Futuro a três metáforas: um passo atrás do outro

“Se nada há de extraordinário no facto de nos darmos conta, de maneira algo sumária, do andar de um homem, ainda nada sabemos sobre como se equilibra ele na fracção de segundo de um passo.” Walter Benjamin, in A obra de arte na era da sua reprodução mecanizada mecânica.1

1ª caminhada : a queda

Mantinha-me agarrada ao lugar, pés bem enraizados, quase colados. Era preciso dar o impulso para a frente, mas não sabia como. Como se o meu corpo tivesse esquecido uma das suas possibilidades. Nem chegava a conseguir entender se a vontade que sentia era racional ou se me vinha das entranhas, ou das vozes que escutava a impelirem-me à queda, já que o corpo resistia e, quando o corpo resiste, temos de o escutar, de aceitar essa resistência, essa insistência na auto-preservação. Ou não… Por vezes o corpo – todos os corpos – simplesmente resiste porque conhece o lugar onde está. Está habituado, não sabe dar o impulso de que necessita para não estagnar, à beira de ficar sem chão debaixo dos pés. Não sabe que esse não saber faz parte do gesto que está prestes a realizar, que é o de dar um passo em direção ao aberto.

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Demorei muito tempo a dar o passo que resultou na queda. A coluna e a bacia ondularam para a frente num impulso, os braços empurraram o ar para trás e, finalmente, abandonei-me. Entrei então. Rasgando e abrindo espaço com o corpo e descendo a uma velocidade que era tanto o resultado do meu peso quanto da gravidade que me puxava para o centro da terra. Atravessei o ar, e voltei a entrar, desta vez numa outra matéria. Lá dentro, escuridão e vórtice revolteando cada milímetro da minha pele. Ali, era impossível abrir os olhos ou respirar, no entanto, guardo na memória as milhares de esferas negras translúcidas e extremamente luminosas, brilhantes, que me acompanhavam e percorriam o espaço na direção oposta à que eu seguia, como se me indicassem já outra possível. Mas eu ainda descia, enquanto elas subiam à frente dos meus olhos, roçando os ouvidos, afagando o pescoço, saindo velozmente pelos cabelos, em turbilhão rente à pele e à roupa vestida. Os ouvidos aceitaram de imediato a aparente ambivalência de um súbito e denso silêncio, com a voragem rodopiante do som grave que provoca um corpo em rápida descida vertical. A certa altura, cingida pelo meio à minha volta que exercia uma certa pressão no corpo, como uma resistência suave à minha entrada, comecei a sentir-me acolhida. A queda transformou-se em hospitalidade naquele meio onde, de facto, não me seria possível continuar a viver. Uma hospitalidade impossível. Foi nesse momento que se iniciou o eco daquele primeiro impulso e, depois, a subida. A resistência que se opunha ao meu corpo venceu e expulsou-me dali. Os meus pulmões sorveram todo o ar que puderam ao voltar à superfície. Seguiu-se um grito, os olhos que se abrem por completo, e o sentir do bulício da vegetação e da corrente à minha volta. Fomos tantos a cair neste único corpo! Voltámos à superfície e pudemos continuar a caminhar, deixando só o rasto de dois pés na lama das terras que ladeiam o rio, logo a seguir varrido.

Caminho na cidade, que não deixa rasto, caminho nos rios, caminho nas aldeias e no campo. O pé pousa e sente a massagem que a terra lhe vai fazendo do calcanhar à ponta dos dedos, e vice-versa. A respiração alinha-se com os passos, o espaço à volta abre-se ou fecha-se consoante o equilíbrio ou o excesso de estímulos. Caminho por sítios fáceis e por outros que me fazem lembrar que o Andar a Pé, escrito por Henry David Thoreau há mais de 150 anos, foi escrito por um homem que nunca teve de pensar na precaução na qual as mulheres têm sido instruídas. Ao adentrar-se pela floresta (seja esta a floresta das árvores ou a das cidades) ou pelo mundo adentro, não precisou de considerar, pelo menos no livro, se iria encontrar um outro homem que lhe impediria o caminho ou talvez mesmo a vida. Tudo era ali, e só, liberdade sem resistência. Um conto. Caminho horas por descidas íngremes que me magoam os pés e desfazem as unhas. Maldigo quem me provocou para o caminho, mas não me avisou que seria assim, para depois logo a seguir os bem dizer. O corpo abre durante as caminhadas, principalmente nas mais arriscadas onde nenhum pensamento se pode atravessar entre mim e o terreno. Nada mais para além do pousar o pé ali, por inteiro, atenta às condições de cada passo. Escritores, filósofos, tantos já escreveram sobre esta tarefa simples de colocar um pé a seguir a outro, por caminhos novos ou pertencentes a uma rotina que vai desvelando o lugar de cada vez que é cumprida. Por exemplo: desço à noite com muita regularidade um caminho sem luz, no campo, entre uma casa familiar e a minha casa. Lanço reptos aos javalis noturnos para que se afastem e vejo em que estado estão as estrelas e as constantes colinas. Sempre diferentes, embora nenhuma fita métrica ou balança conseguisse provar os matizes dessas diferenças. Há sempre uma calma viva, que nunca chega a ser silêncio. Ninguém se atravessa nesta minha rotina. 

