Semba enquanto património imaterial: políticas, imagens e sonoridades da cultura em Angola - defesa de tese

Nota prévia: as ilustrações e design da apresentação foram da responsabilidade do artista @ROD

A tese intitulada “Semba enquanto património imaterial: políticas, imagens e sonoridades da cultura em Angola” explora o semba, uma expressão cultural artística de dança e música urbana, profundamente enraizada na cidade de Luanda. Analiso como este bem cultural tem sido transformado em património cultural imaterial enfrentando desafios como a patrimonialização, comercialização, objetificação e turistificação. A investigação contextualiza a iniciativa global de elevar gêneros musicais e de dança à categoria de património imaterial pela UNESCO e examina as políticas culturais do Estado angolano, nesta corrida ao património imaterial. Foco-me particularmente nas interações entre a comunidade de práticas do semba e comunidade autorizada do património, explorando como estas comunidades, grupos e indivíduos gerem, performam e representam o semba como património cultural intangível. 

 

Com esta pesquisa procurei contribuir para os diálogos entre comunidades e instituições, implicando-me nos debates sobre as estratégias de preservação e valorização do património cultural semba e as aspirações destes protagonistas na futura inclusão deste bem cultural na lista representativa da UNESCO para o património cultural imaterial.

A minha tese teve a sua motivação inicial a partir de um dilema pessoal e geracional e que acompanha as preocupações patrimoniais globais. A ideia de que o ambiente político pós-colonial funciona como um espelho partido que necessita de ser curado (reparado).

“A música e a dança foram-me ajudando a colar alguns pedaços de vidro, do espelho partido, cuja imagem, vejo agora do carro onde estou sentado, imagem imperfeita, fragmentada” 

Aquando da minha etnografia multi-situada sobre kizomba, outro género musical e de dança em Angola, tive contato com muitos dançarinos que me falavam da importância do semba como síntese do “espírito” dos angolanos e angolanas em espaços de sociabilidade de dança e de música.  

A escuta dessas vozes parecia “quase sempre” transparecer a ideia de que esse espaço de sociabilidade se estava a perder, que algo se havia quebrado/partido, resultado de um ambiente político que havia transitado entre o colonial e o pós-colonial.

Quando, em 2017, a Ministra da Cultura de Angola, Carolina Cerqueira, fez declarações sobre a possibilidade de elevar o semba a património nacional, entendi que seria interessante acompanhar esse processo enquadrado no meu programa doutoral. As questões processuais do património foram analisadas por David C. Harvey no seu artigo History of Heritage, referindo que “o património é uma construção discursiva” envolvendo as suas performances e seu habitus, no sentido bourdiesiano (2003).

Acompanhar o processo de patrimonialização do semba levou-me a traçar um uma trajetória investigativa que analisou os “atos de transferência” performativa conceito de Diana Taylor, que envolve dimensões performativas e discursivas sobre o semba em duas comunidades: 

- A comunidade de práticas do semba, a partir do conceito de Ethiene e Beverly Wenger (2015); 

- E a comunidade autorizada do património a partir da conceção de Discursos Autorizados do Património de Laurajane Smith (2010) 

Neste percurso deambulei entre essas comunidades questionando o semba enquanto património imaterial identitário angolano e por outro as estratégias usadas pela comunidade de práticas enquanto “portadoras” desse ativo patrimonial que é o semba na sua afirmação junto da comunidade autorizada do património, junto a agentes e instituições na orla do Estado - que em última análise é quem tem competências legais para a “chancela” patrimonial dos bens culturais de Angola. 

Acompanhar processos de patrimonialização lança um olhar sobre essa tensão contínua na definição, controlo e gestão do património cultural.

 

A música Poema do semba, de Paulo Flores e que eu sugiro como escuta primeira antes da leitura da tese, canta o dilema patrimonial do semba: “semba é a nossa bandeira, nossa forma de cantar”.  

A disputa pelo ativo patrimonial entre comunidades emerge como “fricção” termo que convoco de Anna Tsing e que nos ajuda a entender como as práticas culturais, a economia, política se entrelaçam e se influenciam mutuamente em contextos de patrimonialização. No meio desse processo existem ainda formas de polinização entre comunidades, conceito usado por James Clifford a partir de Aimé Césaire, a identidade e cultura “não precisam se enraizar em continuidades ancestrais”, mas sim “vivem da polinização, pelo transplante histórico”. 

 

Assim, tentei responder a questões simples como: 

Que discursos e performances, abrangendo tanto a aprendizagem, quanto a transmissão, são mobilizados pelos diferentes agentes envolvidos no processo de patrimonialização do semba? 

