Conhecer e animar o arquivo de RDC: processos e resultados a partir de uma inventariação

Introdução

Comecei enquanto estudante de antropologia a ser ouvinte, leitora, espectadora e visitante de palestras, livros, filmes e exposições onde a comunicação, autoria, realização e colaboração de Ruy Duarte de Carvalho foi marcante. Apenas o conheci pessoalmente num encontro fugaz em 2009. Conheço-o melhor através dessa familiaridade com parte da sua obra publicada, filmada e exposta e, agora, pelo que mais recentemente chamei dos seus “meandros” – os bastidores de muitas das suas obras, que fornecem pistas sobre os processos e práticas materiais e conceptuais de trabalho que as fizeram nascer.

No verão de 2015 comecei o processo de inventariação do espólio deixado por Ruy Duarte de Carvalho, através de um entrosamento de intenções que importa delinear. A proposta veio através de um convite de Marta Lança, com o objetivo de ajudar a família do autor a perceber o espólio existente e a pensar o destino a dar a esse material, e também da subsequente organização de uma exposição, Uma Delicada Zona de Compromisso (UDZC). 1 

Posteriormente, o convite estendeu-se à minha participação na equipa de curadoria, composta por Marta Lança e Ana Balona de Oliveira, incluindo também um convite para participar no colóquio onde primeiro apresentei uma resenha sobre estas atividades. Com base no acesso a este espólio, a equipa de curadoria decidiu centrar a exposição na tentativa de dialogar com os processos de trabalho e de criação de Carvalho em relação à sua obra e trajetória enquanto autor. Pensámos aproveitar a oportunidade de usar os seus meandros para falar da fertilidade do seu trabalho e de algumas particularidades do seu processo criativo. Sublinho que não pretendo fazer uma crítica literária, académica ou cinematográfica das suas obras ou rever retrospetivamente o seu valor, mas sim analisar alguns processos criativos que ajudaram Carvalho a constituir o seu extenso trabalho, o que pode contribuir para compreender melhor tanto o autor como a obra.

Fig. 1− Diagrama de trabalho da inventariação sintetizando conteúdos materiais do legado de Carvalho.Fig. 1− Diagrama de trabalho da inventariação sintetizando conteúdos materiais do legado de Carvalho.

Fig. 2 − Fotografia do espólio em fase avançada de arrumação. Inês Ponte/Herdeiros de Ruy Duarte de Carvalho.Fig. 2 − Fotografia do espólio em fase avançada de arrumação. Inês Ponte/Herdeiros de Ruy Duarte de Carvalho.O presente texto tem como objetivo mostrar e discutir o meu processo de conhecer e dar a conhecer este arquivo, centrando-me nos resultados da sua inventariação em articulação com a exposição. Discuto brevemente algumas questões do arquivo afloradas na exposição, chamando a atenção para várias das dimensões que a inspiraram e que talvez tenham ficado um pouco diluídas numa mostra que se pretendia dialogante. Recorro aos materiais produzidos por Carvalho durante um longo período de tempo para mostrar algumas dimensões do seu processo criativo, procurando fornecer uma primeira interpretação destas em relação a algumas das suas obras. Uso livremente várias áreas exploradas pelo autor, concentrando-me, porém, sobretudo em dimensões gráficas e visualmente estimulantes. Combino essa discussão com a apreciação de alguns resultados do que chamo “animar” este arquivo obtidos através da inventariação e apresentados na exposição, e termino enquadrando um dos vídeos baseados em material de arquivo nela apresentado. “Animar” o arquivo envolveu três dimensões: práticas que procuram dar a conhecer a obra de um autor através do arquivo; materiais novos criados através de articulações possíveis de materiais de arquivo, que pretendem dar a conhecer o autor e a sua obra; por fim, práticas que estimulam o próprio arquivo, proporcionando agregar-lhe mais material de arquivo. Uso “arquivo” e “espólio” como sinónimos, representando um conjunto alargado de documentos, em vários formatos, que serviram de fonte de informação e de trabalho para Carvalho, abarcando também documentos sobre a vida e obra do autor.

Pelos meandros de uma obra e de um espólio

Começo por retornar à minha “história” anterior com Carvalho, enquanto autor, que vem de antes de me deparar com estes bastidores e que incide sobre a sua obra pública e não sobre os seus “meandros”. É sem dúvida um privilégio conhecer os métodos de trabalho de uma personalidade da antropologia cuja obra admiro e que moldou em grande medida o meu percurso já como antropóloga. Não existe acaso entre uma conferência a que assisti quando estudante, proferida por Carvalho no ISCTE em 1999, e a minha leitura de Vou Lá Visitar Pastores, uma das suas obras de cariz mais etnográfico, uns quantos anos depois – uma levou à outra. Já que a minha especialização e interesses de investigação atuais se encontram também centrados no sudoeste de Angola, esta leitura contribuiu certamente para que tenha acabado por me focar na região que Carvalho abordou com especial acuidade. Sublinho por isso que talvez haja também uma certa tendência da minha parte relativa aos processos criativos que abordo, devido aos interesses específicos que tenho nos materiais criados pelo autor – isto é, há dimensões que ressoaram logo mais fortemente e às quais me dediquei mais a pensar do que a outras.

Outra razão que me leva a mencionar estas ligações é que elas se prendem de uma dupla maneira com o modo como lidei com o material existente neste espólio. Por um lado, o modo de apreciar os meandros de obras que conhecia, de aceder a pistas sobre partes da obra de Carvalho que já me eram familiares, em especial os seus trabalhos sobre os pastores kuvale do sul de Angola, que não se esgotam no mencionado Vou Lá Visitar Pastores. Por outro lado, o modo como me defrontei com o espólio deixado por Carvalho significou reconhecer muitas das fontes usadas para conhecer um mesmo terreno. Foi entre o signo da familiaridade e o da curiosidade que se processou um duplo reconhecimento, permitindo-me situar um conjunto alargado de materiais existentes no arquivo e, ao mesmo tempo, perceber os processos de trabalho específicos de Carvalho, pondo-me também a pensar sobre lacunas materiais, o que tentarei brevemente abordar mais adiante.

