A Cruz que Fala

Cara Marta,

Quando acordamos de manhã, acordamos para o estado do mundo e ele acorda connosco. Aflijo-me por vezes de manhã, logo cedo, quando penso no estado dele. Não sei se outros são assim, mas tenho pensamentos macro logo cedo pela manhã. Penso nas subidas de discursos e sentimentos nacionalistas, nos seus efeitos na vida quotidiana. Penso na Greta e no discurso verde que parece agora substituir o humano. Penso na AI nos nossos dados mais íntimos a ser equacionados por algoritmos sabe-se lá porquê sem ser codrelhice, marketing talvez, mas isso é banalizar perfis que, por mais que sejam certos, nem sempre quer dizer que sejam certeiros. Penso na cultura como motor recuperador da economia pós-pandemia (se é que isso existe). Faz-me rir este último, visto já me ser óbvio que a fatia humana à qual pertenço, não só é castigada por não existirem parâmetros inteligentes para medir a sua contribuição social, humana e económica, como é ainda obrigado a ser motor de recuperação para todos. Faz-me rir, que é para não chorar tanta ignorância. É suposto ficarmos contentes?

Li a entrevista da Ministra da Cultura sobre dinheiros e apoios, mas logo me surgem coisas estranhas na mente como: se somos bons para a retomada porque não fomos para a proteção? É que, com os anos comecei a achar que existe algum jogo sado-maso na sociedade com os seus membros mais sensíveis e refinados (que se deslocam para a cultura). Penso no ciclo de vida dos meus mais próximos. Penso na língua portuguesa. Penso na medida inexata dos custos desta grande pausa, que nem sei bem como é possível, entendes? Como foi possível parar o mundo? Afinal para que serve o capitalismo? A bem dizer, parado, ele não serve para nada, a não ser acumulação de riqueza. Entendem? Não serve ao Trump nem aos seus compinchas. Porque não podemos gerir o mundo para as necessidades e não os lucros. Enfim, penso antes do café da manhã mas, felizmente, levanto-me para pôr a cafeteira ao lume ou ligar a máquina (tem dias) e depois lembro-me que tenho que pintar o muro da casa e, pronto, já não penso demais. Isto de ser um pensador faz mal aos sistemas e eu gosto de pintar. Muros do jardim branquinhos e um ar asseado, a casa vai receber uma convidada, que vem conhecer a família portuguesa. Já se vai aventurando a dizer umas palavras em português. Aguardo uma visita do amor. Menos mal…

O turismo, como sabemos, perdeu o fôlego nesta pandemia. Um dos seus danos colaterais é que já vemos os portugueses que resistiram à enchente no centro da cidade. Passeava no bairro de campo de Ourique quando me dei conta que o bicho português vai reaparecendo aqui e ali aos olhos em Lisboa. Lia uma senhora numa cama brasileira na varanda. Os homens das cartas jogam no Jardim da Parada. Passam 20 franceses e lá se vê uma velhota a agarrar a mala com mais afinco, não vá o pobre desgraçado que pede, junto com o cão, moedas alheias. Não vá ele dar-me um puxão. Vou vendo pelo canto do olho a cadela da minha ex a pedir migalhas nas mesas do café e as pessoas a ignorá-la. Vejo-me a mim também, nesta massa de gente com as minhas questões, tão mundanas como as deles.

Procurava endireitar a fivela do saco que trago nas costas quando me lembrei que também eu sou visto agora como alguém “totalmente fora”. Sem mais rodeios de querer mudar o mundo para me acomodar a mim e sim o oposto. Aquele é também o jardim da minha infância e toca-me fundo. Estas pracinhas portuguesas, suaves e pequenas, que revelam cada um de nós aos vizinhos do bairro. Gosto dos cheiros de uma água que sempre aparece. Vejo Lisboa e os lisboetas sem a carga de turismo que a tudo consome e esconde. Que alívio é esta pandemia. Por Cascais é mais ver ginastas e corredores, mas já se vislumbra as praias arrumadinhas de banhistas nacionais, como o eram outrora. Que grande sossego de praia, nem fazia ideia destes tempos de praia, já lá vai muito tempo de praia. Comprei um guarda-sol e uma cadeira. Sento-me a ler na sombra e lá vou ao mergulho no mar cheio de algas e poderosos agentes detox. Sento-me e olho os miúdos a experimentar bodyboard aos pulos e aos gritos, como as gaivotas em torno de um barco que se acosta. Putos tugas, sabes, charilas. Lembro-me do filme Morte em Veneza, de jornal e guarda-sol, e penso: “meu deus que perspectivas estranhas experimentei nesta vida”. Vivências minhas que partilho aqui e ali. Vou-me sentindo finalmente pertencente. Sou particular? So what? somos todos! Ou porque é gordo ou baixo ou black ou misto ou branco demais (também existe).  

