29 de outubro de 1936: chegam ao Tarrafal os primeiros presos políticos
Entre 1936 e 1954, passaram pelo “Campo da Morte Lenta” 340 presos políticos portugueses. Destes, 32 morreram no local. A partir de 1961, o campo passou a acolher presos ligados aos movimentos anticolonialistas e registaram-se mais quatro mortes. Muitos outros não resistiram às sequelas e faleceram após serem libertados.
Em 1936 foi promulgado o Decreto Lei n.º 26 539, de 23 de abril, que, no seu artigo 1º, determinava a criação de “uma Colónia Penal para presos políticos e sociais no Tarrafal da Ilha de Santiago no arquipélago de Cabo Verde”. A “Colónia Penal de Cabo Verde” destinar-se-ia a “presos por crimes políticos que devam cumprir a pena de desterro ou que, tendo estado internados em outro estabelecimento prisional, se mostrem refratários à disciplina deste estabelecimento”.
A 18 de outubro de 1936, partiram de Lisboa os primeiros prisioneiros deportados para o Tarrafal, entre os quais figuravam participantes do 18 de Janeiro de 1934 na Marinha Grande e marinheiros que se amotinaram a bordo de um navio de guerra no Tejo a 8 de setembro de 1936 – a Revolta dos Marinheiros. No início da tarde do dia 29 de outubro, ao fim de doze dias de viagem nos porões do navio Luanda, os 152 prisioneiros chegaram à baía da Vila do Tarrafal, na Ilha de Santiago.
As condições no Tarrafal eram inimagináveis e inumanas: a insalubridade das celas, a ausência de cuidados de saúde, a má qualidade da alimentação, ou a sua inexistência. Qualquer reclamação era punida com uma estadia na “frigideira”, um pequeno edifício com teto e chão em cimento, sem janelas, totalmente exposto, onde as temperaturas chegavam a atingir os 50º. Os presos eram sujeitos a trabalhos forçados e a constantes maus tratos e torturas.
Esta prisão chama-se ‘frigideira’. A luz e o ar entram através de três buracos feitos na pesada porta de ferro e por um pequeno rectângulo, aberto junto ao tecto. Durante o dia, o sol quente dos trópicos aquece as portas e as paredes deste pequeno túmulo. O ar aquece lá dentro. O calor torna-se insuportável. Os presos despem-se, mas o calor não deixa de os torturar. Dos seus corpos cansados cai o suor em bica. Se são muitos, condensam-se no tecto gotas de água, e quando caem, longe de serem um alívio, são uma tortura. (…) De noite, os mosquitos vêm. Da picada do mosquito surge a febre, da febre vem a morte pela biliosa e pela perniciosa. Não são raros os casos de presos levados dali em braços ou amparados.
Pedro Soares. Tarrafal Campo da Morte Lenta. Edições Avante! pp.31-32
“Quem vem para o Tarrafal vem para morrer!”. Era assim que os presos políticos eram recebidos por Manuel dos Reis, diretor do campo durante vários anos. Entre 1936 e 1954, passaram pelo Tarrafal 340 presos políticos. Destes, 32 morreram lá, entre os quais o dirigente do movimento libertário e sindicalista Mário Castelhano e o secretário-geral do PCP, Bento Gonçalves. Muitos outros faleceram após serem libertados, em consequência da fome, das doenças e da violência a que foram sujeitos.
Morreram no Tarrafal, entre 1936 e 1954, os resistentes antifascistas:
Francisco José Pereira - morreu em 20.09.1937
Pedro de Matos Filipe- morreu em 20.09.1937
Francisco Domingos Quintas - morreu em 22.09.1937
Rafael Tobias - morreu em 22.09.1937
Augusto da Costa - morreu em 22.09.1937
Candido Alves Barja - morreu em 24.09.1937
Abilio Augusto Belchior - morreu em 29.10.1937
Francisco Esteves - morreu em 29.01.1938
Arnaldo Simões Januário - morreu em 27.03.1938
Alfredo Caldeira - morreu em 01.12.1938
Fernando Alcobia - morreu em 19.12.1939
Jaime de Sousa - morreu em 07.07.1940
Albino Coelho - morreu em 11.08.1940
Mário dos Santos Castelhano - morreu em 12.10.1940
Jacinto Faria Vilaça - morreu em 03.01.1941
Casimiro Ferreira - morreu em 24.09.1941
António Oliveira e Silva - morreu em 03.11.1941
Ernesto José Ribeiro - morreu em 08.12.1941
João Dinis - morreu em 12.12.1941
Henrique Vale Domingues - morreu em 07.07.1942
Bento António Gonçalves - morreu em 11.09.1942
Damásio Martins Pereira - morreu em 11.11.1942
António Jesus Branco - morreu em 28.12.1942
Paulo José Dias - morreu em 13.01.1943
Joaquim Montes - morreu em 14.02.1943
Manuel Alves dos Reis - morreu em 11.06.1943
Francisco Nascimento Gomes - morreu em 15.11.1943
Edmundo Gonçalves - morreu em 13.06.1944
Manuel da Costa - morreu em 03.06.1945
Joaquim Marreiros - morreu em 03.11.1948
António Guerra - morreu em 28.12.1948
De acordo com a Comissão do Livro Negro sobre o Regime Fascista, não foi encontrada a ficha prisional de alguns dos presos deportados para o Tarrafal. Acresce que, examinando as fichas existentes, “logo se verifica que muitos deles não foram sequer julgados e que outros, apesar de condenados, o não foram a pena de degredo”.