Antes deste processo de inventariação em 2015, já em 2012, tive a oportunidade de coincidir com Eva Carvalho, filha mais velha do autor, no mesmo lugar e na mesma altura, acabando por ajudá-la numa primeira fase deste inventário: a coincidência levou-me a ajudá-la a fazer o levantamento de livros e objetos prezados e guardados em baús pelo seu pai numa garagem de um amigo deste no Namibe, em Angola. Iniciou-se aí a minha entrada nos meandros do trabalho de Carvalho que até à altura conhecia somente enquanto autor.

Na inventariação em Lisboa, tive a oportunidade de dialogar e de trocar impressões com a restante família, Luhuna Carvalho, seu filho, e Rute Magalhães, companheira e amiga de Carvalho, que acompanharam, na medida do possível, enquanto interlocutores privilegiados as minhas questões e interrogações nesse processo. A possibilidade deste diálogo foi também relevante para enriquecer o meu entendimento sobre as relações entre o legado existente, a obra e o seu autor. Ressalto, no entanto, que é novamente da minha parte um acesso mediado ao autor enquanto pessoa através de quem o conheceu bem.

Da exposição e do arquivo, e vice-versa

A exposição Uma Delicada Zona de Compromisso partiu da possibilidade de mostrar partes do espólio de Carvalho. O que apresentámos nesta exposição consistiu numa vasta, mas mesmo assim ínfima, parte desse arquivo. 2 Ora para resolver este dilema entre enquadrar tudo e uma parte, aproveito para revelar alguns processos de conhecimento, reconhecimento e diálogo com algum do material existente neste espólio, ligando-os sempre que possível com a exposição. Combinando a discussão de alguns processos resultantes dessa inventariação com uma reflexão sobre esse legado, sigo a proposta do colóquio de dialogar com o material deixado por Carvalho, incluindo partes do processo de trabalho do próprio autor e com a abordagem encetada na exposição. Procuro aqui também estabelecer uma delicada zona de compromisso entre dimensões da inventariação e da exposição, não pretendendo dar uma leitura definitiva do que o extenso legado de Carvalho nos proporciona, principalmente quando ainda está tanto por analisar e investigar.

Para além de fotografias da sua família de origem, o espólio de Carvalho reúne materiais criados a partir de 1954 até materiais criados já depois da sua morte – nomeadamente recortes de imprensa, cartazes e outros materiais de divulgação de eventos onde o seu trabalho foi homenageado ou serviu mesmo de inspiração. Pelo singular percurso de Carvalho, o material reunido foi criado em diversos lugares onde viveu em diferentes alturas da sua vida (Santarém, Portugal; Luanda, Angola; Swakopmund, Namíbia), mas também durante viagens e estadias com o intuito de formação, pesquisa, realização ou escrita (por exemplo, deslocações a Londres, Reino Unido; a Paris, França; a Cabo Verde; ao sudoeste de Angola; à África do Sul ou ao Brasil), resultando em obras em diferentes formatos e géneros.

O arquivo de Carvalho entrelaça várias dimensões que dificultam uma simples definição. Por um lado, a diversidade abismal da sua obra trespassa também o material existente no espólio: o material por ele reunido e criado tem esse carácter numeroso e variado, que inclui poesia, literatura, antropologia, história, fotografia, cinema, desenho, pintura. Por outro lado, o tempo longo também ali reunido, facilita e dificulta simultaneamente o entendimento do trabalho multidisciplinar de Carvalho. A dificuldade surge novamente pela introdução da extrema variedade de campos de criação cultivados pelo autor, e a facilidade surge pela perceção da constante ligação entre vários desses campos de criação – por exemplo, Carvalho é autor de uma escrita com qualidades orais e cinematográficas; e de filmes de ficção e documentário que se tornam híbridos entre estes dois géneros, onde o texto é sempre um importante fio condutor (Dias 2008, 3; Lucas 2008).

Fig. 3  'Do outro lado da idade, pelo avesso do olhar' a trajetória de Carvalho animada através de um esquema seu. Realizada para a exposição UDZC.Fig. 3 'Do outro lado da idade, pelo avesso do olhar' a trajetória de Carvalho animada através de um esquema seu. Realizada para a exposição UDZC.

Como mostrar uma vida preenchida por curvas, linhas e contracurvas, que se fundem em cruzamentos de lugares, saberes e vivências repercutidos com grande intensidade na obra produzida? A trajetória de vida realizada para a exposição (Fig. 3) pega num esquema de Carvalho feito por volta de 2001 onde o autor faz um balanço do seu percurso de vida. Apropriando-nos do código estabelecido pelo autor para pensar sobre o seu trajeto, procurámos adicionar referências omitidas nesse seu gesto autobiográfico a atividades e lugares onde se formou e em que se inspirou, e à sua produtiva obra em vários campos de criação. Pegando na sua síntese de referências, no esquema que assumia o seu (auto)conhecimento das mesmas, expandimo-las tentando fornecer algum contexto. Em contraste com a depuração pretendida por Carvalho para pensar o seu próprio percurso, foi no jogo entre leituras possíveis, entre seguir o detalhe ou a mancha, o seu esquema ou a nossa apropriação, que nos pareceu ser útil conceber tal síntese cumulativa, para enquadrar um autor que já tinha estabelecido o seu trajecto autobiográfico em diferentes contextos expositivos (por exemplo, Carvalho 2008).

Penso que seria demasiado cansativo, desinteressante até, e de complicada absorção, apresentar uma listagem exaustiva do material existente no espólio. O inventário proporcionou vários instrumentos para pensar sobre esse material no âmbito da exposição. Para a exposição procurámos transformar elementos numerosos em outros formatos que não a listagem, aproveitando a sua capacidade de invocar o universo de Carvalho – caso, por exemplo, da peça realizada a partir do levantamento dos livros que possuía, guardados em Lisboa e no Namibe (Fig. 4), que fornece de uma maneira gráfica pistas sobre referências usadas pelo autor, obtidas a partir da sua biblioteca pessoal de eleição. 3

De certa maneira, as propostas de animação para este material partilham, em alguns aspetos, uma atitude semelhante à de Carvalho, a de interrogar os dados disponíveis, de os explorar de outros pontos de vista, eventual defeito de uma formação em antropologia partilhada por ambos. 4 Sem dúvida, observar as ideias de Carvalho a nascerem, a crescerem e a transformarem-se foi revelador da forma como o seu ato criativo é moldado. De seguida chamo a atenção para algumas das suas particularidades.

