Outros lugares, outros tempos.Viagens pela pós-colonialidade com Ruy Duarte de Carvalho
Qual a relevância da obra de Ruy Duarte de Carvalho para se pensar a pós-colonialidade? É esta a questão que me parece quase óbvia, quando releio os seus textos, sobre eles reflicto, neles reencontro propostas que, escritas a partir de outros lugares ou de lugares idênticos – África, Europa, Brasil –, me suscitam interrogações semelhantes, formas de ler o passado e o presente em que me revejo mais facilmente do que em outros autores.
Como poucos escritores de língua portuguesa Ruy Duarte de Carvalho faz da condição pós-colonial um tema recorrente na sua obra. Designação equívoca, o ‘pós-colonial’, apesar de todas as tentativas por a precisar, delimitar, explicar. Pois ela transporta alguma coisa que poderia designar de jargão académico global. A sua utilização é, por vezes, mera estratégia a mostrar que se soube estugar o passo pelas tendências hegemónicas, provenientes de academias mais ‘visíveis’, mais ‘desenvolvidas’, mais ‘cosmopolitas’. Contudo, persisto em utilizar o termo, nem que seja por preguiça (académica), ciente do conforto que o jargão também fornece. Conforto, porque nos remete para autoridades, mais ou menos distantes no espaço, que nos confirmam e avalizam intuições e experiências, conforto, porque nos permite nomear de um modo mais expedito complexidades que outras designações muitas vezes não dão a ver. Risco, entre nós, onde um passado colonial maldigerido e uma nostalgia pós-colonial insistem em insinuar-se sob tiradas contra o ‘politicamente correcto’ ou modas teóricas importadas.
O que se segue é uma tentativa de mostrar o que se oculta por detrás da palavra, a raiar, por vezes, o chavão, pós-colonialidade, para tentar descolá-la de leituras apressadas, dando, ao mesmo tempo, a ver de que maneira as propostas dos textos de Ruy Duarte de Carvalho com ela mantêm afinidades de eleição, bem como a sua relevância para se pensar a condição pós-colonial a partir de um autor ausente de antologias de circulação global sobre a matéria.
Convenhamos que a designação pós-colonialidade é, insisto, no mínimo, equívoca. Antes de mais, devido a esse pós a evocar tempos de cepticismo triunfante – e marcadamente etnocêntrico – como o foi a época em que predominaram as denúncias das grandes narrativas e das vanguardas artísticas ou o relativismo anarquizante, ao sabor de conjunturas euro-americanas. Era a época do liberalismo musculado de Thatcher, Kohl, Reagan. Em Portugal o cavaquismo sucedera ao Abril utópico e digeria-se como se podia e sabia – sem grande debate – as propostas pós-modernistas que nos vinham de ‘lá fora’. Depois veio a era Clinton e o New Labour, as terceiras vias de Giddens e do guterrismo a mostrar como as divisões tradicionais entre esquerda e direita cada vez mais se tornavam complexas. O certo é que o pós colou, quando o mundo assistiu ao fim da ‘guerra fria’, da divisão do mundo em dois blocos antagónicos, ao ruir das últimas certezas ideológicas, e a globalização veio instalar-se como pior ou melhor dos mundos possíveis: veio o pós-comunismo, o pós-feminismo, e finalmente o pós-colonialismo.
O que mostra o carácter equívoco deste pós: como se o comunismo alguma vez se tivesse concretizado, como se o feminismo tivesse dado lugar a uma sociedade em que as mulheres protagonizem algo de efectivamente alternativo aos papéis herdado, como se o colonialismo fizesse efectivamente parte do passado.
Mas persiste-se – eu também – em utilizar esse pós, até porque ele aponta para algo que não é apenas da ordem da cronologia. Se bem que os contextos históricos tenham sido decisivos nestes processos, o modo como as questões que afectam a nossa contemporaneidade passaram a ser equacionadas alterou-se, demarcando-se das grandes tradições do século XIX e primeira metade do século XX, levando a uma forma, não digo radicalmente nova, mas certamente alternativa, de pensarmos as questões teóricas, epistemológicas e políticas. E, num certo sentido, o pós é em grande parte tributário do pós da pós-modernidade.