Que polinizações e fricções foram sendo geradas durante o processo, que exclusões e inclusões ocorreram até chegarmos ao reconhecimento do semba como património imaterial nacional em Angola?

As estratégias metodológicas como a observação direta, a observação participante, conversas, entrevistas semiestruturadas, bem como a gravação de áudio e vídeo para fins de escrita etnográfica permitiram estabelecer relações com aquilo que cunhei como interlocutores-nodais, pessoas a que Mareen Mahon chama de mediadores culturais: agentes que geram a tensão entre “tradição e modernidade”. 

O semba, enquanto bem cultural, não é apenas uma forma de expressão artística; é um campo de negociação cultural, um catalisador de diálogo intercomunitário e uma força dinâmica na construção do futuro de Angola. 

Para participar ativamente nos debates sobre o semba enquanto património imaterial, decidi seguir as sugestões metodológicas de Sharon Macdonald sobre past-presencing. Este método envolve trazer o passado para o presente nas discussões e análises entre comunidades.

No caso da comunidade de práticas do semba, acompanhei uma banda de música, a Banda Maravilha, liderada por Marito Furtado e Moreira Filho. 

Numa escola de dança, tive como interlocutor Bernando Geoveth, um dançarino e promotor da “Escola” de dança Estrela Clássica. 

Nas turmas de música tradicional e ancestral, acompanhei o trabalho de Jorge Mulumba, líder do grupo musical tradicional e ancestral Nguami Maka. 

No mundo do Carnaval de Luanda, acompanhei o grupo carnavalesco União Recreativo Kilamba, numa interlocução mais direta com Poli Rocha, comandante e carnavalesco do grupo. 

Todos estes coletivos produzem semba, lidam com as suas performances e formas de aprendizagem, partilha e transmissão de conhecimento musical e de dança. Têm discursos e práticas reconhecidas ao longo do tempo e reclamam a sua agenda no reconhecimento do seu saber sobre as práticas artísticas que performam.

Dei destaque especial aos interlocutores que estiveram ou estão ligados à administração do Estado, como ex-ministros e responsáveis estatais. 

De forma mais próxima, acompanhei o funcionamento institucional do Instituto Nacional do Património Cultural (INPC), que tem incumbência jurídica e administrativa para gerir e preservar o património em Angola. 

No INPC, ofereci-me para sessões de divulgação do conceito de património cultural imaterial e trabalhei em estreita colaboração com a diretora Cecília Gourgel, participando em debates sobre a importância de um plano estruturado para os processos de patrimonialização. 

Esta experiência permitiu-me obter uma compreensão aprofundada das dinâmicas envolvidas, bem como contribuir significativamente para a valorização e reconhecimento do semba.

O uso de registos audiovisuais e digitais como parte da metodologia destaca a importância da recolha de dados para capturar a essência do semba durante o trabalho de campo. Além disso, com a autorização dos meus interlocutores, publiquei alguns dos materiais recolhidos no website sembapatrimonioimaterial.com, promovendo assim um processo colaborativo e reflexivo. Esta abordagem envolveu uma interação constante com interlocutores-nodais e contribuições mútuas entre o pesquisador e os participantes, numa atitude ética de transparência face aos detentores do património. 

Desde a minha chegada a Luanda, percebi a minha branquitude e os privilégios associados a essa condição, num contexto pós-colonial, algo que se tornou uma parte quotidiana da minha experiência. 

Este reconhecimento trouxe-me uma nova compreensão das dinâmicas sociais e das interações numa cidade ainda marcada pela colonialidade e na esteira de Anibal Quijano e Nelson Maldonado-Torres do grupo de pesquisa Modernidad/ Decolonialidad / Colonialidad (2010).

A experiência de viver nos musseques de Luanda proporcionou-me uma perspetiva crítica sobre as continuidades coloniais e as dinâmicas sociais da cidade. 

O musseque, um espaço de interrogação e tensão, tornou-se um local onde pude observar as persistências e ruturas coloniais na pós-colonialidade. A convivência com as comunidades locais revelou o impacto das práticas coloniais nas condições de vida atuais, reforçando a necessidade de abordagens holísticas para compreender as questões sociais e urbanas. 

