Peças para uma sombra iniciada e outros rituais mais ou menos

 Já se passaram mais de 20 anos desde que mergulhei profundamente no estudo da cultura angolana tendo, por motivos académicos e de opção pessoal, circunscrito o meu objecto de estudo às danças de máscaras e seus distintos contextos.
Assunto proibido às mulheres, nele me “iniciei”, numa espécie de transgressão, pela mão do meu mestre David Mwa Mudiando. Perto dele, passava tardes sem fim no Museu de Antropologia, ouvindo-o contar as histórias que ele herdara, sobre as personagens de um fantástico tão aterrador como fascinante, mas também sobre as máscaras, as suas verdades, as mentiras e os medos. E à medida que ele me confiava a sua vivência, eu escondia as minhas emoções em imagens privadas, processando apenas aquilo que me era exigido apresentar em forma de tese e de artigos científicos, verdadeiros amontoados de letras em palavras rebuscadas. Centenas de páginas com descrições, fundamentações, metodologias, hipóteses e conclusões sobre o que vira, ouvira e vivera foram escritas, destruídas, reformuladas, defendidas.
Em paralelo, gesto após gesto, passo após passo, dia após dia, fui aprendendo como se dança dentro das máscaras e ouvindo, de outros homens iniciados, as suas experiências.
Anos depois, regresso à coreografia (do grego, “escrita da dança”) para ‘escrever’ uma nova tese, desta vez organizada em formato não convencional, num exercício de partilha e reflexão sobre alguns dos muitos procedimentos, ocorrências e resultados de um longo processo de investigação.
A solidão do trabalho de campo; a entrevista como instrumento de pesquisa e a curiosidade como motivação. O objecto de estudo que nos surpreende e assusta. A aproximação, por vezes difícil, e as divagações que escapam ao investigador que as anota (quase em segredo) no seu diário. Depois, as histórias que se ouvem, os mitos, os tabus e uma infinidade de personagens que povoam a mente de quem quer e não quer ver tudo revelado. Entramos no universo das sombras, dos ogros, dos sonhos que se dissipam com os rituais de iniciação, enquanto outras inquietações sobram para nos perseguirem durante toda a vida. Um olhar sobre o que há de mais profundo no saber da tradição oral, mas também no íntimo de cada um de nós.

Sobre a insegurança da infância e a rebeldia da adolescência existe a mão do saber que nos afaga e alenta, muitas vezes sem sucesso, perante a imagem da máscara que, ao ultrapassar o domínio da matéria, pretende transcender o humano. Revelando uma outra identidade, esta “sombra” viva exige e testemunha o respeito pelos seus poderes e pelos rituais em que desafiamos os nossos temores, correndo os riscos que nos são impostos. Através deles mudaremos de estatuto e renasceremos.
  As emoções e os conflitos – onde corpos simples e corpos complexos, metamorfoses e mutações decorrem de provações que é preciso vencer para sermos aceites como novos, puros, mas diferentes – voltam a ser tema da Companhia de Dança Contemporânea de Angola. Apresentando um outro lado do trabalho de campo, a CDC propõe, no espectáculo Peças para uma sombra iniciada e outros rituais mais o menos, uma alternativa (não menos científica) de investimento para o produto da investigação.

Descobrem-se outras “máscaras” físicas, sociais e outros rituais: os mais ou menos, ou aqueles que se alicerçam num contexto actual e urbano; os ‘mais ou menos’ são ainda aqueles que nos iniciam no plano das emoções e dos sentimentos onde, em cada dia se visitam novos desconhecidos e se inauguram novas sombras.
E há sempre um afago que insiste, actualizando a tradição, um suporte inevitavelmente contemporâneo em todas as transições.

Sobre o espectáculo
Para além das suas vertentes patrimoniais, a dança angolana integra hoje a dança contemporânea introduzida e divulgada no nosso país pela Companhia de Dança Contemporânea de Angola (CDC), criada em Dezembro de 1991. Esta companhia, uma das primeiras do género em África, foi a primeira com estatuto profissional em Angola, porque constituída por bailarinos angolanos com formação em instituições especializadas.
Responsável pela ruptura estética e formal da dança angolana e com dezenas de obras originais e espectáculos produzidos em Angola e no estrangeiro, a CDC é a grande referência do género contemporâneo angolano tendo como base um profundo trabalho de investigação quer a nível das danças patrimoniais angolanas, quer a nível das dinâmicas sociais do nosso país.
Assim, e após um interregno de 10 anos, a CDC regressa com a mesma determinação com que começou e venceu as adversidades passadas, para retomar o seu projecto de revitalização da dança em Angola, agora com uma nova dinâmica e novas formas de suporte e de prolongamento da sua actividade, nomeadamente uma Oficina de Artes e uma Área de Projectos de intervenção comunitária.
O espectáculo Peças para uma sombra iniciada e outros rituais mais ou menos, onde a oratura angolana, as máscaras e os rituais de iniciação são matéria para a actualização da tradição enquanto suporte inevitavelmente contemporâneo em todas as transições.
foto de Malochafoto de MalochaAs emoções e os conflitos – onde corpos simples e corpos complexos, metamorfoses e mutações decorrem de provações que é preciso vencer para sermos aceites como novos, puros, mas diferentes – voltam a ser tema da Companhia de Dança Contemporânea de Angola. Apresentando um outro prisma do trabalho de campo, a CDC propõe um investimento diferente para o produto da investigação e uma leitura do texto científico em formato não convencional.
O mais recente espectáculo da CDC dá a descobrir outras “máscaras” físicas, sociais e outros rituais: os mais ou menos, ou aqueles que se alicerçam num contexto actual e urbano; os ‘mais ou menos’ são ainda aqueles que nos iniciam no plano das emoções e dos sentimentos onde, em cada dia se visitam novos desconhecidos e se inauguram novas sombras.
foto de Malochafoto de Malocha
coreografia e direcção artística: Ana Clara Guerra Marques; música de Victor Gama; percussão ao vivo de Abraão Kumba; figurinos de Nuno Guimarães e imagem e edição multimédia de João Paulo Costa.

