Cinema e antropologia para além do filme etnográfico
sobre a série Presente Angolano, tempo Mumuíla (1979)
Ao longo dos três mil quilómetros percorridos desde Luanda até ao interior do deserto do Namibe, havíamos atravessado quatro das nove áreas linguísticas do país e nada menos de quinze populações etnicamente diferenciáveis. Desta viagem resultaria uma série de documentários cuja estruturação e montagem nos impuseram uma reflexão que muito rapidamente nos conduziria para além do domínio do cinema. Para realizar um trabalho adaptado à realidade nacional impunha-se-nos assumir uma consciência alargada ao conjunto das componentes que faziam da totalidade do país o lugar de uma única euforia. Uma euforia perante a qual, no entanto, nós não podíamos deixar de experimentar um sentimento ambíguo de encantamento e de angústia, espanto e entusiasmo, tão numerosas e particulares se revelavam as suas expressões locais. Tornava-se-nos claro, assim, que deveríamos levar o nosso esforço de esclarecimento para além da simples tomada de consciência que animava então todos quantos se achavam em condições de ler e de informar-se. De facto, se a História nos ajudava a compreender algumas das particularidades detectadas nos 1.250 mil km2 de território nacional, nomeadamente as que resultavam de um desenvolvimento desigual das forças produtivas, como tinha passado a dizer-se então, ela não se mostrava suficientemente operatória para prover à compreensão das diferenças de ordem cultural que se nos deparavam cada vez que nos víamos confrontados com o material que desfilava na mesa da montagem.
Uma vez mais, e à semelhança do que nos havia acontecido em relação ao exercício de outras actividades, se nos impunha recorrer a outra forma de conhecimento e informação, a antropologia, enriquecida agora pela reflexão francesa que nos chegava através de obras para as quais Angola tornada independente constituía então um terreno particularmente receptivo. A necessidade de recorrer à antropologia iria revelar-se ainda mais premente quando alguns meses depois decidimos orientar a nossa actividade para o tratamento de problemas afectos às populações do sul do país, escolhendo o sector rural como campo de acção por ser esse o terreno que melhor conhecíamos, aquele a que afectivamente nos sentíamos mais ligados e, sobretudo, porque dizia respeito à realidade de mais de 80 por cento da população angolana.
Deste novo projecto resultaria uma série de 10 documentários que foram apresentados, a alguns públicos, precedidos do texto seguinte:
“O trabalho completo totaliza cerca de seis horas de cinema, repartidas em 10 filmes cuja duração varia entre 20 e 60 minutos, e constitui uma abordagem preliminar e global ao presente da população mumuíla, do grupo étnico-linguístico Nyaneka-Humbe, sudoeste de Angola”.
“Cinema etnográfico? Sê-lo-á também aquele cinema que, ocupado com situações actuais e problemas pontuais, não pode por isso dispensar a referência, a fixação e o tratamento de elementos ou dados culturais afectos aos domínios da antropologia, mas vivos e portanto actuantes no terreno do confronto (cultural, social e político) entre um passado cujas fórmulas se mantiveram para além e apesar da acção colonial (de memória ainda recente) e as propostas de futuro (actualização, modernização, progresso) que o tempo, os tempos, inexoravelmente impõe, impõem?”
“A arena deste confronto é extremamente vasta quando as circunstâncias se conjugam de forma a condensar a História: colonização superficial, independência recente, urgência na acção política”.
“Tyongolola, chefe de linhagem, cuja mãe é viva ainda e terá sido testemunha da instalação dos primeiros brancos na região, preside aos funerais de um sobrinho morto por acidente nas obras de uma barragem que se constrói a 20 km de sua casa”.
“Entre a sede do antigo reino do Jau, onde todos os anos se cumpre ainda a cerimónia de encerramento do cortejo do boi sagrado, manifestação ritual que envolve toda a população do reino e pressupõe a cessação de qualquer actividade económica durante um período de dois meses, e a Universidade do Lubango, onde as novas gerações (futuros dirigentes, saídos alguns também desse mesmo antigo reino) são iniciadas nos termos de uma actuação adaptada aos imperativos de um modelo de desenvolvimento que se quer industrial, distam apenas 40 km”.
“Que pensam, uns dos outros, do lugar que ocupam no mundo e do próprio mundo que ocupam aqueles que, perante a câmara, são chamados a depor?”
“Nem a busca de sobrevivências culturais nem a sua subestimação. Nem a exaltação das propostas políticas nem a sua escamoteação. Uma linha de equilíbrio entre dois dinamismos: o de um tempo mumuíla e o de um presente angolano. Percorrê-la afoitamente, sensível à precariedade dos dias e das horas. Interrogar? Nem isso. Expor apenas, talvez, e garantir ao filme uma autonomia que lhe permita simultaneamente revelar-se válido como cinema, útil como referência (criar, encontrar nele um clima de síntese que facilite a leitura e a avaliação das situações) e fiel como testemunho. Talvez assim se consiga estabelecer uma delicada zona de compromisso entre quem fornece os meios, quem os maneja e quem depõe, se expõe perante os mesmos”.
Do exposto se infere qual é a nossa posição relativamente ao cinema que escolhemos fazer. O profissional de cinema tem plena consciência de que para fazer um trabalho de acordo com a realidade nacional deve munir-se de instrumentos de reflexão que lhe permitam escolher o que deve filmar e como fazê-lo. Ele sente-se autoconduzido à escolha de temas que legitimem o emprego do seu tempo de trabalho, e do da sua equipa, numa actividade não directamente produtiva e numa conjuntura em que a reabilitação da economia e da organização se impõe a todos como tarefa prioritária. Ele deve dotar-se, através do cinema, de uma capacidade de participação que se inspire sem ambiguidade no movimento de libertação que anima, a todos os níveis, o espírito de qualquer nação que adquire a sua independência política.
Publicado originalmente em O camarada e a câmara: Cinema e antropologia para além do filme etnográfico, Luanda: INALD, 1984 e compilado em A câmara, a escrita e a coisa dita… Lisboa: Cotovia, 2008