O direito à exigência
Implicado circunstancialmente nos terrenos e no momento em que se diligenciava a preparação deste número de Lusotopie, várias vezes fui interpelado relativamente à exiguidade de uma conjecturável participação angolana, circunstância que, apreendida do exterior, não pode, muito logicamente, deixar de situar Angola de forma desvantajosa perante a produção analítica que outros espaços de língua oficial portuguesa em África, Moçambique e Guiné Bissau nomeadamente, têm conseguido disponibilizar, muitas vezes com brilho, através dos canais, escassos mas oportunos, daquela comunicação especializada que se ocupa das realidades que nos envolvem quer como actores quer como eventuais observadores.
Tal evidência, impossível de negar, suscita da parte do Angolano que sou, evidentemente, um imediato investimento verbal e especulativo chamado a conferir alguma intelegibilidade a mais esse testemunho daquele generalizado desconcerto angolano que tende, em todos os domínios, incluindo este, portanto, a assumir uma expressão incontornavelmente redutora.
As condições de produção do texto científico não poderão deixar de ser, em primeiro lugar, tanto em Angola como em qualquer outra parte do mundo, as da própria produção da ciência. Será necessário assinalar que as duas últimas décadas da cena angolana não têm sido as mais propícias ao exercício da ciência, inclusive no que se refere às ciências sociais ou humanas? A Universidade? O organismo de investigação científica herdado da estrutura colonial, que contemplava também a pesquisa em ciências sociais e produziu no passado alguns materiais de mérito nesse domínio, não conseguiu adaptar-se enquanto tal, sequer preservar-se, atravessou a pós-independência adoptando as formas de cristalização burocrática mais adequadas, ou as possíveis, às várias fases do “processo”, deixou finalmente de existir enquanto entidade formal e dele subsistem hoje uma colecção de calhaus, um acervo bibliográfico mumificado e alguns funcionários discreta e mudamente espectantes. O ensino das ciências sociais, por sua vez, de que a necessidade foi tantas vezes brandida e mesmo política e ideologicamente reconhecida, nunca lhe foi autorgado, enquanto ao mesmo tempo a tarefa era assumida por instâncias políticas que durante alguns anos se empenharam em conferir licenciaturas, dando direito à apelação de “Doutores”, a quadros políticos fiéis mas na sua maioria carentes, e ávidos, de uma qualquer qualificação académica.
A “Cultura”, os seus organismos e institutos, os seus serviços centrais, secretaria de Estado antes, Ministério agora? Será arriscar muito dizer que, ao longo de todos estes anos, o seu exercício visou sobretudo, e quase exclusivamente, a produção de eventos imediatamente rentabilizáveis do ponto de vista político, daí o privilégio sempre dado ao espectáculo, à promoção, muitas vezes alargada à escala do delírio, de uma ansiosa e quase sempre pouco fundamentada ou digna “cultura nacional”, ou, quando excepcionalmente investido para além disto, à programação de colóquios e de debates mais receptivos a testemunhos capazes de justificar e consolidar a política em curso do que de ensaiar qualquer inadvertida interrogação, científica ou intelectualmente formulada, por mais tímida que fosse.
A “Cultura” dispôs sem dúvida de um gabinete técnico, a que competiria a gestão da pesquisa, e no seu interior chegou mesmo a emergir um conselho científico, que avaliou, aprovou e recomendou a “implementação” de projectos julgados “consequentes”. O que se fez e faz ainda hoje a partir daí, porém, teve que encontrar alhures a cobertura, o estímulo e os meios necessários à consecução dos projectos, e se neste momento começam a ser divulgados certos resultados é porque nalguns casos até mesmo os escassíssimos recursos de sobrevivência pessoal dos seus autores foram investidos nisso. E quanto à responsabilidade dos próprios intelectuais angolanos, sendo a nossa literatura a prova cabal de que Angola dispõe de um notável potencial de produtores de pensamento?
