O grão de areia em Estocolmo
Estou em Estocolmo no fresquinho até nova decisão. Consegui um trabalho em Lisboa como revisor de conteúdos, mas o Covid19 atrapalha o começo da nova temporada. Esta semana comecei a ver a série Years and Years com a Emma Thompson. Anda a confirmar algumas das leituras que faço dos nossos tempos acelerados de revoluções tecnológicas e globalização, ou seja, já ninguém sabe de que terra é! e eu muito menos. Ando aqui no meio dos suecos como quem está em casa. Não sei se foi o IKEA mas parece me tudo muito familiar. A Monika está a trabalhar e fico com muitas horas sem fazer nada. Vou até a uma lojinha buscar um cappuccino como se fosse uma grande tarefa. Isto do lazer não é para mim. Deixa me nervoso como tudo. Procuro trabalhos com Inglês apenas em Estocolmo mas não é fácil. Mandei um email a um departamento da Universidade de Estocolmo, o de Gender Studies, para averiguar se posso terminar aqui a minha tese, talvez haja a maneira de passar os créditos de Lisboa para cá. Isto agora é assim, levamos os créditos como quem leva umas fichinhas do casino para descontar no balcão. As Universidades foram lugares mais ou menos decentes até os anos 2000, ano em que me formei, mas a partir daí, se a coisa já ia torta, mais torto se fez. É tudo um sistema de semi corporate e onde havia cultura, debate e ensino agora é fichas técnicas, conferências e despachados. Tenho saudades do passado sim onde havia qq coisa que se assemelhava a verdades lógicas e caminhos de reflexão conjunta. Não esta desarticulação de fichinhas e esta burocracia tecnológica que come tudo. Estamos todos reféns do avanço das tecnologias como se fossemos puxados pelo instrumento em vez de usá lo a nosso favor. Os professores que se retiram fogem como se estivessem a fugir por um corredor de saída de uma sala de aula prestes a explodir. Matam os departamentos de Humanities à marretada, como se fossem vacas brasileiras mesmo, e assim se finda uma outra era para entrar esta nova. Mandam uma canalha anti trumpesca para casa e tomam conta é do business que é o que afinal importa nesta era, isso e inovação tecnológica. Excuse me caros pensadores nós vamos fazer isto a bel prazer. Parece aquela ultrapassagem que o Trump fez à Rainha da Inglaterra. We go ahead! Que se foda. Pensamos depois. Ahahah! O resultado é um pouco o que aquela série vai apontando. O descalabro desde 2008 que ninguém sabe como travar. Um número de casualidades mortais que já ninguém contabiliza. Uma das passagens que me agradou muito foi o esclarecimento sobre a perda de inteligência geral, que também sinto em mim próprio. A cultura, os grupos e os pensadores estimulam o nível geral e com este grupo desconsiderado, diria mesmo afastado, a quebra é geral. Fico aqui a pensar que nesta matéria nem a Covid ajuda porque se ficamos mais em pequenas células separadas menor será também o estímulo social ao pensamento, ao cuidado e a empatia. Fica tudo em esferas mais ou menos familiares sem grupo mais abrangente. É uma redução tremenda no espaço e nas referências que passam a existir online via apps e teletrabalho. Seremos nós os mesmos a sociabilizar depois do Covid? Teremos nós as mesmas capacidades de grupo. Pois não! É um duro golpe num mundo que já estava neste rumo.
Fui jantar a casa da irmã da Monika, que é jornalista aqui no canal de TV estatal. Tivemos mesmo um jantar produtivo onde recebi alguns contatos, mas acima de tudo um esclarecimento. A Suécia já tem uma extrema direita também e já não tem como travar a epidemia Trumpesca de entrar pelas suas portas. O país do politicamente correto está a braços com os seus problemas internos que já desvalorizam a herança socialista e culturalmente progressista que tinham. Estão com medo e isso é notório. Os jornalistas tentaram barrar o caminho a esferas públicas por parte deste grupo, ainda uma minoria, mas não conseguiram. O partido Sverigedemokraterna ou SD obteve resultados inesperados e já se sentaram no Parlamento. Estamos uma Europa Trash até aqui em cima onde parecia que nada chegava. Não se riem, estão a levar a ameaça muito a sério. Em Portugal rimo nos do que por vezes não tem piada nenhuma, é uma forma de lidar com estas ameaças, não sei se o resto da população aqui o faz, mas este casal de fotógrafo e jornalista não se riram mesmo nada. Estão com medo nos canais públicos de ameaças mil que chegam todos os dias aos seus escritórios. O mau ambiente chega para iniciar o processo de intimidação. Sentem se menos seguros. Aqui é uma paródia porque o nível social e económico atingido deveria de ser segurança suficiente. Chegar a Estocolmo é deparar com uma cidade arrumada, rica e em paz. Não é o mesmo que os Estados Unidos falidos ou um Brasil em crise política. Os suecos podem, sim, queixar-se que a população não é loira o suficiente. Pois, talvez isso. O normal anti LGBT. Enfim, já estão aqui também. Vou entrar em contato com uma investigadora de questões trans o que é a parte boa, os outros também existem e é sempre bom vê-los. O fast track sueco resulta numa normalidade de contatos sociais, com o devido distanciamento. É uma terra que procurou a imunidade e agora já tem a coisa mais ou menos estável. Meanwhile, não quebrou o tecido social de rotinas onde os encontros são parte da vida e não se viu a corrida desenfreada às festas de verão. Sacrificaram por ignorância, não maldade, uma população envelhecida fechada em lares que estavam muito aquém de ter o staff ou condições preparadas para uma coisa destas. No panic! é a conclusão que chego sobre este modelo, mas voto no português apesar de tudo (gosto que tentemos salvar os velhinhos) até ao momento que decidiram abrir o Algarve aos ingleses e outros interessados. Tínhamos o Turismo já desfeito para este ano, para quê arriscar? Esta parte discordei.