A expressão musical do semba, ressoando nas ruas do musseque, atua como um arquivo sonoro das experiências coletivas, integrando as vivências, lutas e resistências ao longo do tempo, e destacando-se como um elemento crucial na construção de “angolanidade”.  Segundo James W. Martin (2004) “Angolanidade significa muitas coisas para pessoas diferentes, mas implica consenso social sobre a constituição do Estado-nação e normas de governação que contempla todos e todas, independentemente das suas raízes, posição social e filiação política, ou etnicidade”

Embora já tivesse algum conhecimento do campo, foi através da colaboração com as pessoas que encontrei que consegui entender melhor as “fricções” e “polinizações” entre as comunidades. Esta abordagem foi fortemente influenciada pelo trabalho de campo de Paulla Ebron, que testemunhou e analisou as performatividades tanto na comunidade de praticantes quanto na comunidade de agentes autorizados da música kora, na Gâmbia. Ebron destaca que “ver a natureza performativa do poder não é banalizar o poder, mas ver como ele funciona”. Foi isso que as políticas e práticas patrimonializadoras do semba, me permitiram ver.

Os capítulos 2 e 3 estão mais ligados à comunidade de práticas do semba enquanto o capítulo 4 e 5 dão mais destaque à comunidade autorizada do património. 

Acompanhar a Banda Maravilha permitiu-me olhar para os conjuntos e as bandas como as agremiações que olham para o semba como um património aural que é preformado dentro da banda há mais de duas décadas. A Banda Maravilha diz-se embaixadora do semba e teve o seu início durante o recrudescer da guerra civil angolana, após as eleições presidenciais falhadas, no ano de 1992. 

Durante as nossas conversas, Marito Furtado, baterista da Banda Maravilha definiu o semba como um ritmo que foi transferido para a sua bateria a partir de quatro instrumentos essenciais para a performance semba seja ele mais lento ou cadenciado ou mais veloz e frenético: ngoma grave, ngoma solo, mukindu e dikanza que são transferidos para os elementos da bateria - caixa, tarola, aro da tarola e pratos de choque. 

Esta transferência foi sendo engendrada dentro dos conjuntos como agremiações que acabam por funcionar como escolas de transmissão aural, prática musical em torno de repertórios que falam da vida quotidiana, relações de vizinhança, a vida amorosa e sobretudo a vida nos bairros populares onde se sobrevive com condições precárias. 

Enquanto no tempo colonial as bandas funcionam como polos de resistência à colonização, os conjuntos e bandas, são hoje um arquivo aural do semba e da essência e da vida quotidiana do chamado “povo”. 

Acompanhar os ensaios e a composição do tema musical “Mena”, coloca o semba como canto e música que envia recados à sociedade: 

- Uma mulher que deixa o seu marido que sofre de alcoolismo e que sozinha tem de suportar a sobrevivência do filho e do sustento da casa. 

E recados às entidades governamentais locais e nacionais 

- Alertando a sociedade para os problemas das condições de vida das camadas mais pobres da população assolada sobretudo com a falta de emprego. 

A Banda Maravilha, ao afirmar-se como uma agremiação de aprendizagem e partilha, ao construir a sua própria “escola” (xicola na voz de Moreira Filho) através de uma prática contínua, rejeita a hierarquia tradicional do conhecimento, afirmando sua identidade e valorizando seu trabalho artístico. 

A encenação do passado das bandas, no presente, através da performance musical, funciona como um ato de transferência que vai além da mera reprodução de melodias e ritmos. Como apontado por Erika Fischer-Lichte: a encenação envolve a materialidade do espetáculo, que decorre segundo os planos e intenções dos artistas, incluindo todas as formas de materialidade que surgem no seu decurso. Estas materialidades emanam da atenção e do conhecimento aural dos agentes sociais e culturais envolvidos.

Ainda no segundo capítulo descrevo o acompanhamento das aulas na Escola de Dança Estrela Clássica, no bairro do Catambor, que revelou um ambiente de caos organizado, onde os alunos procuram reforçar as suas aprendizagens para enfrentarem a pista de dança em Luanda bem como os espaços de sociabilidade como as Festas de Quintal. Esta escola informal revelou-se um espaço carregado de códigos específicos. 

A performance na pista, o Riscar o Salão é um processo contínuo, cheio de gestos e interpretações corporais que criam uma sociabilidade inventiva. 

Tal como sugerem Mary Douglas e Marcel Mauss a vivência física do corpo, moldada pelas categorias sociais, torna-se um suporte de uma visão específica da sociedade.

A ambiguidade entre os passos “permitidos” (coreopolícias) e “criados” (coreopoliticas) conceitos usados por André Lepécki, expressa um sentido de “escape”, uma cinestesia que se liberta das imposições dos poderes instituídos, das formalidades da Escola oficial. 

