Infância em tempos de guerra: Sarajevo, Luanda, Gaza I Um passo atrás
Naquela manhã de outono saí do hotel e caminhei em direção ao centro, onde ficavam alguns dos museus que queria visitar em Sarajevo. Pelo caminho, depois de passar por um enorme centro comercial repleto de ecrãs luminosos e logotipos familiares, encontrei à beira do Rio Miljacka uma placa informativa. Dizia que ali, em 1914, em frente àquela ponte otomana feita de pedra, um homem chamado Gavrilo Princip, membro da organização nacionalista sérvia “Mão Negra”, assassinou o arquiduque Francisco Ferdinando e a sua esposa Sofia, no acontecimento que iria despoletar na Primeira Guerra Mundial. Fiz uma pausa. Isso de estar ali, onde tudo aconteceu, é o tipo de situação que me costuma provocar uma certa falta de ar. Parece que tudo re-acontece no plano da imaginação, numa cirúrgica incursão do passado no presente. Olhei o rio a correr ali embaixo, indiferente. A enorme montanha vestida de outono do meu lado esquerdo devolveu-me a mirada, quieta. Na outra margem do rio dava para ver a torre da Mesquita Bakr-babina, a poucos metros de uma Sinagoga Ashkenazi. O meu peito batia forte. Como pode? É tanta história aqui.
Em outubro de 2022 visitei a cidade de Sarajevo com a companhia italiana de Pippo Delbono, a convite do Festival Internacional de Teatro Mess. A nossa passagem pela capital da Bósnia e Herzegovina incluiu dois dias de folga que me permitiram saciar a minha curiosidade pela história daquele lugar que me transmitiu uma inesperada familiaridade. Havia uma sincronia temporal entre aquela guerra e a Guerra Civil angolana nos anos 90, para além da relação marcante com o bloco socialista. Sempre que visito países da Ex-Jugoslávia, imagino o meu pai a chegar ali como bolseiro angolano no inverno de 1980. Não passou assim tanto tempo. Desde a estrada que vai do Aeroporto Nikola Tesla até ao centro da cidade ainda se pode ver as marcas dos confrontos dos anos 90 cravadas nas paredes externas dos edifícios, como feridas expostas que ali permanecem. Como em Angola. Essas marcas testemunham, no presente do indicativo.
Sarajevo é um desses lugares de fronteira entre o oriente e o ocidente, historicamente disputada entre impérios, culturas e religiões, atravessada por ciclos de socialismo e capitalismo, guerra e paz. Para quem, como eu, não tem memória de ver as notícias da Guerra da Bósnia na televisão, vamos dar um passo atrás. Entre abril de 1992 e fevereiro de 1996, Sarajevo esteve sujeita a um longo cerco militar levado a cabo pelas forças sérvias. Como todos os conflitos étnicos, esta não é uma história simples. Em outubro de 1991, dois anos depois da queda do Muro de Berlim, a República da Jugoslávia desfazia-se para sempre e a Bósnia e Herzegovina, na altura com uma maioria bosníaca-muçulmana, quis declarar a sua independência. Mas os sérvios não aceitaram e, em abril de 1992, as suas tropas cercaram Sarajevo, instalando-se nas montanhas à volta da cidade. A guerra começou, com fortes bombardeamentos que destruíram mercados, hospitais e centros culturais bósnios, com a atuação indiscriminada de snipers sobre transeuntes anónimos e também com uma severa restrição à entrada de mercadorias na cidade. Alguns dos responsáveis do exército sérvio foram mais tarde julgados e condenados por terem praticado crimes de guerra.
Anos 90. Essa foi a década da minha infância. Foi o primeiro pensamento que me ocorreu assim que entrei no War Childhood Museum - o Museu da Infância em Tempos de Guerra. O segundo foi a epifania de me aperceber, pela primeira vez, que também eu tinha vivido a minha infância em tempos de guerra. Não só eu como toda a minha geração e também a geração dos meus pais viveu a infância e adolescência durante a luta de libertação. Entendam-me, não é que eu não soubesse desse facto. Mas agora eu entendia, porque existia um museu no mundo, o único, dedicado a honrar a experiência de infâncias afetadas pela guerra e refletir sobre isso.
Percorri o circuito do pequeno museu com emoções velhas e outras novas que não sabia que levava dentro. A exposição é formada por variados objectos acompanhados das suas respectivas histórias, contadas na primeira pessoa. Hoje adultos, ontem crianças. O projeto começou em 2010, com uma pergunta postada no blog de um jovem de Sarajevo nascido, tal como eu, em 1988. Dirigindo-se à sua geração, perguntou: “Como foi a infância em tempos de guerra para ti?” As respostas chegaram às centenas e foram reunidas num livro. Mais tarde, surgiu a necessidade de contar essas histórias através de objectos. Assim explica Jasminko Halilovic, criador do projeto e fundador do museu:
“During the two and a half years of working on the book ‘War Childhood: Sarajevo 1992 – 1995,’ I had the chance to meet hundreds of participants and hear their stories and testimonies. I learned that growing up in a war is complex, insufficiently researched and universal experience. Many of participants described or showed their war memories to me: personal items, photographs, diaries, letters, drawings and other documents. Twenty years after the war, a large number of these were lost during relocation, accidentally thrown away or permanently damaged. In May 2012, I wrote the first draft of the concept of ‘War Childhood Museum.’ My dream was to store these memories in a museum in order to preserve them permanently.”