Fig. 4 'Livros em que o autor tropeçou e quer referir', frase inscrita num rascunho de A Terceira Metade e que Carvalho não chegou a usar no livro dando nome a uma síntese do levantamento da biblioteca que deixou para a exposição UDZC.Fig. 4 'Livros em que o autor tropeçou e quer referir', frase inscrita num rascunho de A Terceira Metade e que Carvalho não chegou a usar no livro dando nome a uma síntese do levantamento da biblioteca que deixou para a exposição UDZC.

Processos de trabalho e mecanismos do pensamento

Importa salientar que estamos a falar de uma pessoa com um processo de trabalho muito meticuloso e detalhado, e bastante sistemático. Apresentar material de pesquisa por si rasurado parece ser uma boa maneira de demonstrar isso. Mostro então material produzido durante a pesquisa entre pescadores da Samba, em Luanda, nos anos de 1980, no âmbito do seu doutoramento na École des Haute Études en Sciences Sociales, em Paris, enquanto funcionário do Ministério da Cultura (na Televisão Pública de Angola – TPA) autorizado a prosseguir esses estudos. Numa folha A4, Carvalho articula o tipo de pescado e a sua denominação em português e na língua local, com uma série de características associadas ao modo como se dá a pescaria, e por quanto é vendido na praia cada espécimen para revenda posterior pela cidade de Luanda (Fig. 5).

Nessa folha deparamo-nos com uma rasura contemplando cerca de metade dos dados empíricos preenchidos, talvez porque estes mudaram ou porque ele se enganara a passar a informação. De qualquer das maneiras, demonstra, parece-me, um tipo de trabalho bastante meticuloso. Carvalho não era pessoa para ter receio de escrever três vezes a mesma coisa (mesmo listagens extensas), de se envolver fortemente com o material que recolhia, se isso lhe permitisse depois articular de uma maneira mais ampla os dados de que passava a dispor, ajudando-o a criar as obras que produzia.

Fig. 5 − Digitalização de material de pesquisa de Carvalho sobre pescadores e peixeiras da Samba, em Luanda, c. 1980.Fig. 5 − Digitalização de material de pesquisa de Carvalho sobre pescadores e peixeiras da Samba, em Luanda, c. 1980.

Outro exemplo dos métodos de pesquisa de Carvalho, desta vez produzido para entender o sistema de parentesco entre os pastores kuvale, é resultado das suas campanhas realizadas na década de 1990 no sul de Angola, que irão dar origem a Vou Lá Visitar Pastores. No processo de pesquisa com dados recolhidos no terreno, Carvalho parte de uma dada matriz – um diagrama de parentesco – e através dela procura entender o que acontece à forma de nomeação e apelação no caso de um homem quando casa, ao nível da sua inserção na família de uma mulher, enveredando também pelo caso inverso, quando uma mulher casa e se insere dentro da família de um homem (Fig. 6 e Fig. 7).

 Fig. 6 Digitalização de documentos produzidos como forma de entender formas de nomeação e apelação de parentes entre os Kuvale c 1990 à esquerda caso de um ego masculino. À direita caso de um ego feminino. Fig. 6 Digitalização de documentos produzidos como forma de entender formas de nomeação e apelação de parentes entre os Kuvale c 1990 à esquerda caso de um ego masculino. À direita caso de um ego feminino.Fig. 7 Digitalização de documentos produzidos como forma de entender formas de nomeação e apelação de parentes entre os Kuvale c 1990 à esquerda caso de um ego masculino. À direita caso de um ego feminino.Fig. 7 Digitalização de documentos produzidos como forma de entender formas de nomeação e apelação de parentes entre os Kuvale c 1990 à esquerda caso de um ego masculino. À direita caso de um ego feminino.

Usando essa mesma matriz, Carvalho chega a fazer uma comparação entre os dados que recolheu no terreno, a vermelho, e os dados de Carlos Estermann (1896-1976), um etnógrafo e missionário de origem alemã que passou cerca de 50 anos no sudoeste de Angola, a preto (Fig. 8). Estermann é uma figura incontornável para quem se interesse pela região – será raro quem não reconheça a sua produção etnográfica.5 Estermann publicou uma obra também ela vasta, mas é mais conhecido pelos seus três volumes etnográficos sobre a região, publicados pela Junta de Investigações do Ultramar, entre 1956 e 1961, e traduzidos posteriormente para inglês e francês. 


Fig. 8 − Digitalização de documento para análise comparativa entre dados de terreno recolhidos e literatura etnográfica existente, c. 1990.Fig. 8 − Digitalização de documento para análise comparativa entre dados de terreno recolhidos e literatura etnográfica existente, c. 1990.

Apesar de resultar de conhecimento valioso, de alguém que sabia a língua local e conhecia bastante bem as populações rurais do sudoeste de Angola, o trabalho de Estermann não deixa de precisar de uma leitura crítica – que é a atitude encetada por Carvalho.6 Trabalhando no mesmo terreno cerca de quatro décadas depois da publicação dos referidos três volumes de Estermann, acedemos a um fascinante processo de trabalho por parte de Carvalho. Com o seu confronto cuidadoso entre o que lhe dizem os seus interlocutores no terreno em que se encontra, procura certificar-se de diferenças e semelhanças com a literatura anterior, no intuito de entender os dados disponíveis e ganhar uma perspetiva sobre a relação entre regras sociais e as suas variações, ambas definidas tanto pela literatura como pelos seus interlocutores.

Fig9 Digitalização de documentos produzidos para análise de dados de terreno entre os pastores kuvale c. 1990 matriz de parentesco matrilinear. Matriz de parentesco e análise dos dados.Fig9 Digitalização de documentos produzidos para análise de dados de terreno entre os pastores kuvale c. 1990 matriz de parentesco matrilinear. Matriz de parentesco e análise dos dados.Fig10 Digitalização de documentos produzidos para análise de dados de terreno entre os pastores kuvale c 1990, matriz de parentesco matrilinear. Matriz de parentesco e análise dos dados.Fig10 Digitalização de documentos produzidos para análise de dados de terreno entre os pastores kuvale c 1990, matriz de parentesco matrilinear. Matriz de parentesco e análise dos dados.

