Ruy Duarte de Carvalho: o cacto e sua água ímplicita
Desde que a morte de Ruy Duarte de Carvalho se fez notícia, pela minha cabeça vêm passando, ao lado de experiências partilhadas, palavras que, mesmo desligadas de um contexto específico, associam-se num quadro que não demoro a identificar como o léxico do Ruy. Lavra, deserto, transumância, deriva, terra, labor, pastores, papéis, exatidão, mineral, Namibe, desmedida… Entre tantas experiências e a singular sabedoria para falar do significado de cada uma, ele construiu-se e construiu uma linguagem que, mais que uma forma de expressão, foi um modo de estar no mundo.
Olhando para esses 23 anos, desde que nos conhecemos, num dezembro previsivelmente quente de Luanda, uma vez mais dou-me conta do seu impressionante itinerário. Àquela altura, tinha acabado o doutorado em Paris, já tinha feito a maior parte de seu cinema, tinha publicado 4 livros de poemas e um volume de contos, e gostava muito de falar de seu trabalho de regente agrícola e de diretor técnico da fábrica de cerveja em Moçambique. Nesse roteiro de inquietude, inscrevia-se uma marca cosmopolita, mas aquela marca profunda, dos que, ao viajar pelos lugares, penetram mundos. E deles percebem verticalmente a sua lógica.
Como leitora, fascina-me em seu trabalho precisamente essa lógica vertical na diversidade das linguagens que cultivou. Na antropologia, na literatura, no cinema, nos ensaios de natureza vária, duas medidas se distinguem: o trânsito e a constância. Contradições? Em Ruy elas combinam-se e sugerem o tom e o sentido de um trabalho múltiplo e uma indiscutível coerência.
Como antropólogo, andou por terrenos áridos, tirando das pedras a lição da resistência a ensinar que “quem mói no áspero não fantaseia” - como ele leu e gostou tanto nas veredas do Guimarães Rosa. Foram muitas as visitas aos pastores do sul de Angola, mas sem afastar o olhar de Luanda, observada de sua varanda na Maianga, à qual acorríamos os que queríamos conhecer Angola. No cinema, arremeteu contra os rótulos e as armadilhas que ali enxergava e propôs ultrapassar o filme etnográfico. Na literatura, conjugando o insólito com a contenção, cria uma poesia quase mineral, cuja densidade se projeta na contração do ritmo e da palavra. E, baralhando as fronteiras dos gêneros literários, desorienta a nossa tentação de catalogar o que a sua imaginação capta da realidade e plasma no domínio do verbo.
Como brasileira, persigo na sua viagem pelos nossos sertões, e não só, o encantamento e a capacidade de, no chão tão batido por outros viajantes, descobrir o inédito, elaborá-lo, convertê-lo em prosa, contrapondo as imagens do país apreendidas na errância às que colheu nas leituras desde a adolescência em Moçâmedes. Na escrita dessa experiência, compreendi o sentido de desmedida. Não a do país de dimensões continentais, mas a da energia do olhar que nos revela outras faces de nós mesmos.
Como amiga, devo suportar a perda, pensando no que ganhei nesses anos de convivência bissexta, nas longas conversas em Luanda, Rio de Janeiro, Barra dos Passos, São Paulo ou Maputo, nos curtos telefonemas da Namíbia, nos desenhos oferecidos que hoje completam com algumas fotos o painel material da minha memória. Desde a semana passada, o léxico do Ruy alterna-se com um belo poema de Manuel Bandeira. Nas imagens de “O cacto”, encontro ressonâncias de seu modo de ser. Quase nunca fácil, muitas vezes áspero, mas sempre irredutivelmente sincero na ternura que, ao conquistar em si, partilhava com o outro, ele oferecia-nos, com sua noção de inteireza, referências para lidarmos com o vazio dos rituais das mundanidades, outra palavra de seu dicionário particular. Agora compreendo melhor o Luís Quintais que, do Ruy, disse: “Ele encolhe os ombros e segue em frente, seguirá sempre.”