Mo(nu)mentos africanos, em exposição no Rio de Janeiro
Entre os acontecimentos artísticos do verão de 2011 no Rio de Janeiro, pode ser destacado um conjunto de eventos não previamente articulados entre si, deflagrador de um breve e esparso, porém significante, momento África.
Apesar de não ter sido propositadamente constituída, uma rede de sentidos afro-brasileiros e africanos pode ser percebida em algumas exposições inauguradas em fevereiro e março na cidade. No Museu de Folclore Edison Carneiro, Senhores da Terra exibe representações de divindades afro-brasileiras associadas à terra, feitas por artistas menos ou mais vinculados a terreiros. Carybé 100 Anos, no Museu da Chácara do Céu, apresenta obras de Hector Julio Paride Bernabó, o Carybé, em comemoração ao centenário de seu nascimento. Em sua nova configuração, a Galeria de Arte Brasileira do Século XIX, do Museu Nacional de Belas Artes (MNBA), passa a exibir Redenção de Cã, a polêmica pintura feita por Modesto Brocos Y Gomes em 1895. Em Pedra, Ferro e Fogo, na galeria Coleção de Arte, é exposta a variedade do trabalho de Jorge dos Anjos.
Conjunto cujas conexões podem ser facilmente delineadas, mas que ficam mais perceptíveis a partir da atração exercida por um pólo de força: a programação Terceira Metade. Realizado no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, com curadoria de Luiz Camillo Osório e Marta Mestre, este projeto é constituído por uma série de eventos – um seminário, uma mostra de filmes com debates e três exposições: Terceira Metade – Tatiana Blass, Manuel Caeiro, Yonamine, com obras dos artistas nomeados e curadoria dos organizadores do evento; O Cartaz Africano – um Grito, com cartazes de Angola, Moçambique e Namíbia pertencentes à coleção de Regina Zappa e orientação curatorial de Túlio Mariante; Celebrações/Negociações – Fotógrafos africanos na coleção Gilberto Chateaubriand, com obras de Seydou Keïta, Jean Depara, J. D. ‘Okhai Ojeikere, Malick Sidibé e Ambroise Ngaimoko, integrantes da citada coleção, em curadoria de Cezar Bartholomeu e Marta Mestre.
Entre outros méritos, um aspecto a ressaltar nas exposições de fotografias e de cartazes realizadas no MAM-RJ é o fato de trazerem à luz coleções brasileiras compostas por peças provenientes da África. Iniciativas que contrastam com a reclusão imposta a acervos oriundos do continente africano existentes em alguns museus da cidade, como o Museu Nacional da UFRJ e o já citado MNBA. Não chega a causar surpresa esse silêncio institucional em relação à África, que pode ser visto tanto como um indício quanto como um fator mantenedor (e até potencializador) do processo de marginalização de africanos, afrodescendentes e quase tudo que lhes diga respeito no Brasil. Fosse outra a política de exibição dessas coleções, muito se dilataria o momento África no Rio de Janeiro.
Outro ponto a destacar na exposição de fotografias é o seu título – Celebrações / Negociações. Como explica Cezar Bartholomeu na apresentação da mostra, “as imagens descrevem celebrações, mas também negociações – de uma estética, de uma identidade, de uma cultura, de um futuro mesmo”. Designação pertinente não apenas porque são exibidos retratos e cenas de pessoas evidentemente orgulhosas de si e em franco diálogo com o restante do mundo. Apesar de ser um elemento chave do processo de modernização, capaz de, ao mesmo tempo, efetuar, interpor e exprimir intercâmbios e transações que transformaram o continente africano e o planeta nos últimos três séculos, a fotografia também foi incorporada a práticas tradicionais de sociedades na África, como em outros lugares, as atualizando ao mesmo tempo em que se enredava nas convenções culturais.