 

Outra indicação leva-nos ainda mais longe no labor comparativo de Carvalho. De modo a perceber a especificidade do caso kuvale, não só compara os seus dados com literatura etnográfica regional existente (Estermann), mas também analisa os seus dados em relação com o trabalho de outros antropólogos interessados em parentesco –  por exemplo, Needham7 (1958, 1960). Permitindo perceber tanto as descobertas que vai fazendo no terreno (Fig. 9), como as linhas de análise experimentadas (Fig. 10), o recurso de Carvalho a este tipo de estratégias gráficas para facilitar a compreensão é outro ponto em que vejo grande utilidade do seu legado, revelando-nos alguns caminhos dos seus mecanismos de compreensão.

Nesta questão sobre os diferentes processos de trabalho que Carvalho desenvolveu, passo agora da pesquisa de terreno para a escrita. Apresento para isso materiais sobre A Terceira Metade (2009), salientando que, com a publicação deste livro, o autor reequacionou dois livros publicados anteriormente: Os Papéis do Inglês (2000) e As Paisagens Propícias (2005), passando a enquadrá-los como uma trilogia a que chamou Os Filhos de Próspero.8 Nesta trilogia, o palco central é sempre o sudoeste de Angola; é onde se movem e de onde partem e regressam os protagonistas de cada uma das três obras que a compõem. Entre o processo de criação de As Paisagens Propícias (2005) e de A Terceira Metade (2009), Carvalho apercebeu-se da possibilidade de interrogar de pontos de vista diferentes o mesmo material de arquivo, literatura histórica e as suas pesquisas de campo, encetando a construção de uma trilogia em que cada obra consistisse numa mudança de perspetiva. Em cada uma das obras dessa trilogia, a sucessão da personagem principal, de um branco para um mulato e, por fim, para um negro não-Bantu (minoria na África Austral), combina também em crescendo com o seu questionamento do seu papel de narrador da história desenhada através de cada um destes pontos de vista. Saliento que A Terceira Metade, escrita assumidamente entre a África do Sul, o Estado da Califórnia e a Namíbia, é onde Carvalho combinou duas facetas do seu método de trabalho na própria obra: planeamento e deriva.

A Terceira Metade é de todas as suas obras a que tem um legado mais vasto em termos das diferentes etapas do seu processo de criação. Tentando mostrar a amplitude desse processo no seu espólio, sobreponho três fases do desenvolvimento da sua escrita (Figs. 11-13). Numa fase inicial, o manuscrito com anotações posteriores (Fig. 11), outra fase consiste num índice impresso também ele anotado (Fig. 12), e outra fase (Fig. 13) onde vemos o texto a encorpar-se cada vez mais através de anotações a diferentes cores, de sinaléticas próprias que indicam fases de trabalho concluídas entre versões, grafismos síntese que parecem ajudá-lo a não perder a noção geral da obra em criação, ao lado de desenhos rabiscados para o ajudar a pensar, ou, usando a própria gíria do autor, para lhe desviar por momentos o pensamento de algum nó que ele ainda não havia decidido como desfazer (Fig. 14).

 

Figs. 11-13 − Composição digital de documentos criados durante três fases do processo de escrita de A Terceira Metade.Figs. 11-13 − Composição digital de documentos criados durante três fases do processo de escrita de A Terceira Metade.

 

Fig. 14 − Detalhe de digitalização de plano para escrita de A Terceira Metade.Fig. 14 − Detalhe de digitalização de plano para escrita de A Terceira Metade.

É sobre processos de criação usados na concretização de A Terceira Metade que continuarei a incidir.

Velhas e novas ideias: cruzamentos e transformações

Pela sua recorrência, a noção de transformação parece-me ser uma chave interpretativa de grande valor para grande parte do espólio de Carvalho. Falo da dimensão recorrente no seu espólio, de recuperar ideias antigas e de pensar nelas numa outra perspetiva – levando em conta a experiência e o conhecimento entretanto adquiridos. Carvalho repensa ideias passadas à luz de novos debates que o preocupam no presente ou de outras perspetivas. Há assim um conjunto de ideias que desenvolveu na década de 1970 e a que foi voltando pontualmente – não deixando, contudo, de se deixar levar pelo percurso da criação da obra em curso. Como exemplo, refiro a “teoria sumária dos cilindros com luz”, um texto criado por volta de 1970, consistindo em quatro folhas A4 dactilografadas que acabam com uma outra folha com um diagrama síntese do texto, sobre a maneira como a luz se dispersa e as suas qualidades um pouco metafísicas (Figs. 15 e 17). Mais tarde, durante o trabalho de escrita de A Terceira Metade, que ocorreu em meados dos anos 2000, parece-me que Carvalho tentou trabalhar o que chamou a “teoria geral do silêncio” com base nessa sua “teoria sumária dos cilindros com luz”, mas depois, à medida que se foi desenvolvendo todo o processo de trabalho para A Terceira Metade, o texto em construção foi-o desviando para outro lado.

Já referi que os traços do processo de escrita de A Terceira Metade são os que mais se encontram no espólio. Inicialmente, por exemplo, percebemos que Carvalho pensou num livro com “metades”, planeando usar a tal “teoria sumária dos cilindros com luz” no que seria a segunda “metade” de A Terceira Metade. Durante o processo de criação, percebemos, através de um dos planos iniciais (Fig. 16), que, após planear as três “metades” do livro A Terceira Metade, uma outra “metade” emergiu, levando Carvalho a tornar cada “metade” num “livro” dentro da obra maior. Percebemos também através desse plano para o desenvolvimento da narrativa, que Carvalho se direcionou para pensar numa adenda, um “Pré-Manifesto” (ver Carvalho, 2009a) depois desse tal livro iv –, livro esse que não manteve para a versão finalizada.

Este tipo de entendimento é facultado pelo material existente no arquivo, neste caso, duas versões semelhantes da “teoria sumária…”, isto é, um texto dactilografado e uma sua fotocópia, bem como rascunhos de índices retrabalhados com a indicação do lugar onde surgiria a tal “adenda”. Em articulação com a obra acabada, acedemos então a um processo criativo com bastantes ziguezagues entre versões em curso, que o autor fez questão de incluir na própria obra.