No musseque do Catambor, emerge diariamente uma estética que lembra a pesquisa de Paola Berenstein Jacques sobre a estética da ginga- termo também usado pelos angolanos. Esta estética desafia a rígida burocracia e simboliza uma resistência e sobrevivência contínua.

Esse “estar em performance”, transcende os espaços de dança para se manifestar nos locais de convívio, como as festas de quintal e discotecas. Mesmo em locais formais, o corpo afirma-se e expressa-se através da dança, evidenciando a inseparabilidade entre a expressão corporal e a identidade luandense, com fortes polinizações mediadas pelos espaços de dança, pelo boca-a-boca, pelos meios de comunicação e pelas redes sociais. 

No terceiro capítulo, começo por falar da minha incursão na aprendizagem da dicanza, um instrumento fundamental na sonoridade e rítmica do semba. 

A dicanza, descrita por José Ramos Tinhorão como um cilindro de madeira dentado tocado com uma vareta, teve vários nomes e evoluiu através da circulação no contexto do tráfico de pessoas escravizadas. Este instrumento é uma parte essencial da prática musical do semba em Luanda, produzido a partir de materiais na natureza e classificado como idiofone, produzindo som pelo material de que é feito. 

A minha decisão de aprender a tocar dicanza gerou surpresa e curiosidade entre os músicos e a família de Jorge Mulumba, onde fui inserido num ambiente de debates e práticas musicais. As aulas com Jorge permitiram-me gravar e recolher dados em áudio e vídeo, enriquecendo minha compreensão do ritmo semba e das suas práticas musicais e de dança auralmente transmitidas (sobre este tema consultar Ochoa Gautier, A. M. 2014). 

Pude também observar o trabalho de colaboração de Jorge Mulumba o DJ Silivy e a participação em eventos que relacionam o ritmo semba a diferentes gêneros musicais, incluindo a colaboração com Emanuel Mendes, um cantor de ópera e música erudita. Essa abertura para parcerias com artistas de gêneros tão distintos demonstra a versatilidade e a capacidade do semba em transcender fronteiras musicais preestabelecidas ou que foram reificadas durante as últimas décadas.

A abordagem dos Nguami Maka, ao incorporar elementos ancestrais em colaboração com a música eletrónica e o canto de ópera, não se limita a uma mera preservação do passado, mas sim a uma renovação constante que permite ao semba transcender fronteiras temporais e geográficas. Isso ressoa com o conceito do filósofo brasileiro Ailton Krenak, a ideia de construção de um “futuro ancestral”, sugerindo que a tradição e a inovação podem coexistir de forma dinâmica e colaborativa.

A segunda parte do terceiro capítulo é dedicado à minha experiência com o grupo carnavalesco União Recreativo Kilamba (URK), que toca e dança semba varina. O comandante Poli Rocha, que também é proprietário do restaurante Jafimex, utiliza o espaço como barracão do grupo. Foi entre o barracão e o campo de jogos do bairro do Rangel que passei parte do trabalho de campo antes do Carnaval de Luanda de 2020. O enredo do Carnaval tinha como tema “Marçal Ancestral”. 

“O que torna certas actividades “património” são as actividades que se empenham ativamente em pensar e agir não só de onde viemos em termos do passado, mas também para onde vamos em termos do presente e do futuro. É um processo social e cultural que medeia um sentido de mudança cultural, social e política (Smith, 2010, p. 83). 

Acompanhar os ensaios das diversas alas como a corte, a ala masculina e feminina bem como a ala das bessanganas, figuras típicas da ilha de Luanda, ala dos pescadores e também a ala dos batuques, liderada por Jorge Mulumba, permitiu-me entender dinâmicas sociais invisíveis como as pessoas LGBTQIA+ e sobretudo mulheres transgénero e homens gay. 

O barracão e o URK são um lugar seguro para múltiplas subjetividades. As reflexões e conversas sobre o Carnaval como espaço de reconfiguração de tradições destacam sua função como lugar de expressão e negociação cultural. 

Apesar da vigilância e controlo exercidos sobre corpos considerados “indisciplinados” e dissidentes por parte dos agentes da Comunidade Autorizada do Património, as classificações finais vitoriosas nos desfiles carnavalescos, as práticas sociais e coletivas de preparação do Carnaval revelam uma notável capacidade de organização e vontade de valorização deste património. 

Estas dinâmicas internas do URK convergem para uma imagem coletiva durante a performance de Carnaval, na qual o grupo se apresenta não apenas na Avenida, mas diante do poder instituído - aqui o destaque dado à tribuna presidencial, onde está o Presidente da República. Essa performance do Carnaval horizontaliza comunidades de interesses e agendas distintas, num momento de apresentação/representação mútua, refletindo a afirmação de Maria Laura Cavalcanti: “relacionar-se é também confrontar-se” (Cavalcanti, 2006, p. 31). 