Feitas por diferentes autores, situados em regiões distintas (Angola, Mali e Nigéria), essas imagens estão, portanto, imbuídas de particularidades geradas por pessoas, locais, circunstâncias. Não faltam, contudo, elementos para aproximá-las, permitindo, assim, que sejam reunidas sob a perigosa alcunha da “fotografia africana”, resvalando na unificação de obras particulares e na submissão desse singular conjunto à totalidade continental, como é tão freqüente na historiografia da arte. Além das constantes determinadas pelas condições de produção e de uso da fotografia no contexto político posterior à emancipação política de regiões africanas, na segunda metade do século XX, como indica Cezar Bartholomeu em seu texto, outro aspecto em comum a destacar nas imagens em exposição é como conjugam construção simbólica e descrição etnográfica. Automóvel Wolkswagen e penteados tradicionais, máquina de costura Singer e máscara improvisada, bomba de abastecimento de gasolina e tecidos industrialmente estampados – estes e outros elementos constitutivos dessas imagens são, ao mesmo tempo, indícios e símbolos: sinais diretos e mediados de pessoas, sociedades, culturas.
Correndo grande risco, pode-se considerar que o campo imantado pelos pólos desse par é capaz de abranger boa parte da fotografia da/na África. É possível perceber o trânsito entre documentar e simbolizar tanto nas imagens exóticas produzidas a partir daquele continente por exploradores, desde o século XIX, quanto nas representações do próximo elaboradas por africanos com (embora não apenas com) aparatos técnicos e códigos visuais concebidos pelo outro, como nas fotos em exposição no MAM-RJ. Mas o jogo entre o registro e a representação com símbolos também pode ser visto em outras realizações. Alguns exemplos, entre muitos: a fotografia documental dos movimentos de resistência e de emancipação política; o poético fotodocumentalismo ampliado de Ricardo Rangel; as representações de si de Samuel Fosso, performaticamente reflexivas da historicidade da tipificação no continente; os retratos de homens com hienas e símios feitos por Pieter Hugo; os apontamentos etnográficos aparentemente imediatos e contrários a qualquer formalização simbólica que abundaram na mais recente edição da Bienal de Bamako, no Mali.
Embora não seja pertinente resumir a fotografia africana a esse par, não é impróprio perscrutar se também são inscritos costumes e configurados emblemas culturais mesmo quando os fotógrafos adotam como referências gêneros outros, como a narrativa histórica ou a construção da paisagem. O que faz pensar Fotografia e África para além daqueles pólos.
Em muitos manuais de fotografia da África, espanta não ver exemplos de experimentações formais, como em outros panoramas ou recolhas da fotografia no século XX. Não são propriamente obrigatórias, muito menos desejadas. As questões são outras. Nunca existiram no continente africano? Será isso mais uma evidência do equívoco da leitura puramente formalista dominante em grande parte da recepção da escultura da África desde o início do século XX? Também não há reflexões (pós)conceituais na fotografia produzida na África? Ou será o fato de não se as procurar, selecionar, exibir e publicar mais um indício de consideração dos africanos como intelectualmente incapazes, inferiores? O pouco relevo dado à ficção fotográfica é um preconceito contra a fotografia – circunscrevendo-a ao real –, à África – como se lá não houvesse imaginário e criação – ou a ambas?
Voltando à mostra no MAM-RJ, é possível pensar suas imagens, assim como a fotografia africana, a partir de outros pólos: ciência e arte. Em seu texto, Cezar Bartholomeu indica “a necessidade de posicionar-se emotiva e criticamente, pondo em questão o mito da unidade do continente africano a partir da ambiguidade que caracteriza a fotografia: arte e ciência”. Sensibilidade e crítica a destacar subjetividades para além das imposições do real e das convenções culturais. As imagens da exposição, assim como quase toda fotografia, da África ou alhures, são guardiãs de instantes menos ou mais fugazes do fluxo da vida, especiais repositórios capazes de vencer o tempo e de deflagrar sentidos quando e onde menos se espera, como no momento África inicialmente aludido. Assim, também podem ser vistas como monumentos, mas desde que se entenda estes mo(nu)mentos como artifícios a vincular significados, lugares, contextos, sujeitos, desígnios, desejos.