 

Figs. 15-17 − Composição digital de duas versões de trabalho da “Teoria sumária dos cilindros com luz”, c. 1970 e c. 2000, entrepostas por índice inicial para A Terceira Metade.Figs. 15-17 − Composição digital de duas versões de trabalho da “Teoria sumária dos cilindros com luz”, c. 1970 e c. 2000, entrepostas por índice inicial para A Terceira Metade.

Ora, ao longo do trabalho produzido por Carvalho, o ponto de partida não deixa de estar à mercê da sua vivência presente, das questões que se dedica a pensar, procurando encontrar algum sentido atualizado para questões que o preocuparam, e em ir alterando, consoante o maior sentido que fizeram no seu presente – a “nova” e a “velha” ideia confrontam-se, e o espaço de manobra do presente emerge com mais força. No entanto, a tentativa de recuperação de uma ideia antiga, seguida pelo envolvimento de Carvalho no processo que está a decorrer, possibilitando que mesmo essa tentativa de recuperação vá ficando de lado, não requer necessariamente que este mecanismo do pensamento origine sempre a exclusão da ideia inspiradora. Saliento que o exemplo oposto aparece também no mesmo livro, A Terceira Metade, com o uso de Nambalisita, o herói de Nelisita, uma etnoficção por si realizada nos inícios dos anos de 1980 entre agro-pastores do sul de Angola. A transformação ao longo do percurso de criação surge, pelo contrário, sempre presente: a inspiração inicial proporcionada por este herói, não impede que o seu papel se vá ajustando ao percurso criativo da obra.

Através do espólio podemos dizer que existem, concomitantemente, dois “mecanismos de compreensão” que Carvalho vai desenvolvendo de uma maneira bastante sistemática ao longo do seu percurso enquanto autor. Um deles é-nos fornecido pela apreciação do conjunto da sua obra publicada; o outro é possibilitado pela relação entre a obra publicada e os diversos rascunhos existentes. Comentando a obra publicada, mas tendo tido acesso também aos materiais de pesquisa pela sua colaboração com Carvalho, Dias (2008) chama “caleidoscópica” a essa capacidade de o autor encontrar novos sentidos no material já por si criado.9 Acompanhar a trajetória da vasta obra e os processos de trabalho deste autor é também, por isso, acompanhar o seu amadurecimento – recorrendo às várias linhas de movimentos possíveis do “mecanismo da compreensão” que Carvalho delineou, durante a década de 1970 (Fig. 18).

Fig 18 Adaptação de detalhe digitalizado de 'Mecanismo da Compreensão' c 1970  Fig 18 Adaptação de detalhe digitalizado de 'Mecanismo da Compreensão' c 1970

A sequência visual sobre a criação de uma das suas obras (Figs. 15-17) serve-me também para sublinhar como no tempo longo presente no espólio, percorremos a passagem do manuscrito para o dactilografado das décadas de 1970 e 1980, para depois estarmos entre cruzamentos do manuscrito (notas e anotações) e do impresso (escrito a computador). Apesar de haver no espólio esta mudança de tecnologia, da máquina de escrever para o computador, Carvalho mantém tanto as estratégias visuais que foi desenvolvendo em fases anteriores como o seu processo de criação na fase do digital continua a implicar sempre uma relação entre o manuscrito e o impresso.

Fig. 19 − A Terceira Metade num só Quadro para a exposição UDZC, montagem de Pedro CastanheiraFig. 19 − A Terceira Metade num só Quadro para a exposição UDZC, montagem de Pedro Castanheira

Saliento que questões entre o analógico e o digital tão presente no arquivo também se colocaram tanto no processo de inventariação como no de curadoria, trazendo diferentes desafios a estas atividades. No processo de inventariação, preocupei-me em tornar digital parte dos materiais impressos, datilografados e manuscritos para os poder combinar entre si e com os de formato digital em análises posteriores, mas também para o trabalho da equipa de curadoria da exposição. Na exposição tirámos partido tanto da digitalização de materiais realizada como da existência de materiais já em digital, mas procurámos manter um equilíbrio entre os recursos materiais e digitais. Dar a conhecer o arquivo de Carvalho contemplou mostrar as duas dimensões. No entanto, a dimensão digital permitiu concretizar elementos que estariam fora do nosso alcance somente pelo uso do analógico. Por exemplo, para invocar a obra literária de Carvalho, mais do que proporcionar uma sala de leitura, decidimos convocar alguns dos seus principais trabalhos literários no que chamámos a Obra num Só Quadro (Fig. 19), reproduzindo individualmente a totalidade de várias obras de Carvalho numa superfície contínua, de modo a propor olhar de outra perspetiva as obras por si criadas.

O arquivo, lacunas e suas reviravoltas

Até ao momento, Os Papéis do Inglês é um dos livros em relação ao qual encontrei menos material de apoio à criação. O parco arquivo existente sugere que foi escrito de um só jorro ou quase: no formato digital, apenas algumas partes surgem alteradas na ordem e uma ou outra coisa foi eliminada de uma versão de rascunho para outra. Os Papéis… é a sua primeira ficção romanceada publicada, e resulta do seu forte domínio das fontes históricas sobre o sudoeste de Angola, adquirido nas pesquisas anteriores sobre os pastores kuvale.10 Poder-se-á ter dado o caso do material de pesquisa por si criado ter sido deitado fora, mas também não ponho de parte a possibilidade de me poder ter escapado uma sobreposição de pesquisas e materiais criados, e assim estarem “escondidos” através da sua reutilização de materiais, baseados na premissa de uma recorrente interrogação dos mesmos materiais. Este livro poderá também ser visto como resultado de dois processos cumulativos, de se inspirar numa história por si já publicada, combinando com tirar proveito de uma percepção aguçada pelo acesso e análise de um conjunto de outras fontes de pendor histórico.11 Esta combinação pode também ser a razão para a “deriva” dos materiais de apoio à criação de Os Papéis

