Lucio Costa era racista? Notas sobre raça, colonialismo, e a arquitetura moderna brasileira
Interrogação necessária
No título, Paulo Tavares dá o tom de seu ensaio ao perguntar: “Lucio Costa era racista?” Em seguida, revê alguns de seus textos cruciais, demonstrando como a questão racial e o colonialismo embasam seu pensamento. Se em 1928, na entrevista que concedeu ao jornal O Paiz, Costa diz que “Tudo é função da raça. A raça sendo boa o governo é bom, será boa a arquitetura. Falem, discutam, gesticulem, o nosso problema básico é a imigração selecionada, o resto é secundário, virá por si”,[1] em 1957, no Relatório do Plano Piloto de Brasília, ele afirma: “Trata-se de um ato deliberado de posse, de um gesto de sentido ainda desbravador, nos moldes da tradição colonial”.[2]
Os descompassos entre ideias, ações e obras arquitetônicas fazem pensar como a racialidade e o colonialismo se manifestam na arquitetura e no urbanismo de Costa. O foco de Tavares é, contudo, ao mesmo tempo mais circunscrito e mais abrangente. Como fica claro a partir do subtítulo de seu ensaio — “Notas sobre raça, colonialismo e a arquitetura moderna brasileira” —, embora se concentre em textos teóricos e memorialísticos de Costa, seu questionamento alcança a modernidade artística brasileira e até sua crítica.
Ao enfrentar os escritos de Lucio Costa, Paulo Tavares revê a racialidade e o colonialismo em outros agentes e realizações do modernismo brasileiro. Detém-se inicialmente no movimento em prol da “arquitetura tradicional brasileira”, seus mentores, adeptos e simpatizantes. Passa pela Semana de Arte Moderna, realizada em São Paulo em 1922, cuja modernidade incluía projetos neocoloniais de Antonio Garcia Moya e Georg Przyrembel. Aborda a obra de Mário de Andrade, outra figura monumental da cultura brasileira e que, assim como Costa, reviu seu envolvimento com as ideias do movimento neocolonial e aderiu às hostes modernistas. En passant, Tavares cita ainda Lina Bo Bardi e sua revista Habitat.
Ao mostrar como as ideias de Ricardo Severo e de José Marianno Filho ressoaram nas reflexões de Costa, Tavares ressalta a historicidade de seu pensamento, bem como as escolhas que ele fez no ambiente artístico e intelectual brasileiro no início do século xx, as quais foram fundamentais não apenas para sua obra teórica, mas também para sua bem sucedida trajetória profissional.
O engajamento no movimento neocolonial era coerente com os valores por ele cultivados em sua formação. Em Depoimento de um arquiteto carioca, de 1951, Costa revê suas escolhas prévias, qualifica o neocolonial como “artificioso revivescimento formal de nosso passado” e diz que esse “pseudo-estilo” foi “fruto da interpretação errônea das sábias lições de Araújo Viana”. Mais de duas décadas após ter participado ativamente das atividades promovidas por Marianno Filho, Costa desmerecia as realizações do movimento neocolonial, mas preservava sua estima pelos ensinamentos de Ernesto da Cunha Araújo Viana, professor de história e teoria da arquitetura na Escola Nacional de Belas Artes, e cujas ideias foram importantes para o pensamento e a obra de Costa. Em 1915, no curso que ministrou no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro sobre artes plásticas no Brasil, em geral, e no Rio de Janeiro, em particular, Araújo Viana defendeu enfaticamente a herança artística colonial: “Foi a civilização da metrópole a vencedora, continuada e cultivada até hoje, embora não tenham faltado atentados até contra as tradições de nossa vernaculidade portuguesa…”[3]
Ao longo do tempo, o elogio ao colonizador foi sendo matizado no pensamento de Costa. O eco das ideias de Gilberto Freyre em sua obra teórica, a partir da década de 1930, particularmente um entendimento menos negativo da miscigenação étnica constitutiva da sociedade brasileira, é outro indício de como suas ideias se transformaram à medida em que o arquiteto se reposicionava no meio cultural brasileiro. Em A arquitetura dos jesuítas no Brasil, de 1941, Costa avalia positivamente as “obras de sabor popular”, que qualifica como “arte ‘brasileira’” e diferencia das “obras luso-brasileiras”, que a seu ver deveriam ser nomeadas como “portuguesas do Brasil”, sem especificar, contudo, as contribuições de indígenas e africanos na criação de “relações plásticas novas e imprevistas, cheias de espontaneidade e de espírito de invenção”.[4]
O alcance maior do questionamento de Tavares é perceptível também quando ele aborda a recepção crítica do pensamento modernista. Ao ressaltar passagens racializadas e colonialistas em escritos de Costa, Tavares chama nossa atenção para o que lemos e não percebemos, ou fingimos não existir, em textos dele e de outros autores modernistas — o que traz à luz o silêncio na crítica posterior a eles. O desparecimento dessas questões no discurso teórico, crítico e historiográfico a partir de um certo momento não significa que a raça e o colonialismo deixaram de ser estruturantes do campo arquitetônico e de sua crítica, assim como na sociedade. Ao contrário, esse silêncio é um problema em si e, talvez, um maior do que o racismo antes explícito, evidente. Cúmplice, complacente ou alienado, esse silêncio crítico tem sido duplamente problemático, pois com ele, nós, os críticos, nos abstemos de pensar a racialidade e o colonialismo entranhados no pensamento daqueles autores, mas também nos eximimos de refletir sobre essas questões em nossas próprias ações e obras.
