Breve reflexão sobre a exposição “the portuguese prison photo project” no Museu do Aljube - resistência e liberdade
Desde o passado dia 11 de maio, e até ao dia 29 de setembro de 2019, o Museu do Aljube - Resistência e Liberdade exibe a exposição The Portuguese Prison Photo Project. Trata-se de um conjunto de fotografias sobre prisões portuguesas captadas por dois fotógrafos, um português, Luís Barbosa, especialista em documentação fotográfica de cariz social e cultural (Prémio Sociedade Portuguesa de Autores, 2017 na sequência do trabalho desenvolvido para a exposição), e um suíço, Peter M. Schulthess, que trabalha fotografia de arquitetura, preferencialmente espaços prisionais.
Nesta exposição, os fotógrafos apresentam os seus olhares, naturalmente distintos, sobre sete prisões portuguesas contemporâneas, complementadas por fotografias históricas, provenientes de arquivos nacionais. Este projeto, que começou por ser de caráter puramente fotográfico, proposto e coordenado por Daniel Fink (1), na Suíça, foi continuado no Porto, no Centro Português de Fotografia – antiga Cadeia da Relação –, sob a coordenação de Cândido da Agra, que lhe acrescentou duas outras dimensões: um colóquio internacional de reflexão crítica sobre prisões (2) e um estudo filosófico e empírico sobre a prisão espetáculo. Este estudo, designado A intencionalidade da imagem e a estética do trágico: análises filosófica e empírica sobre a prisão espetáculo, concebido e dirigido por Cândido da Agra (3), partiu dessa exposição de fotografias, “[…] mas para projetá-la no horizonte de uma crítica da razão punitiva articulada com uma crítica da estética do trágico” (4).
ISketchbook, views from the Aljube, Lisbon, desenhos a lápis tinta aguarela, 2019, Sharon Lubkemann AllenI
Partilharei aqui uma breve reflexão sobre a exibição dessa exposição no Museu do Aljube - Resistência e Liberdade. Antes de mais, cabe esclarecer que, segundo Luís Farinha, o diretor desse Museu, a exibição desta exposição neste espaço é inequívoca. Trata-se de um serviço que se presta à comunidade. Embora seja, acima de tudo, um museu “dedicado à memória do combate à ditadura e à resistência em prol da liberdade e da democracia”, tem sido palco de exposições temporárias e de outras atividades que não se circunscrevem ao que esse espaço representa hoje na sociedade portuguesa e que pretendem ter um alcance mais amplo na educação para a cidadania.
Nesse sentido, embora o objetivo desta exposição no Museu não coloque quaisquer dúvidas, ela pode gerar algumas interrogações derivadas da coexistência de duas narrativas que se sobrepõem nesse espaço. Isto é, esta exposição sobre prisões portuguesas contemporâneas, acontece num espaço que foi um estabelecimento penitenciário que assumiu características muito particulares na época do Estado Novo, e cuja memória ainda está muito presente, sobretudo entre aqueles que lá estiveram detidos. Trata-se de um museu que, na atualidade, acaba por estar associado ao lado mais escuro das prisões daquela época. Nas palavras do seu diretor, o local onde decorre esta exposição diz respeito a um “contexto muito forte, demasiado forte” (5). O Aljube, que alberga este museu desde o 25 de abril de 2015, funcionou como prisão da Polícia Internacional e Defesa do Estado (PIDE), entre 1928 e 1965 (6). A história desse espaço é bem mais longa e complexa. Importa, contudo, esclarecer que antes de ser uma prisão de presos políticos, foi um estabelecimento penitenciário para detidos de delitos comuns e de delitos sociais, bem como de estrangeiros indocumentados – os quais chegaram a coabitar com os presos por delito de opinião na época do Estado Novo. Foi sobretudo desde 1934 que a PIDE se apropriou de certas cadeias portuguesas para deter presos políticos, entre as quais o Aljube. Não se sabe quantas pessoas terão passado pelo Aljube, até porque o seu livro de entradas ainda não apareceu. Situação que não é exclusiva do Aljube já que, em termos gerais, em Portugal, ainda hoje não se sabe quantos terão sido os presos políticos. Apenas se tem conhecimento que foram julgadas à volta de 30 000 pessoas, número que corresponde, apenas, a uma parte dos detidos, uma vez que nem todos foram julgados. Além disso, há processos individuais que desapareceram e os que existem estão espalhados por diversas fontes e muitos terão ficado nas ex-colónias (7).