Pois o pós, também na pós-colonialidade, pretende questionar as grandes narrativas do progresso, da marcha mais ou menos triunfante da necessidade histórica ou das suas convulsões dialécticas, as grandes certezas teóricas a acenar com verdades universais que deram a ver o seu etnocentrismo particularista, a sua relatividade, ao mesmo tempo, que paradoxal –dialecticamente? – a globalização, aparentemente uniformizadora, mas inegavelmente hegemónica e desniveladora, veio confirmar as expectativas dos mais pessimistas. Cada vez mais ligado entre si, mais móvel, o mundo não deixou de ser, por isso, menos desigual, menos injusto, menos agarrado a antigas dicotomias, binarismos que o pós precisamente tem querido questionar. Pois entre os muitos pós também houve o do pós-estruturalismo – para me refugiar mais uma vez na comodidade do jargão – que via precisamente com suspeição o mundo excessivamente arrumado, geométrico e universalista dos seguidores de Saussure e de Lévi Strauss.
Em suma, o que o pós pretende assinalar é menos uma ruptura ou mero depois cronológico, do que uma incerteza, uma aporia que se revê e não revê nos pressupostos que, quer queiramos ou não, nos foram facultados pela tradição ocidental que, quer queiramos ou não, como Ruy Duarte de Carvalho também o reconhece, nos continuam a reger, a nível económico, político e teórico. Mas usamos esses conceitos, esses programas, ou princípios, de forma heurística, estratégica, sem certezas, nem garantias. A pós-colonialidade – e menos o pós-colonialismo, termo que me parece ainda mais infeliz – é assim antes de mais uma condição, um questionar, do que um programa, ou uma ‘realidade’, um ponto de partida para um itinerário incerto; sobretudo, é uma perspectiva que se recusa as certezas de uma subjectividade segura, consciente de si – à imagem da tradição do idealismo alemão, que perpassa ainda no melhor de Marx –, dela fazendo condição de uma reflexão questionadora dos princípios e dogmas em que outrora se sustentara.
Reflexividade crítica e auto-questionadora que perpassa pelos textos de Ruy Duarte de Carvalho.
Etno-poesia, relato de viagem e crónica política, as fronteiras entre géneros diluem-se ou mantêm uma tensão inquieta, dando a ver os bastidores das teses avançadas, das interpretações e das experiências em que aquelas se fundamentaram; ficções verdadeiras a interrogar os limites entre os ‘factos’, a ‘realidade’ e o labor poético. Sem quaisquer pretensões lúdicas, não vá o leitor confundir esta hibridez efectiva com uma miscelânea pós-moderna e pós-colonial, no sentido mais banal que estes significantes podem ter, celebradora do status quo. Muito pelo contrário: há na escrita de Ruy Duarte de Carvalho algo que se furta a qualquer rótulo, mas que antecipa muitas das reflexões que noutros lugares se fizeram de modo afim, uma lucidez inquietante, uma amargura a raiar o cepticismo radical – mas não será esta condição da primeira? -, um constante auto-questionamento e autoreflexividade que a sua escrita paraláctica, de longas frases, entremeadas por longos parêntesis, a justificar e a questionar o que antes afirmou, vem confirmar.
Outros tempos, outros lugares. Viagens. Não é arbitrário o título que me ocorreu, o que, como o próprio Ruy Duarte de Carvalho bem mostra nos seus textos, é decisivo no que toca ao que se escreve, antes e depois. Assinale-se com efeito os títulos enigmáticos, auto-reflexivos, poéticos, para usar de um termo pouco preciso, que dá aos seus textos: Vou lá visitar pastores, Actas da Maianga, Desmedida para referir apenas alguns deles e os que mais directamente me inspiraram.
São todos textos de viagem. Viagem de antropólogo a caminho do terreno, narrando a um interlocutor privilegiado as suas experiências, contando os pastores kuvale a um amigo em Londres, ou o Brasil ao amigo pastor. Diálogos, monólogos, a acompanhar trânsitos entre Lisboa, Luanda, Nova Iorque, entre Angola e o Brasil. Viagens não só entre lugares, mas também entre textos que com ele viajam, o inspiram: desde estudos sociológicos ou antropológicos, a romances, narrativas de viagem, ensaios filosóficos, todos eles adquirem essa mobilidade nómada que o analista dos pastores kuvale parece partilhar com os seus ‘objectos de estudo’. Viagens entre o terreno, as sociedades ‘tradicionais’ e as ‘modernas’, entre ‘centros’ e ‘periferias’, rio acima, no Brasil, evocando Guimarães Rosa e Euclides da Cunha, bem como Cendrars, deixando-se fascinar pelo aventureirismo de um Sir Richard Burton (Desmedida).