A obra Vou Lá Visitar Pastores fornece outro exemplo estimulante para interrogar as lacunas que existem no espólio e que impedem de assumir uma perspetiva conclusiva sobre o método de Carvalho através do legado existente. Obra escrita através de uma estratégia de oralidade concebida como a transcrição de cassetes gravadas para um amigo que não conseguiu acompanhar a viagem do narrador ao sul de Angola, as cassetes que compõem a estrutura do livro não fazem parte do arquivo a que tive acesso. Serão partes do processo de trabalho usadas no livro que Carvalho não conseguiu ou não achou necessário salvaguardar, ou serão simplesmente um recurso narrativo cuja existência material nunca se deu? Saliento que no material criado durante a sua pesquisa de terreno entre os Kuvale existem referências a material gravado, também ele em cassete, e é pertinente enquadrar ambos materiais sonoros. Não precisando de recuperar as ditas cassetes gravadas por Carvalho para o seu amigo enquanto recurso estilístico – já que se encontram na obra –, recuperámos, no entanto, em tempo útil para a exposição, uma parte do conteúdo das cassetes gravadas como pesquisa, devido à sua colaboração com Rui Guilherme Lopes na adaptação de Vou Lá Visitar Pastores para teatro, num solo encenado e interpretado por Manuel Wiborg, em 2004. Para a exposição fizemos um documentário retratando o processo de Wiborg para tal trabalho, incidindo na questão da sua pontual reposição durante cerca de uma década, e a relação do ator com a memória desse texto dito em monólogo.12 Inquirindo sobre materiais usados na adaptação teatral do livro, através do contacto com André Pires, sonoplasta da peça, recuperámos para o espólio excertos de entrevistas gravadas a pastores kuvale nas tais cassetes de pesquisa e demos acesso na exposição a elas.

O uso das cassetes é onde método e obra resultante de Carvalho se confundem, e foram também o veículo através do qual a própria exposição permitiu agregar elementos até então suprimidos no seu legado – o que vejo como sendo também uma forma de o animar. Outro exemplo, desta vez a partir do convívio proporcionado no colóquio entre investigadores, e também possível através da colaboração de Carvalho com outros investigadores interessados no sudoeste de Angola rural, e do recurso ao digital, foi a recuperação parcial da transcrição de entrevistas gravadas entre os Kuvale nos anos de 1990.

Por fim, saliento um trabalho desenvolvido posteriormente ao colóquio e à exposição, consistindo na construção de um repositório de filmes realizados por Carvalho, intitulado RDC Virtual (Fig. 20), como uma componente de animar este legado, no sentido de o dar a conhecer. Em diálogo com a família, a decisão de permitir o acesso aberto em linha a partes de uma obra cinematográfica pouco vista, nomeadamente porque pouco acessível, surgiu através do pedido de vários investigadores e do público em geral, interessados em Angola durante o colóquio, e de pensar num modo de proporcionar acesso sem limites ao património cinematográfico salvaguardado posteriormente pela família.13

Fig20 Apresentação de Ruy Duarte de Carvalho para o repositório de filmes RDC VirtualFig20 Apresentação de Ruy Duarte de Carvalho para o repositório de filmes RDC Virtual

Em aberto: animando materiais do arquivo audiovisual

Gostaria, por fim, de abordar brevemente o trabalho de animar partes deste arquivo, pegando no exemplo de um vídeo que Carvalho fez em meados dos anos 1980 entre os pescadores na Samba, em Luanda. A master do filme como que está perdida, pois embora se encontre no espólio em formato analógico de vídeo, a fita está bastante danificada, provavelmente devido a uma exposição prolongada à humidade. Não sendo possível visionar o vídeo tal como realizado por Carvalho, é possível aceder às cassetes quem contêm material que pertence tanto à sua versão finalizada como ao processo da sua conceção, também em formato analógico. Em contraste com a master, foi possível aceder, em condições razoáveis, a cerca de 80% do material filmado, que consiste em cerca de 9 horas. É também possível articular estes brutos com o seu roteiro-argumento publicado na versão portuguesa da sua tese de doutoramento, Ana Manda (1989). Cumprindo a sua função, esse roteiro permite alcançar uma percepção mais nítida da estratégia narrativa que Carvalho pretendia para proporcionar sentido às imagens sobre o quotidiano dos pescadores da Samba retratado na versão finalizada: é baseado na voz off da personagem principal, um jovem residente na Samba, narrando uma carta ao seu irmão que se encontra no interior de Angola. A estes materiais acresce também um conjunto de cerca de 40 slides que consistem em videogramas do filme, alguns deles publicados no referido livro. As anotações sobre as cenas no roteiro e os videogramas existentes dessa versão finalizada permitem por isso tentar o que será sempre uma reconstituição parcial do vídeo – saliento que não encontrei nos brutos a gravação original da voz off

Assim, decidimos animar este filme para a exposição UDZC, mostrando o resultado desta incursão experimental inspirada pela articulação dos materiais referidos, a que chamei de Introdução a Videocarta ao meu Irmão Antoninho, indicando simbolicamente no resultado a articulação destes materiais (Fig. 21).

Para terminar estas breves considerações sobre este exercício, refiro que Carvalho encarava este filme como precisando de um corte diferente do que aquele que fez com o material rodado. Carvalho chama à master guardada “1.ª versão”, provocando a sensação dele se preparar um dia para a remontar. Este exercício consistiu num processo que considero ainda em aberto, para uma exposição que se pretendeu ser sobre processos.

Fig. 21− Dois fotogramas de Introdução a Videocarta ao meu Irmão Antoninho, realizado para a exposição UDZC. Apresentando todos os videogramas que Carvalho tornou slides com um enquadramento simulando o dito slide (esq.), no vídeo uso um enquadramento diferente para uma cena da qual existem duas versões no material rodado, e da qual não é possível aceder ao respectivo fotograma usado por Carvalho (dir.). A localização dos fotogramas no material rodado permitiu sonorizá-los.Fig. 21− Dois fotogramas de Introdução a Videocarta ao meu Irmão Antoninho, realizado para a exposição UDZC. Apresentando todos os videogramas que Carvalho tornou slides com um enquadramento simulando o dito slide (esq.), no vídeo uso um enquadramento diferente para uma cena da qual existem duas versões no material rodado, e da qual não é possível aceder ao respectivo fotograma usado por Carvalho (dir.). A localização dos fotogramas no material rodado permitiu sonorizá-los.

 

Conclusão

À exceção de algumas oportunidades em que vi e ouvi o autor, e tive, de certa maneira, oportunidade de com ele interagir, eu conhecia, sobretudo, o universo da sua obra publicada, os produtos do seu trabalho. A par da inventariação do seu espólio, e da exposição que se lhe seguiu, outras maneiras de aceder à sua obra se apresentaram: olhar para processos que levaram à criação das obras que conhecia e dialogar com pessoas que o conheceram bem. A exposição representou uma oportunidade de mostrar, mas também de criar resultados a partir do material do espólio de Carvalho e do seu inventário. 

