Para criar espaços de escuta

“Se queres saber quem sou, / Se queres que te ensine o que sei, / Deixa um pouco de ser o que tu és / E esquece o que sabes.” 

Estas palavras terminam “A tradição viva”, um pequeno capítulo da História de Africa, publicada em 2010 pela UNESCO, que trata dos modos tradicionais de transmissão dos conhecimentos e da História na Africa subsariana, tendo como tecnologias de transmissão, não a escrita, mas a oralidade e um uso exímio da memória. Com elas, o escritor malinês Amadou Hampâté Bâ cita Tierno Bokar, “o sábio de Bandiagara”, o qual avisa o investigador – talvez antropólogo? – que quer os saberes de uma população cujas vivências lhe são estranhas. O primeiro convite é que deixe de ser, e de seguida, que deixe de saber. Um convite à transformação. Bâ alerta assim para o perigo de, ao querermos entrar noutros espaços de saber e de experiência, podermos projectar somente o que já sabemos, ancorando-nos no nosso saber passado, sem criarmos em nós o espaço necessário a que outras memórias, vivências, frequências, outros modos de nos relacionarmos e de fazer mundo, nos possam invadir, contaminar, penetrar, transformar o que antes parecia certo, correto ou estável, alargando, ou esboroando, as fronteiras do nosso mundo. Esquecer, nestas palavras, é estar disponível para acolher outras memórias, outros saberes, outras experiências que não os que a nossa experiência e perspectiva permitiu entrar em contacto até ali. Acolher outras pessoas também. É permitir-se desmontar os princípios lógicos que pautam os nossos saberes, talvez para voltar a montar quando necessário, ou para remontar de outra forma, lembrando que nem só a lógica rege a compreensão. É esquecer o que se sabe para nos abrirmos ao espaço do não saber, indispensável para que se possa gerar o encontro que nos amplia, que não nos espartilha em pequenas comunidades ou identidades fechadas mas revela a porosidade e as linhas de força que, densificando-se, as constituem. Uma atitude que nos deixa entrar num território de experiência comum mas não homogénea, permitindo-nos estar em relação com o outro e entrar na experiência da empatia, sem a qual ao invés de uma sociedade, temos somente um amontoado de indivíduos e culturas a entrechocarem-se entre si, sem se reconhecerem mutuamente. Um convite a largar as certezas que transportamos como pedras – para as lançarmos a qualquer momento ou para que o seu peso não nos deixe sair de solo confortável - ou que inscrevemos em papel como se essa inscrição fosse o saber ele mesmo e não a “fotografia do saber” ou até mesmo, somente a “pele das imagens”. Suspender o que sabemos do nosso mundo para melhor escutar as múltiplas vozes que o tecem.

Esquecer a História para acolher as Histórias e as memórias

Nunca nos soubemos esquecer de nós mesmos e nações foram construídas por esta memória estruturada em História – construída, imposta os territórios de uma forma que, para se manter assim ensimesmada no encontro com os outros, teve que apagar outras memórias vividas, transmitidas pela palavra ou por vezes pelo silêncio, nas quais a dimensão da subjectividade não se opunha à partilha, à construção e à existência do comum. Criámos histórias que não souberam entrar em relação, que obrigavam a que na savana se soubesse tudo dos cursos de água que correm num Douro longínquo e nada do que era o caminho da serpente Thianaba. Histórias que projectaram para fora de si as nações europeias, como hoje a Europa inteira projecta as suas fronteiras para fora de si mesma. 

As culturas indígenas – práticas, saberes e modos de fazer mundo próprio aos locais onde foram geradas - foram sufocados pelos lados mais negros (mais brancos) da modernidade, construída sobre os escombros criados com a exponenciação das práticas de escravatura durante o tráfico transatlântico e com o colonialismo. O rico e multidimensional tecido de pluriversos foi rompido, em prol da construção de um universal que se confundiu com o uniforme e da construção de uma comunidade estruturalmente económica que para o ser teve de impor o comum a quem nada em comum tinha connosco, a não ser a humanidade e a dignidade, violentada a cada gesto de imposição. 

O direito e o dever de escuta

Há um acento que é colocado no direito à fala e geralmente pouco se enfatiza a importância, para que esse direito se exerça, do direito e do dever da escuta. O direito de expandirmos a extensão do que concebemos enquanto possibilidades de agir, de sermos em inter-relação, de reconhecermos o outro como nos reconhecemos a nós, de fazermos conscientemente o mundo que habitamos em conjunto e responsabilizarmo-nos pelas formas que este toma. O dever de não abdicarmos disso.

Ao começar a programar sobre discursos e em torno de obras que se movem no espaço de debate e reflexão acerca as memórias coloniais, a ideia de gerar um espaço de escuta esteve sempre presente. Tal intenção foi claramente anunciada na pequena publicação que acompanhava o ciclo Descolonização, que aconteceu em 2017 no Teatro Maria Matos, em Lisboa, um breve ciclo de debates realizado em torno da peça da Companhia Hotel Europa, Libertação, uma peça que lida com as memórias e vivências das chamadas, pelo lado “de lá” Guerras de Libertação, as mesmas que do lado de cá, o Portugal ainda colonial, chamou de Guerra Colonial. Outros espaços de escuta o acompanharam, outros apelos a manter vivas memórias de cosmogonias possíveis. Um outro exemplo foi o debate sobre as questões indígenas, que tendo apontado para o contexto específico do sul da Abya Yala – espaço conhecido entre nós como América Latina - são questões não “do índio”, esses “outros” demasiadas vezes tornados exótico, mas de todos aqueles que reconhecem a sua relação de pertença ao grande tecido de reciprocidades e trocas que chamamos de ecossistema Terra. Uma pertença a uma comunidade politica maior onde o ser humano deixa de ser o centro para se tornar cuidador. 