Viagens entre livros, mergulhando em textos ou em reflexões ensimesmadas, o Eu a virar-se sobre si mesmo e as leituras, hesitando entre o mundo interior, para logo se abrir ao pormenor empírico de uma certa luz, um certo relevo, em que lê modos de entender o mundo em geral.
Viagens que permitem olhar o mundo de modo alternativo, menos segundo uma equidistância a confirmar certezas, do que decorrendo de um envolvimento múltiplo que leva a que a subjectividade surja na sua dimensão mais auto-reflexiva e menos segura de si. O que não invalida as afirmações polémicas e contundentes, mas sempre limitadas pelo questionamento de si.
Outros tempos, outros lugares. O título não pretende recorrer mais uma vez a uma estafada noção de alteridade, dessa diferença produzida a que Ruy Duarte de Carvalho dedica algumas das suas invectivas, ciente do modo como a ‘diferença’ é também ela produzida pelos discursos hegemónicos, classificadores e, por isso mesmo, redutores, da multiplicidade caótica dos mundos que conhece a um modelo que, em última instância, tanto serve para dominar como para apaziguar más consciências ocidentais. Com o título, pretendo antes avançar a ideia de que existe efectivamente em Ruy Duarte de Carvalho uma forma de escrever o mundo nosso contemporâneo que permite leituras que coincidem, antecipam algumas das mais brilhantes propostas que o pensamento sobre a póscolonialidade permitiu. Lemo-las no modo como se recusa a pensar o mundo de modo binário, sempre atento ao que o lugar para que viaja lhe oferece, lemo-lo no modo como avalia de modo crítico projectos desenvolvimentistas, incapazes de se subtrair a uma estafada filosofia do progresso – naquilo que ela tem de mais etnocêntrico – e de reconhecer que em pouco ou nada contribuíram para a resolução dos problemas do ‘terceiro mundo’. Lemo-las no modo como assinala as aporias e contradições da aplicação de questões de género (gender)a sociedades ‘tradicionais’, salientando a forma como ocidentais e elites terceiro mundistas reproduzem programas no mínimo maternalistas em relação aos que surgem como ‘atrasadas/os’, ‘primitivas/os’, numa fúria de modernização que persiste em ignorar os elementos destruidores da dialéctica das Luzes. Lemo-lo no modo como interroga a marcha e a escrita da história e o modo como ela inscreve a nação, atento aos que dela ficam fora, os ‘tradicionais’, mas ciente da necessidade de se inventar um percurso colectivo que permita um futuro alternativo a um desastre iminente que descreve como “angolano por vocação e opção”.
Sobretudo, lemo-lo nessa perspectiva assumidamente parcial, fragmentária e incompleta, mas atenta a múltiplas visões e leituras do seu mundo que não se reduz a Angola ou a África, mas integra outras visões que vai reunindo através das suas viagens, entre o Namibe e Luanda, Coimbra ou Lisboa, a África, a Europa, a América. ‘Olhar esquinado’ (Fernandes Dias), ele caracteriza efectivamente a perspectiva pós-colonial, lendo um mundo segundo uma indecidibilidade que decorre menos de um cepticismo derrotista do que de uma experiência multissituada, que a viagem permite e possibilita, inspira. Daí decorre o desafio e o estímulo de um escritor que, goste-se ou não da palavra, pode ser efectivamente entendido como pós-colonial. Sem certezas, nem garantias, a não ser uma: a de que Angola, os seus pastores, o ‘terceiro mundo’ têm de caber num projecto capaz de reinventar a (pós)modernidade, além de qualquer utopia.
Termino com uma citação, evocando ao mesmo tempo o modo como todo o acto de escrita é sempre – queira-se ou não, goste-se ou não – resultado de diálogos mais ou menos presentes: “A ambiguidade é a aparição figurativa da dialéctica da modernidade; a lei da dialéctica suspensa”. Para Benjamin, essa suspensão é a Utopia; para aqueles que vivem […] de ‘um modo outro’ que não o da modernidade, mas não fora dela, o momento utópico não equivale necessariamente ao horizonte de esperança.” (Homi K. Bhabha, The Location of Culture, Londres e Nova Iorque: Routledge, 1994, 18).
Nota: as reflexões aqui alinhavadas devem quase tudo à obra de Dipesh Chakrabarty, Edward W. Said, Gayatri Chakravorty Spivak, Homi K. Bhabha, James Clifford, James Ferguson e Akhil Gupta, Stuart Hall e, claro, Ruy Duarte de Carvalho, sobretudo aos textos Vou lá visitar pastores, Actas da Maianga e Desmedida.