Decálogo neo-animista - Ruy Duarte de Carvalho
Primeira proposta para um decálogo neo-animista (primeira ou porque sujeita a uma incessante reelaboração que jamais conduzirá à fixação de um decálogo final, conclusivo ou definitivo, ou o primeiro de uma infinita série de decálogos……………)
1 – Embora parta da concepção animista segundo a qual tudo no mundo detém uma alma igual que cada existência exprime conforme o corpo que tem e a substância que o sustem, a designação de neoanimismo ocorre para dar nome a um programa de acção urdido para questionar o paradigma humanista que domina e conduz a marcha do mundo alargado ao exercício e à responsabilidade da espécie humana inteira mas exclusivamente segundo a gramática imperativa produzida e mantida operante por apenas uma parte dela. Para os neoanimistas, a proposta e a implementação desse programa constitui tarefa primeira. Esse programa, porém, não pretende servir-se só de referências advindas da gramática do paradigma animista mas também das de todos os paradigmas culturais ou civilizacionais inventariáveis no passado e no presente de todas as partes do mundo aonde a espécie humana tenha produzido ou produza interrogação, reflexão, invenção, conceito, norma e eixo de acção.
2 – O paradigma humanista, imposto à espécie inteira pela via da ocidentalização completa do mundo, e decorrente da colocação ideológica e idealista da terra no centro do universo, e do homem no centro da criação e do lado do divino em oposição ao resto da natureza, ao procurar garantir, no seio da criação, um lugar de eleição e privilégio para o homem, produz necessária e obrigatoriamente lugares de eleição e de privilégio para certos homens e grupos de pessoas e promove incessantemente impasses que põem em causa a sorte e o destino da espécie inteira e até quiçá da criação total (sem com isso conseguir resolver ou anular necessariamente os impasses anteriores que deram origem aos seguintes). A espécie, no geral, tem hoje a plena consciência disso, daí a profusão de alertas catastrofistas como parte da pacotilha da acção política e cívica presentes.
3 – Toda a contestação, mesmo revolucionária, ao curso da história sob o figurino humanista se tem empenhado na proposta, na adopção ou na imposição de remedeios dentro do próprio paradigma humanista. Os neoanimistas entendem que o que importa é colocar o próprio paradigma humanista em questão. Isso constitui para eles tarefa primeira e cuidarão sempre de procurar encarar os fundamentos dos vários paradigmas em vez de se deixarem armadilhar por questões de modalidade dentro do paradigma humanista.
4 – A intervenção neoanimista, reconhecendo embora que a dinâmica do paradigma humanista se impõe, impôs e imporá a toda a terra habitada e desabitada (é um facto indesmentível e em pleno curso indetenível porque integrado culturalmente na dinâmica inventiva transformativa que assiste à espécie inteira) propõe convocar, para recuperação e adequação ao todo do destino do homem a haver, acções, entendimentos e políticas fundamentados em outros paradigmas igualmente produzidos pelas culturas dos homens, mais a convocação de todos os saberes disponíveis, reconhecidos ou não, inclusive saberes que decorrem de produções humanistas para além daquelas que se situam nos domínios das ciências e das ideologias, como é o caso das sabedorias e das poesias. Os neoanimistas sabem também que a dinâmica transformativa própria da espécie é património da própria espécie e não apenas daqueles que o paradigma humanista produz ou domestica.
5 – A inventariação de todos os impasses humanistas presentes passados e previsivelmente futuros é tarefa neoanimista. Por exemplo: o sistema económico produzido e instaurado pelo paradigma humanista colapsa quando a economia não cresce. O presente da espécie indicia por outro lado, no presente, uma recessão de crescimento demográfico em curso a partir da europa e presumivelmente consumável a prazo à dimensão global do mundo. Logo uma perspectiva a haver de recessão dos consumos, logo……..
6 – Segundo o que parece sempre ter acontecido, e desde o mais remoto passado, desde que o curso da história regida pelo paradigma humanista conduz a impasses ou a excessos maiores e evidentes (por exemplo: baixo império, baixa idade média, crítica da razão pura, cientifismo), ele mesmo, o paradigma humanista, através dos dissidentes que também produz, convoca razões outras e saberes outros (plotino/porfírio, renascença, leibniz / de vico – prevenindo contra o progresso - , romantismo, dada-surrealismo). É o que tenderá a passar-se agora e daí a emergência de propostas heterodoxas perante a exaustão e o espectáculo dos remedeios e dos catastrofismos… A catalogação de todas as críticas ao humanismo, à ditadura da razão científica, à ideologia do progresso, ao império da coação tecnológica e à dinâmica do crescimento delirante e autofágico é tarefa neoanimista.
7 – Criticando ou combatendo o paradigma humanista e prognosticando a recuperação de políticas do equilíbrio, os neoanimistas pretendem antes recolocar o desempenho e a livre existência das pessoas em equilíbrio, precisamente, com os interesses comuns das pessoas, de todas as pessoas e de toda a criação.
8 – Não cabe aos neoanimistas nem inventar nada nem sentirem-se obrigados a isso. Antes tão só insistir em convocar todos os saberes e rever os dados e os documentos e os materiais todos disponíveis . Eles podem revelar respostas outras, sendo os tempos outros e as situações outras, para além daquelas que lhes decifraram consultadores anteriores ou mesmo quem os recolheu ou instaurou.
9 – O neoanimismo não é uma escola, nem uma igreja, nem uma seita, nem um partido, nem um grupo ou célula de acção. Entendendo embora que o paradigma humanista não detem o exclusivo das modalidades, das medidas e dos dispositivos necessários e pertinentes ao exercício da vida e da carreira da espécie nos terrenos da terra e do mundo, os neoanimistas não perdem de vista que a própria emergência de um movimento que se pretende com os seus contornos é decorrente e tributária do império e da carreira do paradigma humanista.
10 – Admitindo pois que embora da condição do mundo e dos homens faz parte a perturbante evidência de que o misterioso mister da existência implica vida em sociedade e um fatal aparelho de instituições, chefias, lideranças, delegações e normas colectivas de gestão de recursos, controle dos comportamentos e coberturas das relações, os neoanimistas pretendem agir e fazer-se ouvir porque entendem que o paradigma humanista não detem o exclusivo das modalidades, das medidas, dos dispositivos necessários e pertinentes para a vida em sociedade e nem sempre adopta aqueles que pareceriam mais adequados à integração das situações que gera, instaura, sustenta e reproduz. Outros paradigmas postos de parte e arredados de consideração por advirem de culturas dominadas ou anuladas pelo ocidente, poderão ser recuperados e adaptados a situações relidas agora, ou inventados a partir da reconsideração dos seus fundamentais estigmatizados como arcaicos pelo processo de imposição da civilização ocidental. Isto pode ser válido e pertinente para o exercício tanto das políticas de poder e controle como das políticas de manutenção e reprodução da espécie e das de aprendizagem e expressão das pessoas.
11 – Estamos juntos todos, todos no mesmo barco, os homens todos e tudo quanto existe no universo inteiro. E se existirem outros universos, também eles, ainda, estarão junto connosco no mesmo barco. E deus não é uma entidade… É o total de um processo criativo e indecifrável em devir do qual cada um de nós, pessoa, animal, pedra, capim, astro, asteróide, vento, sopro e suspiro, desgosto e dor, euforia e glória, faz parte integrante e inalienável……
Escrito em 2009