Memória do presente e do futuro

No texto de Hampâté Bâ quem tem de esquecer – de si mesmo, dos seus saberes e certezas – é o investigador europeu que, sem experimentar, quer entrar em terreno desconhecido. Medi-lo, conhecê-lo, apropriar-se: um controle que se confundiu com saber. É preciso que ele se esqueça para que essas memórias e modos de saber em extinção regressem, aceitando que jamais se tornará o “especialista” de tal saber pois não é da natureza destes saberes a especialização. É preciso que se saiba retirar, abdicar, para se manter a ele e aos outros num ecossistema de práticas e conhecimentos maiores, mas sem sair da relação que o vai permitir também transformar-se. 

O esquecimento que o sábio de Bandiagara exige é para melhor lembrar. Aceitar o desconforto de se esquecer primeiro, para saber escutar, para então lembrar mais, para que a História se mostre na sua complexidade, para aceder à construção de um espaço verdadeiramente compartilhado. Povoar o mundo de mais concepções de mundos possíveis e de histórias antes negadas (e com isso, de experiencias e de pessoas). Não é o esquecimento do desprezo, mas aquele que faz parte da transição para uma melhor reparação da memória – das suas narrativas, dos seus objectos. Esta reparação, mais do que do passado, diz respeito ao presente e ao futuro. 

Diz respeito ao presente porque, aumentar o arquivo disponível das memórias e das Histórias possíveis, legitimas e reconhecidas, não é empreendimento enciclopédico. Ou seja, não se trata somente de somar, adquirir mais perspectivas a ordenar, classificar ou situar. Trata-se antes de deixar que no tempo presente se abram novos espaços políticos, ou seja, do viver em conjunto. Espaços onde as memórias antes negadas (geralmente racializadas, ou provindas dos saberes ostracizados dos que se viram obrigados a viver no lado negro do espaço político da modernidade) são tidas como legitimas e, com isso, reconhecidas a exigência das pessoas que as carregam em terem voz e participarem na construção do mundo em que vivem. Uns reconhecimentos que não é dado pelo exterior, mas que está a ser erguido do interior – vejam-se os espaços de autodeterminação da fala e da escuta que estão a ser gerados contra a invisibilidade e o silêncio.

'Todas as manhãs, os alunos da escola Djarama, em Ndayane, Senegal, reúnem-se em circulo em torno desta árvore. Aí tomam o tomar o pequeno almoço e escutam-se uns aos outros, antes de continuar o dia.''Todas as manhãs, os alunos da escola Djarama, em Ndayane, Senegal, reúnem-se em circulo em torno desta árvore. Aí tomam o tomar o pequeno almoço e escutam-se uns aos outros, antes de continuar o dia.'

Sabemos que estes trabalhos sobre a História, sobre a memória, não dizem respeito somente ao passado mas também, à forma como vivemos o presente e nos projectamos enquanto sociedade no futuro. O tempo cíclico interfere na linearidade que usamos para o organizar e já até mesmo a ciência o verifica. Investigações recentes na área da neurobiologia indicam que a função da memória estará mais relacionada com as possibilidade que antevemos viver no futuro do que com a absoluta veracidade do passado, sendo a ficção, ou seja, a capacidade de constantemente construirmos narrativas pessoais ou colectivas através das quais damos sentido às nossas vivências, constituinte de toda e qualquer memória. O passado, como dizem também alguns povos indígenas, está à nossa frente. Quando perdemos a memória, patologicamente ou por processos de envelhecimento natural, começamos a perder a possibilidade de agir, de nos projectarmos no futuro. Resgatar a memória, inscrever novas memórias na História comum, criar histórias cruzadas ou em arquipélago, não é somente clamar por uma aceitação numa História oficial e alargada ou abrir espaços políticos no presente imediato. É conservar e exigir a possibilidade de existência e de acção futura. Faz parte de uma exigência de manter aberta a possibilidade de existir futuro pela qual o próprio planeta actualmente clama, e onde a biodiversidade e a diversidade cultural, a não uniformização, a não homogeneização, são indispensáveis. 

Porquê fazê-lo num teatro, num museu, ou numa outra qualquer instituição artística? As expressões artísticas e os seus lugares são também espaços onde se tornam estas vivências e memórias pertença de um espaço real porque compartilhado. Mas deixemos outra pista em jeito de resposta, desta vez com a citação de um gesto, de um outro sábio, e também sobre a necessidade de nos colocarmos em espaços de não saber. Em entrevista dada a uma cadeia televisiva na sua passagem recente por Lisboa, o coreógrafo norte-americano Steve Paxton, virava literalmente as costas ao seu interlocutor explicando, com este gesto, que a Cultura avança assim, de costas. Citava, sem o anunciar, o anjo da História de Walter Benjamin, que avança de costas para o futuro, olhando os escombros deixados à sua passagem. Virando-se novamente de frente, num gesto rápido e preciso, apontando o vazio, referiu que também precisamos da arte, ou seja, dos que decidem avançar virados para a frente, de olhos bem abertos, lançando luzes para o futuro que desconhecem. 

 

Este texto foi escrito a pedido do projeto de investigação MEMOIRS - Filhos de Império e Pós-Memórias Europeias, do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, e publicado, em versão curta, no Jornal MEMOIRS 2019, publicado a 27 de Setembro 2019, como encarte do Jornal Público. Versão digital disponível em: http://memoirs.ces.uc.pt/ficheiros/4_RESULTS_AND_IMPACT/JORNAL/MEMOIRS_ENCARTE_02_2019.pdf

por Liliana Coutinho
A ler | 10 Novembro 2019 | escuta, História, Memoirs