2º caminhada: diálogo de passagem

Uma vez a sul, fui a pé até à praia. Do sítio de onde durmo, até lá chegar ainda leva cerca de uma hora.  No regresso, ao sair da aldeia, vi um homem bastante idoso, magro, pele muito tisnada pelo sol. Devia ter uns 80 e tal anos ou mesmo noventas, quase no meio da estrada, mas não perdido. Era como se o espaço lhe pertencesse e fazia sinal com a mão a um carro. Não percebi logo se era um gesto de cumprimento a quem guiava ou se pedia uma boleia – pareceu-me mais ser este último. Olhei para ele e senti-o a vir na minha direção. Começou a conversar, perguntando-me se ia em direção à Luz, dizendo-me que o caminho ainda seria muito longo, ainda por cima com aquele calor! Ele caminhava na mesma direção. Quase lhe respondi rapidamente, naquela velocidade com a qual nos despachamos das pessoas com as quais nos cruzamos sem saber quem são para seguirmos o caminho que trazíamos na cabeça o mais rápido possível, em vez daquele que se nos apresenta. No entanto, logo senti que nem eu tinha pressa, nem precisava de fugir e que ele, sem me dizer verbalmente, estava um pouco aflito com o calor e com a caminhada que ainda tinha de fazer. O passo dele acelerou para me acompanhar e o meu travou-se para o seguir. Entre a saída da aldeia e a chegada à casa da filha, um caminho que fazia com muita regularidade, disse-me que conhecia ali todos os recantos daquela terra. Perguntou-me se conhecia a Cama da Vaca – um lugar de rochas ali ao lado, do qual as pessoas daqui gostam de falar. Fica a uns 15 minutos a pé do centro da aldeia, mas sei que para alguns pescadores mais antigos era como se fosse já muito longe e contam até histórias de tempestades que os levavam para lá. Disse-lhe que sim, mas fingi não saber que não havia ali praia para que ele me explicasse mais, e ele disse-me “nã, senhora!” e falou-me da pesca que se faz nesse lugar, dos vários peixes que dali saem, feita por gente nova, à cana, porque para os mais velhos como ele já é difícil andar em cima das rochas. Tinha sido pescador. Falou-me do barco que teve, de como o mar era rico de variedade e quantidade de peixes, aprendi o que é um “Alcatruz” e como é que com eles se pescavam polvos, da mulher que teve e que o teve, e do trabalho que ela fazia nos restaurantes  – aí parou, olhou para mim e disse que ela era assim como eu, mas com óculos – e que lhe faleceu, e que, se não lhe tivesse nascido uma filha, “seria um desgraçado”. “Não seria nada, arranjaria amigos!”, disse-lhe eu. Surpreso: “Amigos?! Onde é que eles estão?” Já quase ninguém da aldeia mora na aldeia, só pessoas que vão e vêm do estrangeiro e que não ficam, e os amigos que tinha já se foram quase todos embora, morreram. Ele, ainda, afirmativo e entusiasta: “Eles morrem, mas neste mundo nasce muita gente! Muita gente! Eu vejo isso na televisão, todos os dias nasce muita gente!” Eu, a apontar para as plantas secas que estavam no chão: “olhe, somos como as plantas: morrem e nascem, morrem e nascem… têm de ir umas para vir outras…” Ele: “ora, minha senhora,… não é que é assim? agora é que disse uma coisa certa, somos como as plantas!”. E olhou as plantas enquanto caminhava. Depois passámos frente a uma escola internacional, que eu conheço, mas mais uma vez deixei-o explicar: as longas filas de carros que ali se formam, as crianças vindas de todas as aldeias e até mesmo da cidade, e ele nunca ter aprendido uma palavra de inglês. Perguntei-lhe se, mesmo nunca tendo aprendido nada dessas línguas, por vezes falava com os estrangeiros e ele disse que sim, mas que não se percebiam. Então falei-lhe de um homem que conheci há muitos anos, o dono de um café de uma aldeia do outro lado da estrada nacional, mais do interior, que eu via, com 80 e tal anos, a andar de bicicleta para todo o lado e a conversar longamente com ingleses, alemães, franceses, etc, sem que ele falasse uma palavra das suas línguas. Fascinavam-me aquelas conversas demoradas no balcão ou à sombra da esplanada de canas nas quais um falava uma língua e outro outra. Seria o prazer da troca, penso eu. O velho pescador, identificando um amigo desaparecido: “Mas conheceu-o?! Mas há quanto tempo é que vem para aqui?!” Havia na voz dele uma espécie de emoção de reconhecimento, como se de repente se tivesse dado conta de que mais alguém se lembrava do que ele se lembrava. Como se o espaço tivesse ganho em densidade. O amigo morreu há muitos, muitos anos. Falei-lhe das muitas vindas em família desde criança. Chegámos à porta da casa da filha, demos um passou-bem e desejámos uma boa continuação de dia um ao outro.  No início da caminhada, eu tinha sentido que para além de se sentir um pouco frágil para andar com aquele calor, era também uma pessoa do tempo em que se conversava com quem se encontrava na rua. Ele: “olhe, se fosse daqui, convidava-a para tomar um café ali no café do centro da aldeia e conversarmos mais”. Ele era dali mas já quase ninguém mais era dali. Advertiu-me, mais uma vez, do muito calor que eu ainda iria apanhar até chegar à Luz.  Apesar disso, continuei.