Recordo alguns dos objetos e as suas histórias: “aquela era a cadeira onde eu esperava o regresso do meu pai quando ele ia para a frente de combate; aquela foi roupa que levei no corpo quando eu e a minha mãe deixamos o nosso apartamento em Sarajevo; esta foi a carta que recebi de uma rapariga em França através de um programa de correspondência da UNICEF; estas são as coisas que vinham no pacote de ajuda humanitária”, etc. São fragmentos de memórias, retalhos, pequenos episódios relatados através do olhar de quem era criança na altura, compondo uma colecção cheia de camadas, sobre uma época onde vida, morte, luto, medo, diversão, travessuras, saudade, ferimentos, estadias no hospital, brinquedos, ajuda humanitária, jogos, aventura, restos de explosivos e balas, arame farpado, fuga, fome, sonhos e criatividade se misturavam. O museu conta ainda com objetos e testemunhos de crianças que vivem ou viveram guerras mais recentes, no Afeganistão ou na Ucrânia.
As guerras não são todas iguais e as infâncias em tempos de guerra também não. Esta foi uma guerra em solo europeu e é preciso delinear as devidas distâncias quando fazemos comparações. Mas há algo de universal no sofrimento humano em tempos de guerra, uma agonia avassaladora quando a violência ultrapassa os limites do absurdo. E quando falamos de crianças, como as vítimas mais inocentes, vulneráveis e mais negligenciadas de uma guerra, o entendimento da noção de “absurdo” arde como queimadura à flor da pele.
Não gosto de falar sobre 92. Não gosto de lembrar o que foi crescer na capital de um país em guerra, observando em silêncio a tensão dos adultos com as notícias na rádio, vendo os enlatados acumulados na dispensa, fingindo não prestar atenção aos relatos de quem chegava de uma viagem às províncias, observando do outro lado do vidro do carro os mutilados nos semáforos, os capacetes azuis nas carrinhas de caixa aberta com logotipos da UN, os deslocados recém-chegados à cidade e, acima de tudo, não gosto de lembrar das crianças da minha idade ou mais novas, sozinhas, órfãs, a dormir nas ruas da Baixa sobre caixas de papelão. Pessoalmente, morando em Luanda, exceptuando alguns fatídicos dias de 92, não vivi no epicentro dos confrontos, mas a guerra foi uma realidade no centro das vidas de todos os angolanos e angolanas. Depois de visitar o War Childhood Museum, ficou-me na cabeça uma pergunta insistente, que me trouxe até à escrita destas linhas. E se nós começássemos a falar sobre isso?
Antes de acabar o dia em Sarajevo, sabia que havia uma última paragem obrigatória. Segui caminho para a “Galeria 11/07/95”, que reúne uma coleção de fotografias e testemunhos sobre o Genocídio de Srebrenica. Aquele pequeno museu relata com a crueldade dos detalhes como foi cada um dos 14 dias de absoluto terror, durante os quais mais de oito mil bósnios muçulmanos foram mortos pelo exército sérvio na região de Srebrenica, a cerca de 130 quilómetros de Sarajevo.
Hoje, um ano depois desta viagem, não posso deixar de pensar nas crianças de Gaza e na terrível tragédia que irá prolongar correntes de trauma, ódio, luto e irreparável dor por muitas décadas. Mas quando escrevo a palavra “irreparável”, páro e reparo. Recordo o legado de Nelson Mandela na reconciliação da África do Sul pós-Apartheid. Recordo as reflexões de Hannah Arendt sobre a “banalidade do mal” depois do Holocausto. Recordo o trabalho da Comissão Nacional da Verdade no Brasil e as Madres de la Plaza de Mayo na Argentina. Recordo a voz de Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan e Nina Simone como testemunhos de reinvenção e sobrevivência à violência racista da segregação estado-unidense. Recordo os livros de Conceição Evaristo, recordo os ensinamentos de Ailton Krenak, recordo a melancolia na voz de Cesária Évora, a alegria das rodas de samba, as glórias do Pelé e como o futebol português mexe com as emoções de tantos angolanos ainda hoje.
Talvez o esforço de reconciliação entre vítimas e agressores - dois lugares por vezes ocupados simultaneamente pelos mesmos sujeitos - não sirva para curar as feridas de quem viveu a fractura do conflito em si, mas sim para criar um espaço de possibilidade de re-invenção e reparação nas gerações futuras. Assim, o irreparável e o reparável podem coexistir no tempo dos vivos, com a condição inegociável de não deixar que o esquecimento apague aquilo que aconteceu, por mais insuportável que seja lembrar.
Devolvo a pergunta que Sarajevo me fez aos angolanos e angolanas, de todas as gerações, que me estejam a ler: como foi a infância em tempos de guerra para ti?