte. Esteve em Washington (Artists in Dialogue [Artistas em Diálogo], Museu Nacional de Arte Africana, Instituto Smithsoniano), Bayreuth (Hidden Pages [Páginas Escondidas], Casa Iwalewa) e Nairobi (Contrary Alignment [Alinhamento Contrário], Instituto Goethe), só para mencionar alguns exemplos. Ainda este ano de 2010 um projecto para a exposição Who knows tomorrow [Quem conhece o amanhã] irá voltar à Alemanha para expor numa parte da estação de caminhos-de-ferro de Hamburgo – uma das salas de exposição mais prestigiadas na Alemanha – com uma enorme ‘skin’ [pele], continuando assim a desenvolver o conceito das Township Walls [Paredes Municipais].

A exposição In the skin of the city 

António Ole persegue este conceito e transfere-o para a exposição In the Skin of the City (que esteve em Luanda em 2009). As paredes são a pele das cidades, de forma alguma impenetráveis, mas que tal como as Township Walls vêm equipadas com janelas e portas oficiais e também com passagens não oficiais. A pele da cidade que António Ole mostra, situa-se no cimo das zonas periféricas, que já conhecemos de uma das suas famosas instalações: Na Margem da Zona Limite. Esta pele representa uma fronteira que por vezes parece intransponível, mas que também oferece escapatórias. As fronteiras podem despertar a inflexibilidade mas também a criatividade das pessoas. Testa-se o potencial para a transgressão, e os trilhos ilegais por cima ou por baixo das fronteiras instalam-se. Trazem-se vestígios das ruas arenosas dos subúrbios para as estradas limpas do centro da cidade. Dá-se início à osmose e a fronteira torna-se cada vez mais frágil.

'Na Margem da Zona Limite' (detail), Johannesburg Biennale, 1995'Na Margem da Zona Limite' (detail), Johannesburg Biennale, 1995'O Olhar em Viagem', 2003'O Olhar em Viagem', 2003

No entanto, estas fronteiras não são feitas apenas de paredes de aço ondulado e de outros materiais residuais, mas existem também como fronteiras invisíveis no imaginário das pessoas que vivem de cada lado. Essas pessoas, que encontraram caminhos para atravessarem as barreiras, conseguem muitas vezes atravessar as fronteiras. Aqui, a fronteira funciona como zona de contacto aberta[2], permeável e permutável. Neste cruzamento dá-se uma confrontação de visões sobre o mundo, é onde o grito de liberdade ultrapassou as paredes do império colonial narcisista. De um lado da pele que nos é apresentada, encontramos estradas de macadame, a segurança da arquitectura colonial, a vida urbana, a cidade do asfalto.  Do outro, encontramos ruas arenosas, a vitalidade de uma arquitectura flexível que está pronta a mudar num só dia, a terra batida. As paredes são encaixadas umas nas outras e acamadas como um palimpsesto.  Nas fotografias e instalações de António Ole, encontramos instantâneos dessa arquitectura passageira, que se altera constantemente devido à sua proximidade com a vida humana.  A rapidez com que esses espaços vitais modificáveis se alteram e como em apenas uma semana podem ser transformados em novos espaços, sempre o fascinou. Esta visão sobre formações efémeras pode denotar-se na fotografias dos musseques [3] dos anos setenta, e à qual voltaria passados trinta anos com as suas instalações. 

Township Wall

Na exposição está patente uma das famosas Township Walls, de António Olé, que foi construída em 2004, em Düsseldorf (Alemanha). Para além de encontrarmos relíquias das ruas e cidades alemãs nesta parede, ela representa ainda todas as outras cidades onde construiu uma Township Wall, tais como Chicago (2001), Veneza (2003), Lisboa (2004) e Washington (2009).

'Township Wall', Chicago, 2001'Township Wall', Chicago, 2001

A exposição exibe também imagens dessas outras paredes e revela também a especificidade de cada cidade. Em Luanda, é ainda possível ver uma série dessas paredes frágeis, escapatórias e caminhos secretos, escondidas na selva urbana. Para lá das fronteiras da cidade de asfalto chegamos à periferia arenosa, onde não existem mapas e as ruas buscam constantemente novos nomes e direcções.

António Ole descreve esta Township-Wall como uma das suas obras de arte mais importantes, uma vez que se trata de um símbolo do seu desenvolvimento artístico, combinando objectos encontrados e cores brilhantes, num estilo pop art. Estes aspectos são dois dos fios condutores mais importantes da sua obra. Passou por várias fases em que utilizava diferentes meios (por exemplo, a ilustração, a pintura, a fotografia e a filmagem) e nos últimos anos descobriu ainda a qualidade de várias combinações destes métodos. Enquanto encontramos uma concentração nas suas instalações de grande escala nas exposições internacionais, António Ole sempre continuou a produzir pequenas obras de arte utilizando meios simples, tais como papel artesanal e pigmentos. Na exposição In the Skin of the City podemos ver ambos os tipos de trabalho em evidência.