Em 1944, dos 226 presos existentes no Tarrafal, 127 encontravam-se em situação ilegal: 72 não tinham sido julgados e 55 já tinham ultrapassado o tempo de pena a que foram sentenciados.
Em 1954, mediante a pressão internacional de que foi alvo, o regime fascista encerrou o campo. A 26 de janeiro de 1954, embarca rumo a Portugal o último preso do Campo de Concentração do Tarrafal, Francisco Miguel. Mas o Campo da Morte Lenta foi reativado em junho de 61, por Adriano Moreira, ministro do Ultramar, para receber presos ligados aos movimentos anticolonialistas.
Em fevereiro de 1962, o “Campo de Trabalho do Chão Bom”, como foi batizado, recebeu a primeira vaga de prisioneiros desta nova fase: 33 angolanos. A estes somaram-se posteriormente presos oriundos da Guiné e de Cabo Verde.
Entre 1962 e 1974, o Tarrafal recebeu 236 presos: 107 angolanos, entre os quais Luandino Vieira e Justino Pinto de Andrade, 109 guineenses e 20 cabo-verdianos. Neste período morreram quatro presos: os guineenses Cutubo Cassamá e Biaba Nabué, falecidos no campo a 12 e 24 de novembro de 1962, e os angolanos António Pedro Benge (13 de setembro de 1962) e Magita Chipóia (13 de maio de 1970).
Foi só a 1 de maio de 1974 que foram libertados os 87 prisioneiros angolanos e cabo-verdianos que ainda se encontravam no campo. Os sobreviventes do Tarrafal lidaram e lidam com as sequelas dos maus tratos, das torturas, das doenças, da fome a que foram sujeitos.
A extrema dureza do “Campo da Morte Lenta”, criado à imagem dos campos de concentração nazis, contrasta com a resiliência daqueles que conseguiram, com a força dos seus ideais, continuar a luta.
Justino Pinto de Andrade passou quatro anos seguidos no Tarrafal, até que o 25 de Abril lhe abriu as portas para a liberdade, no dia 1 de maio de 1974. Num testemunho para o Esquerda.net, datado de maio de 2020, descreve a forma como os prisioneiros conseguiram organizar-se, comunicar entre si e o exterior:
O Tarrafal foi, para mim, uma verdadeira Escola Superior de Vida. Sou dos poucos sobreviventes e ainda guardo uma imensa saudade dos meus companheiros de luta, de todos. Porque a nossa era uma luta comum, independentemente dos Movimentos a que pertencíamos. Nesse “confinamento” convivi com angolanos da UPA/FNLA, da UNITA, do MPLA. E até com presos de antes do MPLA se ter formalmente constituído em 1960. Comungámos na Dor, mas, também, na Esperança…
No Tarrafal foi possível conceber um conjunto de mecanismos para nos articularmos com os restantes presos, entre nós angolanos, mas, igualmente, com os presos cabo-verdianos. Estabelecemos pontos de colocação de bilhetes que trocávamos entre nós. Utilizámos uma espécie de morse para trocar mensagens.
O Juca Valentim criou um sistema sofisticado de troca de mensagens, utilizando as cartas enviadas e as recebidas. Pelo sistema do Juca conseguimos manter contacto com os restantes presos do nosso processo que estavam nas cadeias de Portugal. Isabel Valentim, irmão do Juca, foi o elo de ligação com Angola. Vitória Almeida e Sousa, mulher de Joaquim Pinto de Andrade, o elo de Portugal.
As mensagens passavam de modo codificado ou no interior de cigarros e tubos de pasta de dentes, envolvidas em fina folha de prata”.
Artigo originalmente publicado em Esquerda a 29/10/2020