Ao desvelar o que é facilmente legível, mas permanecia paradoxalmente imperceptível ao ser coberto por um opaco véu de silêncio, Tavares nos interroga por que a racialidade e o colonialismo na obra de Costa nunca foram enfrentados criticamente. E nos faz ver que esse silêncio é um indício da persistência do racismo na produção arquitetônica e em sua crítica no Brasil, ajudando a sustentar o mito da democracia racial no país. Parafraseando Costa em “Documentação necessária”, podemos dizer que “A nossa antiga (e recente crítica de) arquitetura ainda não foi (e necessita ser) convenientemente estudada”.[5]
Livros como White Papers, Black Markers,[6] Eugenics in the Garden[7] e Race and Modern Architecture[8] permitem perceber que o silêncio crítico não é uma invenção ou uma exclusividade da crítica de arquitetura brasileira. No Brasil, entretanto, a recusa em pensar raça e colonialismo tem implicações singulares, pois se soma ao atraso dos brasileiros em respeitar a proibição internacional do tráfico de pessoas escravizadas nos Oitocentos, em extinguir a escravidão, em reconhecer a existência do racismo na sociedade brasileira, em discuti-lo, em debater e implementar políticas públicas que revertam os persistentes nefastos efeitos da escravidão, do racismo e do colonialismo.
Com certeza, há precedentes no enfrentamento dessas questões. Um exemplo é o projeto “Oito vertentes e dois momentos de síntese da arquitetura brasileira”, no qual Edgar Graeff começou a elaborar, na década de 1970, uma “historiografia brasileira da arquitetura” que relativizava a vertente europeia em meio às variadas contribuições culturais que formaram o Brasil, seu urbanismo e sua arquitetura.[9] Outro exemplo é o livro Arquitetura popular brasileira, de 2005, no qual Gunter Weimer analisa as contribuições africanas e indígenas para os modos populares de construir e viver.[10] É mais recente, contudo, o enfrentamento da questão racial, como, por exemplo, nas ações de Fábio Velame, líder do grupo de pesquisa EtniCidades: Grupo de Estudos Étnico-Raciais em Arquitetura e Urbanismo, na Universidade Federal da Bahia.[11]
Com seu ensaio-pergunta, Tavares abre de modo explícito a discussão sobre racialidade e colonialismo como fatores estruturantes na teoria, na crítica e na historiografia da arquitetura no Brasil.
Não se pode reduzir Lucio Costa às suas visões racializadas e colonialistas. Elas fazem parte de um agente cultural complexo como a sociedade a partir da qual ele atuou. E, como tal, devem ser analisadas com rigor crítico, longe de mitificações enaltecedoras ou aviltantes. Não se deve, contudo, escondê-las, escamoteá-las ou esquecê-las. Explícitos ou implícitos, ressaltados ou silenciados, racialidade e colonialismo são fatores cruciais na estrutura social brasileira que precisam ser enfrentados em seus variados domínios, entre os quais o campo da arquitetura e de sua crítica, com vistas à construção de outro mundo, igualitário e não racializado. O ensaio de Paulo Tavares é uma interrogação necessária.
[1] Lucio Costa, “O arranha-céu e o Rio de Janeiro”. O Paiz, Rio de Janeiro, 1º de julho de 1928, p. 4.
[2] Lucio Costa, “Relatório do Plano Piloto de Brasília” (1957). In reis, Carlos Madson; vasques, Claudia Marina; ribeiro, Sandra Bernardes (orgs.). Brasília, cidade que inventei. Brasília: iphan-df, 2018, p. 29.
[3] Ernesto Araújo Viana, “Das artes plásticas no Brasil em geral e no Rio de Janeiro em particular”. Revista do Instituto Historico e Geographico Brasileiro, Rio de Janeiro, tomo lxxviii, 1915, p. 511-512.
[4] Lucio Costa. “A arquitetura dos jesuítas no Brasil”. Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, no. 5, 1941, p. 63.
[5] Lucio Costa, “Documentação necessária”. Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, no. 1, 1937, p. 31.
[6] Lesley Lokko, Naa Norle (org.). White papers, Black marks: architecture, race, culture. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2000.
[7] Fabiola Lopez-Duran, Eugenics in the garden: transatlantic architecture and the crafting of modernity. Austin: University of Texas Press, 2018.
[8] Irene Cheng; Charles Davis ii; Mabel O. Wilson (orgs.). Race and modern architecture: a critical history from the Enlightenment to the present. Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 2020.
[9] Wilton de Araújo Medeiros, “Arquitetura e ética ‘outra’ como sentido da obra de Edgar Graeff”. pixo - Revista de Arquitetura, cidade e contemporaneidade, vol. 2, 2018, p. 24-25.
[10] Günter Weimer, Arquitetura popular brasileira. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
[11] Acesso ao site do grupo em http://etnicidadesufba.blogspot.com/; acesso ao curriculum vitae do professor em http://lattes.cnpq.br/0386406510741414.
Ilustrações autoria de Paulo Tavares.
Posfácio Interrogação Necessária de Roberto Conduru ao livro de Paulo Tavares Lucio Costa era racista?, publicado pela editora n-1 edições.