3ª caminhada: à chegada rodar o olhar

Numa noite muito fria, abro o último livro de Carola Saavedra, O Manto da Noite2, que ela escreveu através dos sonhos, e deparo-me com este poema da chilena Gabriela Mistral: “Vienes, madre, viens, llegas,/ tambien así, no llamada. / Acepta el volver a ver / y oír la noche olvidada/ en la cual quedamos huérfanos/ y sin rumbo y sin mirada.” Vens, mãe, vens, chegas, também assim, não chamada. Aceita voltar a ver e ouvir a noite esquecida na qual ficamos órfãos e sem rumo e sem mirada. A memória transporta-me imediatamente para uma caminhada de há quase uma década. Chego muito cedo à aldeia de Gabriela Mistral. Embora seja verão, não é sítio de muitos turistas pelo que a carrinha táxi partilhada, que me trouxe da aldeia de uma só rua onde durmo, deixa-me sozinha no meio da praça central, nos Andes. O motorista pergunta se quero mesmo ficar ali, eu asseguro-o e ele parte. As portas das casas ainda fechadas, primeiro ouço muito silêncio e, logo a seguir, uns passos metálicos cujo som ocupa toda a praça dizem-me que não estou sozinha a caminhar. Era um pombo que atravessava o teto de zinco da igreja. Fico ali a andar e a ver a aldeia a acordar. 