Conclusões

Inventariando o Passado, enraizando o presente, construindo o futuro do Semba

A pesquisa revelou a importância de inventariar o passado do semba para compreender suas origens e performances culturais atuais. A elaboração de um Plano de Ação para a inventariação do semba visa uma futura candidatura à lista da UNESCO, intensificando as tensões entre as comunidades de práticas. Este reconhecimento externo pode ser o promotor de diálogos internos sobre a importância do património cultural em Angola, destacando a necessidade de inclusão, valorização e certificação das escolas informais de semba como locais de transmissão de conhecimento.

Desafios internos e inclusão

A discussão sobre o semba destacou os desafios enfrentados pelas comunidades de práticas, como a precariedade e a falta de reconhecimento. A abordagem inclusiva e sustentável é essencial para preservar e promover o semba, refletindo a necessidade de uma sociedade mais inclusiva e democrática. As políticas devem considerar as vozes das mulheres e das populações mais jovens que com a sua diversidade podem enriquecer a narrativa do semba e promovendo uma abordagem mais equitativa na preservação do património cultural.

A falta de reconhecimento impede a participação igualitária de indivíduos e grupos na sociedade e nas negociações políticas sobre o acesso aos recursos. Isso destaca a importância de políticas de reconhecimento como um passo crucial para abordar questões processuais relacionadas ao património, promovendo uma participação justa na esfera pública e nas narrativas culturais. 

Nancy Fraser e Alex Honneth, argumentam que a busca por reconhecimento não pode ser separadas das questões materiais e políticas de distribuição equitativa. O reconhecimento é essencial para combater as desigualdades simbólicas e materiais. A familiaridade e os mecanismos de transmissão aural na comunidade do semba são fundamentais na defesa de seus pontos de vista, utilizando “atos de transferência” para influenciar a comunidade autorizada do patrimônio, apesar das tensões geradas pela política centralizada do MPLA.

Semba como Ferramenta de diálogo e transformação social

O semba não é apenas uma expressão cultural, mas também um veículo para transformações sociais profundas. Como ativo patrimonial ecológico, desempenha um papel vital na preservação da diversidade cultural e ambiental, promovendo diálogos transnacionais e influenciando narrativas globais. A valorização do semba como instrumento de diplomacia cultural ajuda a criar diálogos internacionais e fortalecer as identidades culturais de Angola.

Fricções e Polinizações 

As fricções e polinizações entre as comunidades interessadas têm sido catalisadoras dos progressos observados. A academia desempenha um papel crucial como mediador, criando espaços de diálogo e promovendo ações que capacitam tanto a comunidade de práticas quanto a comunidade autorizada do património. Essas interações ajudam a compreender melhor os desafios e oportunidades no campo do património cultural imaterial.

A Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial exige flexibilidade política para resolver disputas, com fricções e polinizações sendo cruciais para a transformação social. A música “Njila ya Dikanga” de Paulo Flores e Yuri da Cunha, lançada durante a pandemia, reflete as mudanças sociais e culturais em Luanda, destacando a evolução dos significados culturais e sociais através de um semba que nos fala do regresso a casa. 

O epílogo, situado fora do período de campo, oferece um momento de reflexão que consolida e expande as ideias e argumentos apresentados ao longo da dissertação. 

Este texto vai além da imersão no contexto específico do semba, abrangendo implicações mais amplas das dinâmicas culturais e patrimoniais discutidas. A análise das interações entre cultura, património e identificações em contextos pós-coloniais revela um complexo espelho de influências e transformações, ainda em curso. 

As Exposições Universais, como as de Milão e Dubai, exemplificam como o património cultural imaterial pode ser utilizado para moldar perceções e promover uma imagem positiva do país no cenário global. 

Contudo, a dissonância entre esta imagem internacional e a realidade vivida pelas comunidades locais destaca a necessidade de políticas culturais que não apenas promovam o património, mas também abordem os desafios socioeconómicos internos de forma dialógica a participada. 

Este esforço obriga-nos a olhar para o semba como uma performance, que pode contribuir para a construção de uma Angola mais inclusiva, coesa e culturalmente nutrida, mas não podemos esquecer que este processo será feito através de fricções e polinizações, onde convivem diferentes agentes e agências. 

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por André Soares
Palcos | 8 Agosto 2024 | etnografia, música angolana, património, semba