Através do legado de Carvalho, nestas primeiras impressões sobre este autor salientei o caráter sistemático, meticuloso, planeado e comparativo de alguns dos seus processos de trabalho, nomeadamente o modo como as ideias se transformam ao longo do seu processo criativo. As suas estratégias criativas para pesquisa e escrita, desenvolvidas através de diferentes recursos tecnológicos, serviram também como fios condutores nos processos de inventariação e curadoria, estimulando formas diversas de animar este material para conduzir a novas perspetivas sobre o autor e a sua obra.

É na atitude exploratória de Carvalho que encontro semelhanças nos processos desenvolvidos durante a inventariação e a curadoria. Espero que a animação encetada possa facilitar e impulsionar outras inquirições sobre o legado e a obra de Ruy Duarte de Carvalho, bem como mostrar o quão inspirador foi pensar no modo como o autor foi concebendo a sua obra.

 

Bibliografia

Cordeiro, Ana Dias. 2010. “Ruy Duarte de Carvalho: a obra deste escritor também é cinema”. Público, publicado a 11 de novembro. https://www.publico.pt/2010/11/11/culturaipsilon/noticia/ruy-duarte-de-carvalho-a-obra-deste-escritor-tambem-e-cinema-1465493 (último acesso a 11 Abril 2017).

Dias, José Fernandes. 2008. “Dei-me Portanto a um Exaustivo Labor”. In Ciclo Ruy Duarte de Carvalho – Dei-me Portanto a um Exaustivo Labor. Organizado por José Fernandes Dias. Lisboa: CCB, fevereiro 2008. Folheto da Exposição, p. 3. Disponível em https://www.yumpu.com/pt/document/view/12981840/dei-me-portanto-a-um-exa...

Duarte de Carvalho, Ruy. 1977. Como se o Mundo Não Tivesse Leste. Luanda: UEA [Re-editado em 1980, Porto: Limiar 2; 1992, Lisboa: Vega; e 2003 e 2008, em Lisboa: Edições Cotovia].

⎯⎯⎯. 1984. O Camarada e a Câmera: Cinema e Antropologia para além do filme etnográfico. Luanda: INALD. [Re-editado em 1997, A Câmara, a Escrita e a Coisa Dita: fitas, textos e palestras. Luanda: INALD; e 2008, mesmo título, versão ampliada. Lisboa: Edições Cotovia]

⎯⎯⎯. 1989. Ana Manda Os filhos da Rede. Lisboa: IICT.

⎯⎯⎯. 1999. Vou Lá Visitar Pastores. Lisboa: Edições Cotovia.

⎯⎯⎯. 2000. Os Papéis do Inglês. Lisboa: Edições Cotovia. 

⎯⎯⎯. 2005. As Paisagens Propícias. Lisboa: Edições Cotovia.

⎯⎯⎯. 2008. “Vida e Obra”. In Ciclo Ruy Duarte de Carvalho – Dei-me Portanto a um Exaustivo Labor. Organizado por José Fernandes Dias. Lisboa: CCB, fevereiro 2008. Folheto da Exposição, pp. 4-5. Disponível em https://www.yumpu.com/pt/document/view/12981840/dei-me-portanto-a-um-exa...

⎯⎯⎯. 2009a. “Tempo de ouvir o ‘outro’ enquanto o “outro” existe, antes que haja só o outro… Ou Pré-Manifesto Neo-Animista”. In Podemos Viver sem o Outro?. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

⎯⎯⎯. 2009b. A Terceira Metade. Lisboa: Edições Cotovia.

Estermann, C. e A. J. da Silva, 1971, Cinquenta contos Bantos do Sudoeste de Angola: texto bilingue com Introdução e Comentário. Luanda: Instituto de Investigação Científica de Angola.

Estermann, C. 1956. Etnografia do Sudoeste de Angola. 1. Os Povos não-bantos e o Grupo Étnico dos Ambos, vol. 1. Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar.

⎯⎯⎯.1960. Etnografia Do Sudoeste De Angola. 2. O Grupo Étnico Nhaneca-Humbe, Vol. 2. Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar.

⎯⎯⎯. 1961. Etnografia do Sudoeste Angolano. 3. O Grupo Étnico Herero. Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar.

⎯⎯⎯.1971. A Vida Económica dos Bantos do Sudoeste de Angola. (subsídios antropológicos 1). Luanda: Junta Provincial de Povoamento de Angola.

Fiorotti, S. A. 2012. Conhecer para Converter‚ ou algo mais?: Leitura crítica das etnografias missionárias de Henri-Alexandre Junod e Carlos Estermann. Tese de Mestrado não publicada. Universidade Metodista de São Paulo. http://tede.metodista.br/jspui/handle/tede/236 (último acesso a 11 Abril 2017).

Lucas, Joana. 2008. “Ruy Duarte: pela miscigenação das artes”. Arte Capital, publicado a 18 de Fevereiro. http://www.artecapital.net/opiniao-61-joana-lucas-ruy-duarte-de-carvalho-pela-miscigenacao-das-artes (último acesso a 11 Abril 2017).

Needham, R. 1958. “The Formal Analysis of Prescriptive Patrilateral Cross-Cousin Marriage”. Southwestern Journal of Anthropology 14: 199–219.

⎯⎯⎯. 1960. “Patrilateral Prescriptive Alliance and the Ungarinyin”. Southwestern Journal of Anthropology 16: 274–291.

 

Filmografia

Duarte de Carvalho, Ruy. 1982. Nelisita: narrativas nyaneka. 70’. Instituto Angolano de Cinema.

⎯⎯⎯. 1986. Vídeo-Carta ao meu irmão Antoninho. Produzido no âmbito do doutoramento na École des Haute Études en Sciences Sociales, Paris.

⎯⎯⎯. 1989. Moia: O Recado das Ilhas. 90’. Produção Gemini Filmes, Filmargem, RTP (Portugal), Laboratório Nacional de Cinema UEE (Angola). [Director’s cut em 2006, com o apoio da Casa das Áfricas, Brasil).

