O que resta depois do Carnaval: Liceu, Mingas, o hino e a bandeira I Um passo atrás

Quando voltei 

as casuarinas tinham desaparecido da cidade

E também tu 

Amigo Liceu 

voz consoladora dos ritmos quentes da farra 

nas noites dos sábados infalíveis

Agostinho Neto em “O Içar da Bandeira”1


Antes de criar os Ngola Ritmos, unanimemente considerado o conjunto musical fundador da chamada Música Popular Angolana, Liceu Vieira Dias fazia parte de uma banda de MPB2 chamada “Grupo dos Sambas”. Segundo o próprio, teria sido o contacto com a música brasileira a porta de entrada para uma valorização das nossas músicas. 

Reza a história que Liceu percorrera o interior do país acompanhando o seu pai nas suas viagens de trabalho. Foi durante essas viagens que teve contacto com a Angola rural do Contrato. Esta era uma Angola diferente daquela vivida pelo círculo de angolanos assimilados em que Liceu estava inserido na capital. As viagens certamente terão tido um profundo impacto no seu sentimento nacionalista, sentimento esse que, anos depois, se tornou subversivo demais para a PIDE. Liceu integrou a lista do famoso Processo dos 50 e passou mais de uma década preso no Campo de Concentração do Tarrafal, em Cabo Verde. 

Mas o regime colonial de Salazar não foi a tempo de travar um outro processo do qual Liceu não só fez parte como é um dos seus mais reconhecidos precursores. É que durante as excursões com o seu pai, o jovem músico também recolheu ritmos, cânticos e histórias em kimbundo que vieram a ser matéria prima para uma nova tradução poética e musical urbana que, podemos afirmar sem medo, nasce no dedilhar do seu violão: o Semba.

A 26 de agosto de 1970, a RTP transmitiu uma entrevista com Ruy Mingas para o magazine cultural “Ensaio”. As imagens a preto e branco mostram-nos um homem alto e elegante, com uma relaxada camisa de manga curta aberta até ao peito, no auge dos seus 30 anos, sentado num sofá a refletir eloquentemente sobre a relação com a sua terra, com a música e com o desporto. 

Eu comecei a cantar bastante miúdo, e digo que comecei a cantar sob a influência de um tio, Vieira Dias, que é talvez o maior expoente da música folclórica angolana. E não há dúvida que os momentos que eu passei junto dele exerceram uma influência enorme, na medida em que eu me deliciava ao ouvi-lo tocar músicas de Angola. E eu fui-me animando com a ideia de cantar também canções da minha terra.

 Carnaval da Vitória, António Ole, 1978Carnaval da Vitória, António Ole, 1978

A triste partida de Ruy Mingas, no dia 4 de janeiro deste ano, fez-me dar um passo atrás, regressar a esses anos e à história paralela, não suficientemente explorada, entre o nascimento de uma nação e o nascimento do Semba. Frequentemente me parece que o papel da cultura e, em especial, da música popular é subvalorizado em relação ao seu real contributo para a derrota do colonialismo português em Angola, não só desde o ponto de vista de uma oposição identitária clara e intuitiva (os nossos ritmos, as nossas línguas, as nossas danças, a relação com os nossos antepassados), mas também na medida em que os espaços de convívio onde essa música era tocada ao vivo (as farras, os clubes, etc.) eram epicentros da clandestinidade e da mobilização política efetiva, uma ideia brilhantemente defendida por Marissa J. Moorman, no seu livro Intonations: A Social History of Music and Nation in Luanda, Angola, from 1945 to Recent Times.

Dizer que Mingas tinha o coração dividido entre a música e o desporto seria, talvez, uma imprecisão. O músico nunca escondeu a sua paixão pelo atletismo (ganhou vários títulos como atleta do Benfica), como não escondeu desde o início uma vocação para o ensino. Durante a entrevista ao programa “Ensaio”, há mais de 50 anos, chega a afirmar:

Tenho a impressão que se alguma vez eu deixasse de trabalhar para o atletismo para me dedicar ao canto, única e simplesmente, sentir-me-ia frustrado. Quer dizer, se eu tivesse que cantar e um dia que voltasse às pistas e visse malta a treinar, a saltar, a correr e não me sentisse ligado a estes atletas, não me sentisse com possibilidades de ensinar-lhes a passar uma barreira, ou dar-lhes uma noção sobre iniciação de salto em comprimento ou salto em altura, isso dar-me-ia, de certeza absoluta, uma sensação de frustração, porque não há dúvida de que a coisa que eu efetivamente gosto e que me realizará será a educação física.

Considero esta passagem da entrevista muito comovente. Mingas pôde, pelo menos em parte, realizar a sua vocação para o ensino no projeto da Universidade Lusíada de Luanda. Desconheço se teve ou não a oportunidade de continuar a alimentar a sua paixão pelo desporto ao longo da sua vida. O que sei, com absoluta certeza, é que o seu contributo para a música angolana é monumental. Pessoalmente, sempre me inspirou a sua missão de trazer a poesia para os ouvidos das pessoas, musicando versos de poetas como Viriato da Cruz (autor de “Mazeku”), Mário António Oliveira (“Poema da Farra” também conhecido como “Morro da Maianga”), Ernesto Lara Filho (“Flor de Maracujá”), António Jacinto (“Monangambé”) ou mesmo Agostinho Neto (“Adeus na hora da largada”), entre muitos outros. “Eu crio música com muita facilidade, leio um poema, sinto a sua musicalidade e passados dez minutos estou a musicar.”, contava Ruy Mingas numa entrevista à Marta Lança, em 2006, no BUALA, a propósito do lançamento do seu álbum Memória. “Farei isso sempre que estiver na presença de um grande poema.” 