 

COMPANHIA DE DANÇA CONTEMPORÂNEA DE ANGOLA
Constituída em 1991 nas então estruturas do Ministério da Cultura sob a designação de Conjunto Experimental de Dança (CED) e integrada por profissionais angolanos formados dentro das técnicas e estilos de dança académica universais (professores e alunos de maior nível técnico da Escola Nacional de Dança), a COMPANHIA DE DANÇA CONTEMPORÂNEA DE ANGOLA (CDC) faz a sua estreia no Teatro Avenida, em Luanda, no dia 27 de Dezembro desse ano, com a obra “A Propósito de Lweji”.
    A designação deste colectivo (CED) – o primeiro de dança profissional do género em Angola e um dos primeiros em África a produzir dança contemporânea – para Companhia de Dança Contemporânea é oficializada a 9 de Abril de 1993 por despacho do Ministério da Cultura, mantendo-se os mesmos integrantes, objectivos e metodologias de trabalho.
    Com o propósito de desenvolver e divulgar a dança contemporânea dentro e fora do país através da apresentação periódica e regular de espectáculos, em regime de temporadas, a CDC procurou diferentes vocabulários e novas linguagens, como forma de expressão, no âmbito da pesquisa e experimentação, surgindo assim uma proposta de revitalização da cultura de raiz tradicional e popular, pela utilização dos seus elementos na perspectiva da criação de novas estéticas para a dança angolana.        
    Com obras como “Corpusnágua”; “Solidão”; “1 Morto & os Vivos”, “Introversão versus Extroversão” ou “5 Estátuas para Masongi”, e com a intenção de tirar a dança dos palcos interiores dos teatros, a Companhia de Dança Contemporânea introduz, pela primeira vez em Angola, a utilização de espaços não convencionais como lugares com água, jardins, antigos locais de tertúlia ou galerias de arte, introduzindo os espectadores a novas formas e conceitos de espectáculo. Para estas criações trabalha em conjunto com alguns dos mais prestigiados escritores e artistas plásticos angolanos, entre os quais Manuel Rui Monteiro, Artur Pestana “Pepetela”, Frederico Ningi, Carlos Ferreira, Jorge Gumbe, Francisco Van-Dúnem “Van”, Masongi Afonso e António Ole.
    A utilização da dança como forma de intervenção, exprimindo e revelando aspectos inerentes ao homem enquanto cidadão do mundo e protagonista da cena social angolana, é outra das opções desta companhia como o reflectem as obras “Mea Culpa”; “Imagem & Movimento”, “Palmas”, “Por Favor!”; “Neste País…”, “Agora não dá! ‘Tou a Bumbar…” e “Os Quadros do Verso Vetusto”.
    Fundada e dirigida desde o início pela bailarina e coreógrafa Ana Clara Guerra Marques que, acreditando na criação de uma dança contemporânea angolana a partir da herança cultural africana, efectua estudos de investigação e pesquisa em várias regiões de Angola, a CDC foi responsável pela ruptura estética e formal da dança angolana, com dezenas de espectáculos produzidos e obras originais criadas. Para além das apresentações em Angola, a CDC representou a dança contemporânea angolana em vários países africanos vizinhos, na Europa e na Ásia, tendo o seu trabalho sido apreciado e testemunhado por milhares de espectadores.
    Dez anos após a sua paralisação (pela ausência da sua directora artística para o prosseguimento da sua graduação em dança fora de Angola), a CDC regressa com a mesma vontade e determinação com que começou e venceu obstáculos passados, para recuperar um antigo projecto, agora com uma nova dinâmica e novas formas de suporte e de prolongamento da sua actividade. Com esta iniciativa, a CDC compromete-se a repor, com profissionalismo e conhecimento, a visão do que se entende por dança contemporânea, através de uma proposta séria e baseada em profundo trabalho de investigação a vários níveis que visa procurar um caminho para a dança contemporânea em Angola.
Constituída por 11 elementos fixos e 4 colaboradores, a Companhia de Dança Contemporânea de Angola fez a sua reaparição com uma temporada de espectáculos realizados no mês de Setembro de 2009 com a obra “Peças para uma Sombra Iniciada e Outros Rituais Mais ou Menos”, na qual introduz em Angola a chamada “Dança Inclusiva”, reunindo em palco bailarinos e intérpretes com e sem deficiências físicas.
Porque a arte não existe apenas num âmbito de espectáculo, mas também noutras vertentes em que outros públicos a experimentam, a manipulam e criam produtos, sensações, descobrem vocações ou apenas desfrutam de momentos de prazer, o projecto da nova CDC integrará também uma OFICINA DE ARTES que fará uma ponte entre o ensino artístico, as artes e a comunidade, permitindo que esta se aproxime e ganhe com todas as possibilidades que o teatro, a dança, as artes plásticas e outras linguagens lhe proporcionam.
Divulgar, surpreender, ensinar, iniciar, ajudar a imaginar, levar as artes à comunidade e educar o sentido estético do público, trazendo-o à apreciação e exploração das diversas vertentes artísticas, num espaço de criação identificado e orientado por profissionais ajudará, temos disso a certeza, à educação, à descoberta de si, à felicidade e ao incremento e elevação cultural de toda a sociedade angolana.

por Ana Clara Guerra Marques
Palcos | 20 Junho 2010 | Ana Clara Guerra Marques, angola, dança contemporânea