Chego a uma rua que, de um lado da estrada, tem a escola primária que fazia também as vezes de casa da professora e mãe da poeta. Mistral, que viveu no Bairro Azul, em Lisboa, como poeta e diplomata, cresceu numa pequena escola, que era também a sua casa, vendo a mãe ensinar. Ainda ali estão as camas, os utensílios de cozinha, os livros, a secretária, tudo aquilo que foi o seu primeiro lugar de gestação. Passo ali um bom momento a olhar para todos aqueles objetos. Do outro lado da rua o pequeno Auditório Francisco Varela, cuja entrada é sombreada por uma esteira de canas, em homenagem ao célebre neurofenomenologista e filósofo que também nasceu ali e cujos parceiros de investigação e vida conheci numa outra etapa da vida. Já não estou sozinha, os passos dos pombos já não se ouvem de forma tão retumbante, mas sinto-me ainda longe de tudo. À volta da aldeia há montanhas que não nos deixam ter um horizonte largo, mas que enquadram e abrem na vertical para um céu imenso e de uma luminosidade que nunca tinha encontrado. Estou no início, a sul, do deserto de Atacama. Aprendi naquele dia que duas grandes referências da cultura chilena - e não só -, nasceram ali, à beira do deserto, naquele lugar simples, com tanto silêncio, longe do que estipulámos serem os centros – culturais, económicos, sociais – ou das suas movimentadas periferias. Mas aquele era um centro a partir do qual algo imana ou imanou. Nem sempre os centros são aqueles que gritam mais alto, as cidades e os países que chamam mais à atenção, ou porque nos procuram fazer viver com o medo do que aí vem ou porque se mostram como lugares aos quais aspiramos. É preciso redescobrir os centros que estão vivos e que podem estar escondidos nalgum recando de um qualquer deserto interior, ou nos arredores de qualquer lugar arredado da vista.

Para além desta experiência de um novo centro telúrico, estas cores e os passos dos pássaros foi talvez do que mais me ficou incorporado na memória desta caminhada. Os passos que pertencem talvez àquilo que o filósofo norte americano Alphonso Lingis chamou de “o murmúrio do mundo”, expressão pela qual dava a entender que “a linguagem não é simplesmente um código estabelecido por convenção entre os humanos, que nivela as nossas experiências de tal forma que estas podem ser tratadas como equivalentes ou intermutáveis, mas que a linguagem humana tem de ser vista como emergindo do murmúrio da natureza, dos animais e, finalmente, de todas as coisas que existem e que ressoam. Na sonoridade dos nossos códigos comunicamos não só com descodificadores humanos, mas com o canto e a queixa e a cacofonia da natureza.”3

Ouço de países onde palavras palavras como mulher, fémea, diversidade, descriminação são interditadas dos escritos oficiais4 e penso nos modos de abrir a porta para esta cacofonia da natureza, que deixa falar tudo o que existe. “O que aconteceu aqui?, ela pergunta, a cidade se transformou numa praça de guerra. Pois, é isto mesmo, isto é a guerra, diz ele, vinte anos lutando contra o fascismo que tudo engole, tudo destrói. Mas porque você não vai embora?, pergunto. Ele me olha indignado, não, nós nascemos na noite, nela vivemos, morreremos nela. Ficaremos até ao final.”5 Que movimento de futuro haverá aqui depois desse final, dessa orfandade sem rumo e sem mirada, sem olhar? Depois, ou durante, essa queda que torna impossível abrir os olhos? O Anjo da História, de Walter Benjamin, ao contrário do pássaro que fazia ecoar os seus passos no telhado de zinco da igreja, não anda, só voa, para um lugar “sem mirada”, já que voa de costas e o que vê é destruição passada, impossível de concertar.  Atrás dele, o futuro, noite órfã, sem rumo e sem mirada, à frente, ou seja, no passado, só destroços, coisas que morreram, restos, plantas mortas… Que movimento de futuro então é possível para além deste movimento cego? Poderá o anjo ensaiar o gesto de virar a cabeça para trás e encarar o futuro de olhos abertos? Um dia, o coreógrafo Steve Paxton6 foi entrevistado por jornalistas, antes de uma conferência que deu em Lisboa. Disse então, acerca do trabalho difícil e muito aturado dos artistas, dos poetas que abrem os caminhos das palavras, das imagens, dos sentidos (os primeiros a serem deixados em todos os sistemas ditatoriais) que é o de… [silêncio substituído por um gesto]. O gesto que ecoou no lugar das palavras foi o de rodar a cabeça para trás, ousar “voltar a ver e ouvir a noite esquecida na qual ficamos órfãos e sem rumo e sem mirada.” Ousar voltar a ver e a ouvir, emergir da queda, gritar e sussurrar, guardar vivas na carne todas as palavras que poderão deixar de ser ditas, e continuar, um passo atrás do outro.

por Liliana Coutinho
Vou lá visitar | 18 Março 2025 | caminhada, Carola Saavedra, futuro, queda, Steve Paxton