No passado dia 2 de fevereiro, quando começou a tocar o hino nacional no Estádio Félix Houphouët-Boigny, em Abidjan, e vi a selecção masculina de futebol a cantar as palavras de Manuel Rui Monteiro musicadas por Ruy Mingas, senti o que normalmente sinto quando oiço o “Angola Avante!”. Como todos os angolanos, estava consciente do que significaria para a moral geral do país uma vitória de Angola frente à Nigéria no Campeonato Africano das Nações. Mais, estava consciente de que aquela música me unia emocionalmente a outros milhões de angolanos espalhados pelo mundo naquele instante. 

Duas perguntas têm permanecido na minha cabeça desde então. Será esse um poder da música, do desporto ou do nacionalismo? E, noutro plano, o que sentiriam Manuel Rui e Ruy Mingas, os autores daquela canção, ao ouvi-la tocar naquele estádio? 

É muito fácil esquecer que os hinos nacionais, as bandeiras e as insígnias foram criadas por mãos humanas, gente como nós. O processo de sacralização desses símbolos, como se tivessem sido obra de um deus no início dos tempos, como se sempre tivessem estado ali, como se fossem invioláveis e imutáveis, é uma espécie de pacto coletivo, não necessariamente consensual, muitas vezes implicando a existência de uma bandeira vencida e outra vencedora. Esse é, como sabemos, o caso de Angola, onde a bandeira vencedora triunfou sobre as outras.

Quando eu era criança, passei muitos anos a desenhar a bandeira do MPLA pensando que era a bandeira de Angola. De certeza que não fui a única. A similaridade entre a bandeira de Angola e a do MPLA não é por acaso. Não é por acaso que um dos slogans mais gritados nos anos 70 e 80 era “O MLPA é o povo e o povo é o MPLA”, como se no avesso dessas palavras estivesse o seguinte raciocínio:

 

  • Angola é formada por todos os angolanos.
  • Todos os angolanos são do MPLA.
  • Logo, Angola é do MPLA.

 

Contudo, não é preciso ter um doutorado em retórica para entender que a segunda premissa é falsa, invalidando, portanto, a sua conclusão. Mas por mais lógico que seja pensar que, naturalmente, nem todos os angolanos militam ou gostam ou aprovam o MPLA, essa é, até hoje, uma ideia difícil de digerir, em especial pelos seus militantes e praticamente por todos os seus governantes. Pelo menos até ao final da era José Eduardo dos Santos, não se ser do MPLA era, para muitos, equivalente a ser “anti-patriota ao mando de potências estrangeiras”. Aliás, até hoje essa cartada é jogada para atacar angolanos que critiquem a má governação ou a falta de rumo do país. Por experiência própria, é uma cartada que funciona. Por mais irracional que seja, ela fere qualquer coisa aqui dentro, a mesma parte de nós que se comove com o hino. É possível, no entanto, ser-se nacionalista sem se ser do MPLA, assim como é possível querer o melhor para o país sem se ser nacionalista. 

Outra conversa que devemos ter é como a cultura popular é frequentemente instrumentalizada politicamente, como Salazar fez com Amália e Eusébio. No nosso caso, com as devidas distâncias, o MPLA, desde a sua criação até aos dias de hoje, tem como estratégia de comunicação (na altura chamava-se propaganda) a apropriação da cultura popular para promoção dos seus próprios interesses, contribuindo para uma enorme confusão identitária, psicológica e emocional que é manifestamente difícil de ultrapassar. Se o nacionalismo foi necessário e indispensável para combater o colonialismo português e conquistar a Independência, qual é a sua relevância para os desafios que o país enfrenta hoje?

Hinos e bandeiras são símbolos artificiais que decidimos aceitar como representações da nação, implicando, num salto mental verdadeiramente fascinante, que uma parte de nós está ali representada. Os símbolos vêm, portanto, depois da nação. Mas o que é que vem antes da nação?

Perguntas grandes geram quase sempre respostas insatisfatórias. Ainda assim, arrisco dizer que o que vem antes da nação são as pessoas e aquilo que as une. É a cultura, e não a imposição de uma bandeira, aquilo que une as pessoas à volta de uma identidade. O desporto une as pessoas. Assim foi com o Atlético de Luanda ou o Bota-Fogo ou os Palancas Negras, ou as vitórias no basquete e no andebol feminino. A poesia e a literatura, ainda que num âmbito mais restrito, alimentam um imaginário coletivo partilhado. O semba de Vieira Dias, as farras d’Os Kiezos, a voz de Ruy Mingas, os sucessos de Artur Nunes e David Zé, o carnaval, a rebita, o kazukuta: foram esses os rituais que uniram os angolanos nas principais cidades, lugares que são, queiramos ou não, os espaços que movem a política e que deram o necessário alento à luta armada. Aquilo a que chamamos de “angolanidade” foi “inventado” por essas pessoas: atletas, futebolistas, tocadores de dikanza, dançarinos carnavalescos, poetas e cantores. Sem eles, resta muito pouco. 

  • 1. Neto, Agostinho. Sagrada Esperança. 10ª ed. Lisboa, Sá da Costa, 1978.
  • 2. Música Popular Brasileira.

por Aline Frazão
Palcos | 15 Fevereiro 2024 | angola, cultura popular, hino, mpla, música, nacionalismo, Ruy Mingas, um passo atrás