Créditos

Figs. 1-2, 5-17, 20-21: Inês Ponte/Herdeiros de Ruy Duarte de Carvalho;

Figs. 3-4: Inês Ponte/Herdeiros de Ruy Duarte de Carvalho/BUALA;

Fig. 19: Pedro Castanheira/ Herdeiros de Ruy Duarte de Carvalho/BUALA.

 

Agradecimentos

Agradeço a Pedro Castanheira a sua laboriosa montagem das obras num só quadro. Agradeço também os comentários recebidos pela equipa editorial, que permitiram melhorar e clarificar a versão inicial deste texto. Por fim, agradeço à Catarina Grilo, o impulso para uma salutar revisão deste texto bem como a Manuela Ribeiro Sanches as suas sugestões de apuramento final.

 

____________

in Diálogos com Ruy Duarte de Carvalho (2019), Marta Lança et all (org), Lisboa: BUALA - Associação Cultural I Centro de Estudos Comparatistas (FL-UL). ISBN: 978-989-20-8194-6  

baixar o livro. 

  • 1. O título da exposição é tirado de Carvalho (1984, 14), que usou a expressão para enquadrar o equilíbrio procurado enquanto realizador de filmes numa Angola recém independente. É de notar que o autor assinou as suas primeiras obras cinematográficas nos anos de 1970 como Rui Duarte, para os distinguir da sua obra poética paralela e, mais tarde, adotou Ruy Duarte de Carvalho como sua assinatura de autor nos vários campos criativos e académicos que prosseguiu. Neste texto, por uma questão de simplicidade, opto por usar Carvalho para nomear o autor. Também por simplicidade, uso a forma ortográfica usada por Carvalho, para denominar as populações rurais do sudoeste de Angola abrangidas pelo seu trabalho.
  • 2. Usando material do espólio, a exposição na Galeria Quadrum, em Lisboa, apresentava trabalhos de artistas angolanos contemporâneos em diálogo com os seus vários núcleos: biográfico; Vou Lá Visitar Pastores; um para cada obra da trilogia Os Filhos de Próspero, i. e. Os Papéis do Inglês, As Paisagens Propícias, A Terceira Metade; Lavra: obra poética; obra audiovisual; Actas de Santa Helena: obra inacabada; e um núcleo dedicado às artes visuais. A Galeria Virtual, realizada a partir da exposição, e alojada no sitio virtual do BUALA desde fevereiro de 2016, pretende representar os núcleos e diálogos criados.
  • 3. Quem tenha conhecido a casa de Carvalho no bairro da Maianga, em Luanda, saberá a extensão que a sua biblioteca terá tido durante o longo período em que a habitou (cerca de três décadas). Ao desmanchar essa casa, depois de ter selecionado uma pequena parte que manteve consigo e outra que guardou em baús numa casa de um amigo no Namibe, Carvalho convidou amigos para escolherem ser novos donos da restante grande parte dos seus livros.
  • 4. A interdisciplinaridade da equipa de curadoria constituída possibilitou enriquecer as discussões sobre as propostas e pensar na melhor forma de execução dentro dos recursos disponíveis para a exposição.
  • 5. A etnoficção Nelisita (1982) realizada por Carvalho, por exemplo, é baseada em dois contos da literatura oral nyaneka fixados por Estermann e Silva (1971).
  • 6. Saliento que no trabalho de Estermann pairam questões sobre quem foram os seus interlocutores, de quem lhe chega a informação que ele reúne e em quem se baseia para definir estruturalmente os contornos culturais de uma região tão vasta e diversa (ver, nesse sentido, Fiorotti 2012). Num alinhamento bastante recorrente da etnografia produzida em contextos coloniais, o seu trabalho acaba por ter algumas problemáticas difíceis de confrontar. Isso leva-me a sugerir, a quem estiver interessado na vida destas populações, a começar pelo trabalho de Carvalho ou pelo menos conhecido trabalho de Estermann, Vida Económica dos Bantos do Sudoeste de Angola (1971), realizado com o intuito de dar a conhecer a colonos portugueses como faz pela vida a maioria da população negra nas áreas rurais.
  • 7. Rodney Needham (1923-2006) é um antropólogo inglês seguidor do estruturalismo, teoria social de origem francesa com grande impacto na antropologia a partir dos anos de 1950, nomeadamente através do trabalho de Claude Lévi-Strauss (1908-2009).
  • 8. Faço notar que esse processo de repensar este conjunto de livros pode ser melhor entendido novamente pela ideia de ziguezague entre vivências, conhecimento e criação, já que Carvalho foi publicando outras obras entre o segundo e terceiro volume da trilogia.
  • 9. Entre vários exemplos possíveis destaco o facto de a estratégia narrativa do uso da cassete gravada tão central em Vou Lá Visitar Pastores, já ter sido experimentada em Moia: O Recado das Ilhas, filme de ficção rodado quase uma década antes. Outra ideia que surge neste filme, aplicada posteriormente, desta vez com um intervalo de cerca de 20 anos, é a referência à peça de William Shakespeare (1564-1616), A Tempestade, onde Próspero é um dos protagonistas.
  • 10. Outro exemplo do amadurecimento de ideias, mas também do pendor perfecionista de Carvalho, é a sua procura de reeditar posteriormente algumas obras em edições atualizadas. Talvez o melhor exemplo seja o livro de contos Como se o Mundo Não Tivesse Leste (1977, 1980, 2003, 2008), onde Carvalho atualiza de uma edição para outra (de 1980 para 2003) a forma de um dos contos, “As Águas do Capembáua”, e não tanto o conteúdo – para isso lhe servirá a criação de Os Papéis do Inglês.
  • 11. A história anteriormente publicada a que me refiro é “As Águas de Capembáua”, conto que Alexandra Dias Santos analisa comparativamente no painel “Histórias de Angola” do colóquio, enverando por uma estimulante análise comparativa no contexto da literatura angolana.
  • 12. Não Há Assim uma Regra, de 19’, encontra-se acessível em https://vimeo.com/148311318.
  • 13. Salvaguarda que consistiu num processo também ele nada linear, para o qual contou o impulso da retrospectiva planeada pelo Estoril Film Fest em 2010 (ver Cordeiro 2010).

por Inês Ponte
Ruy Duarte de Carvalho | 8 Outubro 2020 | antropologia, exposição, Literatura, Ruy Duarte de Carvalho