O Aljube nunca foi uma prisão de alta segurança. Nessa prisão coexistiam espaços com funções e estatutos diferenciados: um espaço destinado ao isolamento, cujo objetivo principal era fragilizar os indivíduos antes de passarem ao interrogatório; um grande salão, onde coabitavam detidos considerados menos perigosos e/ou à espera de serem interrogados ou transferidos; um outro espaço com melhores condições materiais, reservado a personalidades de estatuto social mais elevado e que tinham alguns privilégios comparativamente aos outros e a enfermaria, onde consta que seria o local onde se torturavam os detidos antes de serem transferidos para a sede da PIDE, na rua António Maria Cardoso, em Lisboa. O Aljube funcionava sobretudo como plataforma de trânsito, uma espécie de depósito de detidos que vinham de esquadras espalhadas pelo país e que depois, caso se considerasse necessário, eram trasladados para a sede da PIDE para serem interrogados ou/e eram transferidos para outras prisões. Assim, este Museu acaba por representar um dos processos mais marcantes da ditadura portuguesa: a detenção por delitos de opinião, a tortura e a morte de tantos defensores da liberdade. Deste modo é que constitui um espaço cuja carga simbólica é muito forte para receber esta exposição sobre prisões contemporâneas, e por isso mesmo importa que as duas narrativas não sejam confundidas.
A exposição The Portuguese Prison Photo Project convida os seus espectadores a conhecer o trabalho de dois fotógrafos sobre estabelecimentos prisionais de delitos comuns do Portugal Democrático do século XXI, acompanhadas por outras fotografias de prisões selecionadas de diversos arquivos nacionais. O Museu do Aljube é “um sítio musealizado e um museu histórico que pretende preencher uma lacuna no tecido museológico português, projetando a valorização da memória de luta contra a ditadura na construção de uma cidadania esclarecida e responsável e assumindo a luta contra o silenciamento desculpabilizante, e muitas vezes cúmplice, do regime ditatorial que dirigiu o país entre 1926 e 1974”.
Tanto a história do Aljube como a exposição que ele acolhe atualmente são duas narrativas inquestionavelmente distintas, relativas a diferentes tipos de penas e de práticas de detenção, respeitantes a contextos históricos e políticos inconfundíveis entre si. Mas ao coabitarem no mesmo espaço-tempo, embora temporariamente, estas narrativas podem ter, em conjunto, a força e a capacidade de interpelar-nos sobre a tão complexa e multifacetada problemática da punitividade nas sociedades contemporâneas, num contexto particularmente sensível a questões como ameaças externas/internas, segurança/insegurança, terrorismos, entre outras, responsáveis, em parte, pelo ressurgimento de discursos legitimadores de práticas que parecia terem sido ultrapassadas pelos regimes democráticos.
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(1) Apoiado pela Association Recherche Prison Suisse (ARPS).
(2) Deu origem a duas conferências internacionais: Prisons in Portugal and Europe: History, culture and photography” (Centro Português de Fotografia, outubro de 2017); Prisons in Portugal and Europe: Regimes of Detention and Monitoring of Regimes International conference (Museu do Aljube e Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Maio de 2019).
(3) Apoiado pela ARPS, pela Associação Internacional de Criminologia de Língua Portuguesa e pelaFundação Minerva - Cultura - Ensino e Investigação Científica.
(4) Para conhecer a abordagem teórica, as dimensões e as hipóteses deste estudo consulte-se Cândido da Agra “Exposição e Pensamento Crítico”, Prisões em Portugal e na Europa - história, cultura e fotografia: abordagens comparativas – Atas da Conferência Internacional, Porto, Centro Português de Fotografia, 2017, pp 12 – 15.
(5) Testemunho recolhido no dia 3 de junho de 2019, no Museu do Aljube.
(6) Em 1965 o Aljube deixa de ser uma prisão para passar a local de trabalho de serviços do Ministério da Justiça até ao 25 de Abril de 1974.
(7) Informações reunidas no dia 3 de junho de 2019, no Museu do Aljube. Sobre esta matéria consulte-se, por exemplo, Fernando Rosas, Luís Farinha, Irene Flunser Pimentel, João Madeira e Maria Inácia Rezola, Tribunais Militares Especiais e Tribunais Plenários durante a Ditadura e o Estado Novo, Lisboa: Temas e Debates, 2009.
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Projecto MEMOIRS - Filhos de Império e Pós-Memórias Europeias (ERC Consolidator Grant, nº 648624) no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.