O olhar de Claudia Andujar para os yanomami é uma sedução sem fim
A relação de Claudia Andujar com os yanomami é antiga e ainda não acabou. Em Novembro do ano passado, com 85 anos e presa a uma cadeira de rodas, a fotógrafa de origem suíça e húngara regressou à floresta tropical, no extremo norte da Amazónia, na fronteira com a Venezuela, para estar junto de comunidades ameríndias da Terra Yanomami e Ye’kuana, que ainda conservam um modo de vida tradicional. Agora já sem câmara fotográfica, mas certamente com o objectivo de continuar a alertar para o direito dos yanomami à terra e à conservação da sua identidade, numa altura em que os seus territórios voltam a ser alvo de garimpeiros, mineiros e agricultores interessados em alargar as suas actividades comerciais.
O vasto corpo de trabalho acerca desta comunidade (com cerca de dez mil imagens) que esta destemida fotógrafa captou ao longo de mais de quatro décadas (desde o início dos anos 1970) tem tido leituras diferentes, consoante os momentos (e movimentos) políticos, económicos, ecologistas se revelem mais ou menos agressivos em relação aos povos ameríndios da Amazónia.
E esse uso “político” da imagem fotográfica como arma de comunicação tem, de certa forma, contribuído para um ofuscamento do valor criativo e experiencial da obra de Claudia Andujar (Neuchatel, 1931), que em 1971 abandonou totalmente o fotojornalismo para se comprometer com a causa dos direitos dos povos nativos brasileiros. No entanto, nos últimos anos, a fotografia de Andujar “tem sido resgatada”, no Brasil e internacionalmente (este ano tem exposições agendadas na Áustria e na Alemanha), e é hoje “um nome que está a circular com bastante intensidade”. Quem o diz é Marta Mestre, uma das curadoras do Instituto Inhotim (Brumadinho, Minas Gerais), considerado o maior centro de arte ao ar livre da América Latina, de cuja colecção se extraíram as 40 imagens de Visão Yanomami, exposição incluída na programação da Lisboa Capital Ibero Americana da Cultura 2017, que pode ser vista a partir de amanhã no Arquivo Fotográfico de Lisboa (até 15 de Abril).
Numa visita guiada para o PÚBLICO, Marta Mestre, portuguesa a trabalhar no Brasil há sete anos e nomeada no ano passado para o Instituto Inhotim, refere que “o trabalho de Claudia Andujar esteve muito tempo esquecido” e que “ainda não tinha vindo totalmente para o contexto da arte contemporânea”. “Mas acho que nos últimos tempos, com a retoma do perspectivismo ameríndio, do animismo, da ideia de colapso do mundo e da necessidade de encontrar um referencial oposto ou equidistante ao presente faz com que este trabalho possa agora ser revisitado ou reequacionado.” Esse movimento de redescoberta não só da fotografia mas também da relação de Claudia Andujar com os yanomami teve uma expressão particular em 2015 em Inhotim, com a uma grande exposição, um filme, um seminário e rituais xamânicos que celebraram uma vida dedicada à causa indígena. E, no ano passado, no Rio de Janeiro, o Instituto Moreira Sales apresentou Claudia Andujar: no lugar do Outro, a primeira retrospectiva da sua obra, entre 1955 e 1970, antes do envolvimento com os yanomami.
Apesar de a exposição em Lisboa estar focada apenas nos yanomami (o Instituto Inhotim comprou recentemente 420 fotografias desse trabalho), Mestre sublinha a importância de não se olhar para Andujar “como a fotógrafa dos índios”. “Antes de começar a fotografar na Amazónia, com 27 anos e em plena ditadura, ela trabalhou para as principais revistas da época, como a Life, a Realidade e Cruzeiro. Tem séries muito fortes, uma das quais sobre prostitutas, na qual põe a câmara quase ao nível do chão e fotografa as pessoas de baixo para cima. É um gesto muito moderno.”
No Arquivo da Rua da Palma, os vários grupos de imagens (Casa, Retratos, Reahu e Marcados) mostram como mudou muito a abordagem fotográfica de Andujar àquelas comunidades ao longo dos anos, e como, ao mesmo tempo, nunca mudou a preocupação de aprender, a vontade de comunicar, a intenção de se deixar seduzir, o desejo de se “incorporar pelo outro” e por aquele mundo que se apresentou à sua frente. Diz a fotógrafa: “Essencialmente eu procurava penetrar e entender o pensamento da pessoa. E consegui encontrar o que procurava (…). Uma ideia de beleza também me interessava – acho os yanomami muito bonitos. Tivemos um calor humano entre nós. Mas isso levou tempo. E quando falo de tempo estou me referindo a anos”.
Seja qual for o conteúdo, parece sempre acertada a forma como Andujar aborda o que está diante de si: em Casa sublinham-se ora os detalhes do quotidiano, ora a espiritualidade luminescente das malocas (cabanas cónicas); em Retratos a pele, a expressão e os adornos simples que individualizam os retratados ganham uma força sedutora; em Reahu (um dos conjuntos mais surpreendentes) sente-se Andujar misturada com o xamã em transe; e em Marcados, uma das suas séries mais conhecidas, notamos a extraordinária dignidade com que retrata pessoas, mesmo que o objectivo seja o da simples identificação.
Yanomami mostra a intensa relação que Claudia Andujar estabeleceu com este mundo ancestral, para além de abrir caminho para os outros mundos na obra de uma fotógrafa pouco conhecida fora do Brasil. Marta Mestre chama-lhe “um cartão-de-visita”, “uma porta de entrada” para se conhecer “um trabalho muito mais complexo e extenso do que agora pôde ser mostrado aqui [em Lisboa]”.
[Texto originalmente publico no Jornal Público, em 12 de fevereiro de 2017]