Fui ao book signing da Monika. É de fotografia. O segundo. Deparei me com uma noite intelectual e artística no coração de Estocolmo. Conheci um número de fotógrafos e gente das artes. São super cuidadosos com ela. Foram muitos dar apoio e ouvir o que tinha a dizer sobre o seu trabalho - que era muito. Por ironia do destino esta companheira sempre trabalhou sobre masculinidades. Tem muitas reservas em falar do seu trabalho assim, mas os leitores questionam-se muito sobre a forma como usa homens como objecto na sua mira. Retira-lhes o cenário de machos e aparece com propostas muito trabalhadas de cena sobre uma fragilidade muito humana. Ontem fez uma afirmação por fim que remata a sua posição: uma pessoa não é um gênero. Estou ali de pé entre os convidados como o seu parceiro/a, não sei quem vê. Sinto-me super confortável. Não sinto qq olhar mais agressivo ou questionador. Será que encontrei um lugar? Socialmente não me sinto mesmo nada fora de adequação e isso para mim é muito raro. Fomos jantar a um restaurante mesmo ao lado da livraria. Junta se a nós um curador amigo e aguardo na casa de banho para que saía da casa de banho dos homens e eis que se revela um desconforto da sua parte. Afinal, não estão assim todos resolvidos. Sento me na mesa de volta e a Monika já só quer ir para casa. Ouvimos um pouco mais sobre terapias, burn outs e arte. Partem. Uns de bicicleta outros a pé. Nós apanhamos o metro para kärrtorp. Bebemos mais um copo de vinho antes de dormir. Muito se bebe por aqui, mas pouco se sente os efeitos do consumo. Como se a lucidez fosse mesmo difícil de perder. Caimos de cansaço social na cama. Estavam cerca de 30 pessoas na livraria e distância social não era dois metros. Acordo a pensar nisto. Tenho que ter mais cuidado que estes Suecos são malucos! Recebo uma mensagem que estão a considerar o meu curriculum para um trabalho de Customer Service UK aqui e que vão levar duas semanas para responder. Chiça que a vida leva muito tempo. Estas esperas intermináveis marcam o nosso tempo. Será que Dezembro com as vacinas e o fim dos cuidados extra chegará? Pois aguardamos. Será que o Trump irá ser afastado em Novembro? São os milagres que aguardamos. O Outono está a chegar aqui na floresta próxima da casa já se vê as folhas caídas pelo chão e os miúdos estão de volta às escolas. A minha irmã mais velha fez 50 anos ontem. Tudo isto para dizer que o tempo parece que não passa, mas passa. Vamos ficando todos mais velhos e os mais novos vão crescendo. Tudo disfarçado de esperas pequenas e quando damos por ela o tempo passou. Lembro-me da Monika sonhar ser fotógrafa e sabe mesmo bem vê la a discursar entre a sua troupe sobre o seu segundo livro. Concretizou se o seu sonho. Trabalhou por ele também. O meu continua a aguardar no Hospital Júlio de Matos nas listas de espera. Um lugar na Suécia ou em Portugal para terminar o doutoramento. Um trabalho para ter colegas, auto suficiência e dignidade. Isto tudo na era do Trump onde parece que com sonhos escapam se muito poucos. You’re fired, grita o homem hambúrguer a quem lhe apetece. Era tão bom ouvir alguém dizer isto de volta em Novembro ao homem hamburguer. Sonhos. É preciso tê-los para fazê-los.
A grande revolução do Género foi e é marcada pelo objectivo de que um dia este não seja mais um problema, por isto o alvo é a dissolução da mesma quando esse momento chegar que deve ser lá para o Séc XXII. O dia em que ser Pessoa conta mais que ser de um género ou de outro, ou mesmo transitar nesse corredor, ainda está muito longe. Mas, aqui e no seu contexto muito pequeno foi proclamada alguma libertação da questão. O privilégio é imenso de estar ali e sim sentir que não é questão. Um grão de areia numa vasta praia mundial onde tudo ainda é regulado por modelos tradicionais, religiosos e mundanos cheios de diferenças e desigualdades. Enfim, tudo mesmo interessante! A cerveja japonesa também não era má. A Covid é que falhou. Tenho de ter mais cuidado. Já sou velhinho.