Vejo com cada coragem na praia de corpos ou porque são valentes no mar quando mergulham, surfam ou nadam mas também aqueles corpos que se exibem com todas as mazelas que os afligem. Coragem e alegria é o que vejo nas praias, que vazias do excesso que o turismo provoca, deixam-me ver outra vez o mundo sem selfie. Por fim, vem aquele soninho de ouvir a água a bater na areia e aí penso outra vez, mas desta vez penso com o mar e pensar com o mar é português. Abre-se-me o coração e lembro-me de sentir aquela tranquilidade que nos traz paz interior e visão acertada. Bolas, que barulhento é o capitalismo e porque não passamos a falar de culturismo como sistema financeiro? Uma sustentabilidade líquida a cada ser para contribuir para a vida com os seus talentos, vontades e sabedorias. Outra juventude traz-me aquele ruído de mar nos pensamentos mais profundos. Isto afinal era tão fácil se fosse tudo mais devagar e sustentável. Economia ao som de Madredeus. Seríamos nós portugueses a dizer: “Espera lá amigo. Isto com jeitinho arruma-se, acredita, acredita, acredita.” Fazíamos discursos ao som do mar. A repetição suave no ouvido, o sussurrar de uma outra era. É da idade. Estarei a ficar sebastianista? Aguardo assim o retorno de um sonho impossível? Ao som de Madredeus, qui ça. Para veres como a tranquilidade tuga me conquistou a mim também; monstrengo. Enfim, é de sermos signo peixes, já dizia o Pessoa.

Temos aqueles amigos que não são turistas e sim amigos turistas. Uns culturistas que ainda andam pelo mundo e preferem amar ou visitar amigos do que consumir o pacote de férias com muito álcool. Esses como a Monika são bem vindos, né? Espreitam o nosso cinema, comida, literatura e língua. Espreitam-nos com carinho e por vezes até se apaixonam e assim passam a aventureiros de destino. Cruzam filhos e destinos e fazem a globalização culturista. Resistem como podem aos grupos de turismo pacote. São ainda amigos que vêm visitar e já são tão poucos estes. Esta semana vi 5 minutos de TV e foi aí que avistei o nosso secretário das nações unidas (era bom o dia que fossem mesmo unidas) a banhos no Algarve. Os paparazzi apanharam o casal a banhos no Sul. Bons portugueses corajosos a expor o corpo na praia e mandar mergulhos na água fria. Enfim, não tão fria lá por baixo mas ainda assim corajosos. Foi o pior pedaço de TV possível e ainda me perguntam porque só vejo 5 minutos de TV por semana. Pois é óbvio. Vejo no you tube muitos concertos antigos e depois parvoíces (como todos) mas também entrevistas e pérolas, que também as há.

É ao som das ondas que desnudo a minha identidade. Se escrevesse um livro de memórias chamar-lhe-ia A Cruz que Fala. Sou trans e católico, algo que por muito que deseje libertar-me de, e somos tantos, nem por sombras é possível. A minha infância é marcada pelo ensino religioso e a ordem Salaseana. Cruzam-me duas linhas ou duas ordens: a LGBT e a Igreja Católica. E a triangular educação académica feminista que tanto me motivou a ter voz e até por uns anos câmara. Foram as ondas que me tranquilizaram o espírito e me trouxeram esta imagem. Boa praia, diria. O mar enrola na areia, ninguém sabe o que ele diz, enrola na areia e desmaia porque se sente feliz. É verdade que bate devagarinho uma felicidade na praia, que vai rompendo amarras ao stress e de repente zás, sentimo-nos felizes, pelo menos contentes e depois vêm aqueles pensamentos mais leves e mais pacíficos, a clareza do “ai é isto.” Penso eu? Pensa o mar? Penso eu e o mar, diria. Será que estou a voltar a casa, finalmente, dos meus anos de errância? Será o mar e o som das ondas que me traz de volta? Devagarinho, sem choques nem imposições, ao som do mar e dos sorrisos felizes das crianças a brincar na areia.  

