Um Arrepio, uma fricção, a polinização da forma da poesia falada e cantada
O concerto abriu com a evocação da energia de Exu, orixá que abre caminhos, e a partir daí, desenrolou-se um espetáculo itinerante que traz consigo a força das comunidades afro-diaspóricas em Portugal. Foi a 10 de setembro, na Casa Odara, Porto. O coletivo, constituído por Adrião Arrepio Poético, João Sereno e Osvaldo Bola, apresentou um espetáculo que combina poesia, música e ritual numa fusão profunda e envolvente de uma viagem que vai do Porto ao Algarve, e regressa à Bahia, carregado de novas experiências e energias.
Perguntei-lhes como surgiu a ideia de criar O Arrepio. Como quiseram unir a poesia e a música em torno de temas tão fortes como os orixás, o amor e o cuidado. Segundo eles, o encontro deu-se pela ausência de distância: “Somos vizinhos, amigos e conhecidos de longa data. Cada um já trabalhava com estas temáticas de forma individual, mas foi no coletivo que a nossa expressão se tornou mais potente”. A presença de Adrião em Lisboa para o seu doutoramento deu início a um conjunto de correspondência criativa que originou músicas e poemas que fazem agora parte do espetáculo. A partilha de uma visão comum fez com que o projeto ganhasse vida, cruzando, de modo singular, a espiritualidade com a arte.
Atualmente, O Arrepio está em tourné por Portugal, com o apoio da Secretaria da Cultura do Estado da Bahia. Sobre a recepção do público português, o trio reconhece o entusiasmo e interesse, não apenas da comunidade brasileira, mas também dos portugueses e turistas que têm assistido aos concertos. “Portugal tem uma ótima receção da música brasileira”, afirmam, destacando que iniciativas como esta devem ser incentivadas, pois permitem a internacionalização do projeto e mostram que O Arrepio tem um alcance que vai além das fronteiras do Brasil.
Uma das marcas do espetáculo é a forte componente espiritual e ritualística, baseada na tradição oral do Axé. A música e a poesia são canais para a transmissão de uma força ancestral, como nos explica Adrião: “Nós propomo-nos a partilhar a irmanação do palco com o público. Convidamos todos à convivência do Axé, pois ancestralidade não é sobre convencer, é sobre conviver!”. Este processo, que envolve música, poesia e narração de histórias, cria uma experiência catártica onde os fluxos emocionais se misturam entre artistas e audiência.
João Sereno, com a sua voz serena e suave, e Osvaldo Bola, de grande potência musical, desenham melodias em vozes que evocam o melhor da espiritualidade e vida social da cidade de Salvador. Desde a convivência nos botecos, ao calor aos amores e desamores. Cada música transporta-nos para essa molemolência, a síntese da sabedoria dos baianos.
Uma surpresa durante a performance foi a versão de “Bem Bom” das Doce, uma piscadela de olho à cultura popular portuguesa. Questionados sobre a ligação entre a música afro-brasileira e a música popular portuguesa, o trio reflete que, para além do idioma, há muitas afinidades culturais que podem ser exploradas. “É como pedir licença para se aproximar, mas com algo que também gostamos”, dizem, sublinhando o papel da música como ponte entre tradições.
As canções originais que compõem o espetáculo são outro ponto forte do projeto. Cada uma delas nasce de um contexto específico, de observações do quotidiano e de reflexões sobre a vida. São músicas que dialogam diretamente com as questões de identidade e polinização cultural, criando uma ponte entre o passado e o presente. “Acreditamos que, por isso, conseguimos tocar o público e ligar-nos às nossas experiências comuns”, referem.
Quando questionados sobre o impacto que esperam gerar com as suas performances, tanto a nível artístico como social, o trio é claro: o objetivo é honrar a diversidade da cultura brasileira e afro-brasileira. O Arrepio quer ser congruente com a sua definição de “projeto poético-musical”, destacando o papel da poesia e da música como formas de preservar e reinventar as tradições afro-diaspóricas. “É na nossa forma de existir que está o principal componente de honra, preservação e retomada das tradições afro-brasileiras”, concluem.
O Arrepio não é apenas um projeto artístico, mas uma verdadeira viagem espiritual e cultural, que une continentes e expressa, através da arte, a resiliência e a força das comunidades afro-diaspóricas. Um espetáculo que arrepia, fricciona e poliniza qualquer pessoa.
fotografias de André Soares.