Talvez a situação esteja em vias de mudar. Não é verdade que existe hoje um apreciável número de angolanos no exterior, dando curso a formações de pós-graduação que estatutariamente os hão-de qualificar para a investigação? Será talvez de interesse para a análise assinalar que muitos desses actuais “doutorandos” são em grande número, de facto, ex-directores, precisamente, dos organismos da “Cultura” de há pouco tempo ainda. Voltarão a Angola para desempenhar de novo cargos de direcção administrativa ao serviço da política que vigorar no momento, mais exigente, esperemos, e mais apta, portanto, a rentabilizar a capitalização de saber a que agora procedem? Talvez alguns voltem e desses alguns arrisquem a pesquisa. Também porque a atitude do exterior parece estar em vias de mudar em relação aos pesquisadores angolanos…
Durante o tempo que decorreu até aqui aconteceu mesmo que alguns observadores vindos do exterior não hesitaram em entender os intelectuais angolanos, no seu conjunto, possuídos por uma esquizofrenia colectiva e isso lhes justificou, inclusivamente, considerá-los como “meros” informantes, com interesse sem dúvida para as suas próprias pesquisas mas não mais que isso, sancionada assim a legitimidade de veícular em primeira mão não só informações mas também análises debitadas em momentos exaltados de entusiástico fervor hospitaleiro. Para outros, que poderia esperar-se de aventureiros insidiosos, formados não se sabia bem como, portadores de um discurso que insinuava críticas ao sistema monopartidário e totalitário angolano, mas que nem por isso os revelava menos comprometidos com ele, os percursos pessoais, feitos de coexistência e acomodação dando testemunho disso, talvez só empenhados, quem sabe, em forjar assim um lugar a que a hetero-doxidade do seu comportamento cívico ou social lhes não dava acesso? E que pretendiam afinal fazer num país devastado pela guerra e só nela investido? Não fosse esse o caso e estariam lá eles, os pesquisadores sérios, do exterior, credenciados pelo seu passado colonial…
Angola porém, mesmo que até aqui não se tenha manifestado muito nos terrenos da análise social, existe ainda assim e também em relação a tal esfera de interesses. Só que à sua própria medida, quer dizer, “em grande” e sempre imprevisivelmente. É desta forma que, na sequência da constituição de uma associação de antropólogos e de sociólogos angolanos, está em curso em Luanda a criação de uma revista de ciências sociais. Chamado naturalmente a filiar-me na primeira, acedi também a integrar o conselho editorial da segunda. Como antes, e inapelavelmente, estou inserido no processo. De facto, embora possa contestar o bem fundado das verdadeiras intenções que terão levado à institucionalização da associação, matéria que não desenvolverei aqui, nada tenho, em boa verdade, contra o aparecimento de uma tal formação de classe. Não me situo no entanto da mesma maneira no que diz respeito à oportunidade da publicação da revista. E aproveitei precisamente o artigo com que me propus introduzi-la para expor aí as razões das minhas reticências. Reconheço com satisfação de que forma uma revista deste tipo, na Angola do presente, é mais uma manifestação daquela vitalidade que nos tem permitido resolver informalmente tudo o que a incapacidade oficial tem deixado em suspenso, nomeadamente o provimento das nossas necessidades mínimas elementares, as do corpo mas também as do espírito, e as de um conhecimento efectivo de nós mesmos, ao que a revista em causa poderá querer responder. A não ser, e aqui passo à apreensão, que ela venha tão só e afinal a resultar em (e a revelar-se como) mais uma expressão das movimentações estratégicas, tão banalizadas entre nós, de afirmação pessoal ou colectiva, privada de outro conteúdo, ou alcance, que não seja precisamente o de uma instrumentalização imediata e imediatista que desminta em si mesma a vocação científica com que se pretende legitimar a iniciativa.
Daí que me ocorram à partida algumas das questões precisas que pus à direcção da associação, responsável pela publicação e pela sua política editorial: que sentido faz investir tanto empenho e energia (não dispomos inclusivamente nem de papel no mercado nem de parque tipográfico senão através de canais só abertos a toda a ordem de expedientes, investimento pessoal, circuitos de influência, dependência e compromisso) para dar testemunho de um pano de fundo que afinal praticamente não existe, a da pesquisa em ciências sociais? Não seria mais razoável e útil (socialmente, claro) investir tudo isso na própria pesquisa? A quem pretendemos dirigir-nos? Ao exterior, para dar prova de que afinal existimos? Insisto: não seria mais razoável, etc… Ao interior? A nós mesmos, profissionalmente identificados, para informação e enriquecimento mútuos, aos políticos, aos legisladores, aos juízes, na esperança de que algum dia nos venham a ler, aos intelectuais angolanos, tão desconcertados e perplexos quanto nós mesmos, irmãos da mesma família, à juventude nacional, tão ávida e carente de fontes de conhecimento que se possam considerar minimamente sérias e isentas? Avante então. Condição única: ou é para ser a sério ou então não vale a pena. Nós, Angolanos, também temos o direito à exigência, sobretudo aquela que nos impusermos a nós mesmos. Uma revista de ciências sociais neste momento, em Angola, a não ser a sério poderá talvez vir a ser apenas um malefício a mais imposto inadvertidamente ou não, à já tão abalada saúde nacional.
Lisboa, em trânsito para Luanda,
Lusotopie, 1995