A pandemia limpou muito ruído e oiço o mar – o bater, o ritmo das ondas como o bater do coração e da respiração. Ritmo lento, unido e natural. É Agosto e vamos à praia com o corpo que temos e não o que queríamos ter. Humildes despimos as vestes do mundo e é quem mais expõe o que é e o que tem. Era algo parecido que gostava na Igreja. Ritmo lento, unido e feito natural. Fora do Rock das boîtes. Aquilo era pacífico e ordenado. Também sou esse. Tuga. Criança dos arranjos católicos da nossa cultura que é tão ligada à Igreja, que discretamente se impõem com o ADEUS, a Valha-nos Deus, A Nossa Senhora e todas as outras que saltam na voz. Concertos diários e rotineiros que, com a repetição, se inscrevem nos sentimentos e confortos de uma palavra a Deus e sobre toda ela, Igreja entre nós. Ele está no meio de nós. Sim, como o mar em ondas sonoras, gestos e ritmos. Somos católicos como quem nasce nesse mar de ideias, imagens e sons. Libertar-me? Como? Esta matriz e outras como a Hetero. Como? Ele está no meio de nós. E é colossal a sua presença, o seu julgamento, o seu espaço colonizado. Só um louco com uma psicose ligeira se opõe. Sou eu esse louco? Vou ao mar e oiço o que me tem a dizer. Anda a querer ensinar-me qualquer coisa e eu quero aprender. Penso depressa demais, formatado demais, bruto demais. É verdade! Andamos todos assim. Resolver-me com esta oposição interior não é fácil mas talvez com jeitinho se desenrole uma linha de raciocínio mais refinada e mais unida. Acredita que não sei em qual dos lados seria mais maldito: se na LGBT sendo católico ou na Igreja sendo Trans. Sou apenas mais um ser humano fragmentado no pós pós todos os ismos. Talvez venha o mar ajudar a juntar as partes e ensinar-me a pensar como quem respira… tirem-nos os colonialismos de cima sim, o nosso e o dos outros sobre nós, mas deixem-nos ficar com o mar.

 

Aguardo na minha prainha de São Pedro a visita da Mónika. Que dirá o mar sobre nós? Acho que já vou ficando no ponto para o candomblé. E que merda, não sabemos nada! Levo cadeirinha e guarda-sol e junto-me a esta comunidade de humildes. Vamos o que somos e o que temos e a mais não somos obrigados.

 

E agora…

 

Retomar o quê senhora Ministra? Se quer a ajuda do sector da cultura então é onde somos mais úteis… fazendo perguntas. Começamos talvez por perguntar porque é o nosso estatuto humano no todo é tão frágil? Tão descartável e ao mesmo tempo tão necessário? É que está uma reforma na nossa nação muito adiada e talvez seja altura de começar por focar toda a atenção neste assunto. Porque continuamos a ser olhados e retratados como freaks ralé, parasitas da sociedade trabalhadora ou gestora de capitais? Retomar? É que as palavras existem e dizem coisas. Não quero retoma nenhuma, falo por mim. Prefiro a pausa, fazíamos agora uma grande birra e só saímos quando nos apresentarem um projeto para as nossas vidas que faça sentido. Somos os patetas alegres da nação. No more! Isto não é uma crítica, e sim um posicionamento, já me chego à classe de trabalhadores de call center porque tenho mais chances de vida digna (e olhe que isto é de partir a rir) do que nas mais variadas tentativas que fiz de trabalhar no setor da cultura. Retoma? Vá mas é ouvir o mar por favor e leve cadeirinha que é bem mais confortável para ler a sua entrevista. Falta ali uma convicção séria de que se é Ministra de um setor com muitos e muito trabalhadores em situação precária em desarranjos mil de vida, e que é altura não de fazer com que a prioridade do setor da cultura seja a retoma económica geral, e a sua dignidade HUMANA. Ficou claro como a água salgada a bater na areia. Vá ouvir!!! Eu já me auto despedi do setor e das cenouras no fundo do pau e desejo aos outros boa sorte. Como católico podia pedir-lhe misericórdia e verdade, mas não sei se acredita nessas coisas.

 

Tenho saudades tuas Marta… de uma boa conversa ao som de pausa… mesmo! Merda para a retoma!

 

Abraços,

Amadeo

por Adin Manuel
A ler | 20 Agosto 2020 | cultura, mar, pandemia, pausa, Praia, retoma