'Township Wall', Culturgest, Lisbon, 2003'Township Wall', Culturgest, Lisbon, 2003

'Township Wall', Africa Remix, Dusseldorf, 2004'Township Wall', Africa Remix, Dusseldorf, 2004

Fotografia

António Ole iniciou a sua carreira artística em 1967 com a pintura e as ilustrações, bem como com recurso à fotografia. Na altura, fotografava as pessoas dos musseques de Luanda e os respectivos espaços do dia-a-dia. Nas suas fotografias, tenta encontrar uma forma de converter o quotidiano em arte, para nos mostrar os processos vitais que se passam em segundo plano.[4]

Nestas fotografias a preto e branco, António Ole conseguiu registar momentos efémeros de decadência. As fotografias são instantâneos de tempos de agitação, antes e depois da independência, quando o grito de liberdade nas ruas de Luanda era evidente.  Na exposição, podemos encontrar uma fotografia da mesma parede a preto e branco e a cores.  António Ole, alguns anos depois de ter tirado a primeira fotografia, regressou ao mesmo local e revela-se perante os seus olhos uma situação completamente diferente.

'Township Wall', Venice Biennale, 2003'Township Wall', Venice Biennale, 2003

Trinta anos mais tarde lançou um olhar idêntico sobre as paredes de casas degradadas na península de Mussulo, que ele converteu em quatro dípticos de grande escala (1998). Aproximou-se ainda mais do seu anterior tema com as recentes imagens de paredes em ruínas, mostrando o detalhe das estruturas, como por exemplo no tríptico Urban Choices II [Escolhas Urbanas II] (2000). A pintura está a descascar e várias camadas ficam visíveis. O graffiti assemelha-se a sinais caligráficos e as cores das camadas de tinta que se desfazem em lascas evocam a ideia de pele levantada. Nos grandes planos os traços nas paredes fazem lembrar cicatrizes na pele da cidade, mas também criam um desenho que apenas se revela a si próprio se estivermos preparados para assumir uma perspectiva que poderia ser igual à de uma salamandra, bastante intimista e em câmara lenta.

'Casas da Xicala', 1976'Casas da Xicala', 1976

Os trípticos Urban Choices II (2000) e Silent Voices II [Vozes Silenciosas II] falam outra língua, mas também se referem à experiência da vida na cidade. Urban Choices II consiste numa visão inteligente e enérgica de uma cena do quotidiano em Luanda. António Ole tirou esta fotografia no Mercado de S. Paulo, onde é possível encontrar tudo, desde vasos de plástico monocromáticos até uma colecção de santos. O outro trabalho, Silent Voices II, é praticamente o contrário, na sua composição muito minimalista. Enquanto nos perdemos nos detalhes do trabalho anterior, é a impressionante simplicidade do outro que nos convida a ponderar calmamente o momento delicado entre o dia e a noite.

'Sambizanga', 1977'Sambizanga', 1977

Pintura, colagem e filmagem

Podemos encontrar uma visão semelhante nas filmagens e nas pinturas de António Olé. O aspecto mais intrigante das suas obras de arte é o sentido de combinar a cor e a forma, numa composição estética. Seja a matéria-prima objectos encontrados em sucatas ou uma perspectiva pouco habitual sobre um raio de luz, o artista trabalha constantemente para obter um equilíbrio entre os objectos.

Na exposição, são exibidos alguns fotogramas do filme O Ritmo do Ngola Ritmos, onde podemos ver uma série de portas e janelas. Para estes planos, António Ole deixou-se novamente conduzir pela visão de um arquitecto, para procurar locais na cidade precisamente com esta qualidade estética. Outra obra de arte na exposição é a peça mista Rebôco (2001). Nesta peça, António Ole combinou materiais como cimento, papel e madeira, juntamente com tinta acrílica e pigmentos azuis, para formar uma colagem impressionante. A mesma qualidade fragmentada pode ser vista nas duas colagens Personagens e paisagens domésticas revisitadas (2003). Para estas peças, António Ole reuniu segmentos de paredes com os restos de tinta acrílica azul e colou-os em papel artesanal.. O resultado são duas peças frágeis que conseguem uma vez mais expressar a particularidade da pele levantada da cidade.

O Ritmo do Ngola Ritmos, film still.O Ritmo do Ngola Ritmos, film still.

António Ole tenta combinar todas estas experiências nesta exposição, permitindo várias perspectivas sobre a pele da cidade. As obras de arte foram produzidas em diferentes fases, mas a continuidade é evidente: a análise artística às zonas limítrofes, onde a cidade asfaltada e os musseques se encontram. A vida para além das ruas de asfalto é um dos temas que encontramos repetidamente na obra de António Ole. Tenta captar momentos vividos, antes que estes desapareçam para sempre e, ao fazê-lo, permite-nos aceder a um arquivo íntimo de impressões que afectaram as suas próprias camadas exteriores de pele. O passado deixou as suas marcas, corroendo as feridas de guerras passadas e dos tempos de carência. Não será possível curar essas feridas enquanto estas estiverem abertas. Têm de secar e purificar de dentro para fora. Desde as camadas exteriores de pele, feridas, até ao núcleo, é este o caminho que António Ole nos leva a percorrer até às suas obras de arte.

'Sem Título', 1998'Sem Título', 1998'Sem Título', 1998'Sem Título', 1998

 

Artigo originalmente publicado no ARTAFRICA 

 


[1] Alex Coles, Site-specificity (Black Dog Publishing, 2000), 58.

[2] Cf. Mary Louise Pratt, Imperial eyes [Os Olhos do Império] (Routledge, 1992).

[3] Designação local dos subúrbios à volta de Luanda.

[4] Cf. Lisa Saltzman, Making memory matter [Fazer valer a memória] (University of Chicago Press, 2006), 98.

por Nadine Siegert
Cara a cara | 26 Novembro 2010 | António Ole, instalação, pintura