A memória na moldura

Ao receber o convite para escrever sobre o projeto Álbuns de Guerra, sabendo que se tratava de um projeto sobre memórias de mulheres portuguesas; mulheres do passado; mulheres que ficaram enquanto os seus maridos, os seus irmãos, os seus filhos, enfim, os homens das suas vidas foram para o continente africano, onde nasci, lutar contra os meus, perguntei-me: porque me deveria ocupar da memória dos outros? Cedo me apercebi de que estava equivocada. A memória também é minha. Numa conversa informal com a historiadora Sónia Vaz Borges, ela dizia-me que “Portugal nunca poderá olhar para a sua história sem considerar a história de Portugal em África e a de África em Portugal.” Do mesmo modo, acredito que as memórias de mulheres e de homens que retiraram a vida uns dos outros nunca serão histórias contadas de forma plena se não se cruzarem.  

Álbuns fotográficos, cartas e aerogramas ganharam vida com as entrevistas realizadas para o projeto, mas as memórias daquelas mulheres também se tornaram algo incómodas. Ouvi-as, à Catarina Laranjeiro e à Tânia Dinis, idealizadores do projeto Álbuns de Guerra, falar sobre a memória das outras mulheres, das mulheres do passado, mulheres de crenças do passado e falavam da estranheza que a organização das fotografias, por vezes, lhes causava. Foi aí que me apercebi de que também eu já tinha sentido algo semelhante, mas nunca tinha refletido sobre o assunto. Este artigo pareceu-me ser a oportunidade ideal para, pelo menos, duas reflexões.

Reflexão 1: memória minha

Tive de abandonar a pretensão de que aquelas memórias, as memórias do “Álbuns de Guerra” eram das(os) “Outras (os)”. Olhar para algumas das fotografias, lançou-me para o tempo em que andava no ciclo. Devia ter por volta de 12 ou 13 anos e tinha passado pela casa de uma colega para seguirmos juntas para a escola. Tinha chegado cedo, então subi. Ela morava no segundo andar de um prédio de três, e fiquei à espera dela na sala, onde a sua mãe me recebeu calorosamente, como era habitual. A mãe dela aqui é a figura-chave. Ela é uma dessas “Outras”. Uma mulher roliça, com ar jovial, sotaque forte, – poderia ser do norte – estatura baixa e com o buço por fazer. Tal e qual o estereótipo de mulheres portuguesas de pequenas aldeias – aquela mulher encaixava na imagem. 

Talvez já tivesse visto aquela fotografia, mas, naquele dia, olhei-a duas vezes. Será que sempre tinha estado ali, no móvel da sala? Perguntei à minha colega: “Quem é esta mulher?” Ela respondeu olhando de lado e com um ar de desdém para a fotografia: “É uma que o meu pai tinha na Guiné. Acho que eles tiveram alguma coisa.”, disse quase sussurrando para que a mãe não ouvisse. Na fotografia via-se o pai da minha colega com o braço sobre o ombro de uma mulher negra seminua. Agora que escrevo sobre este episódio, o sussurro faz mais sentido ainda que na altura. Naquele dia, nem lhe dei importância. Parecia lógico que a mãe não quisesse que se falasse de uma outra mulher na vida do seu marido. Essa regra permitia que a imagem daquela mulher negra lá estivesse, mas silenciada. Hoje aquele sussurro surge-me como mais um indício de que recorremos às estratégias mais dissonantes para acomodar memórias traumáticas.

Nunca mais pensei naquela fotografia. Acho que a confundi com outras ao longo do tempo. As que vi na televisão em documentários, em filmes de guerra, em museus, etc. E aquela mãe “tão portuguesa”? A mulher do homem na foto, que pousava ao lado de “uma que tinha tido na Guiné.” Também a “conhecia” de alguma forma – Imaginei-a a limpar o pó àquela moldura. 

Reflexão 2: a memória das outras

Ouvir as mulheres que viveram a guerra dos homens em territórios longínquos e enfrentaram as batalhas do dia a dia em território nacional, mas também incerto; tanto porque as condições de vida nem sempre eram as melhores, devido à pobreza em que se vivia na maior parte do país, como pelo facto de não saberem se os seus algum dia voltariam ser uma constante. Algumas nem sabiam como os seus homens estavam a sobreviver aos desafios da guerra, apesar das trocas de correspondência. 

A leveza com que partilhavam posicionamentos racistas é evidente nas histórias destas mulheres. No entanto, conseguimos sentir empatia por elas e facilmente reconhecer as suas dores como legítimas e até nossas. Mas os álbuns que, apesar de nem sempre terem uma curadoria pensada, acabam também por refletir a natureza do colonialismo que coloca um forte investimento no nível afetivo. E, naqueles álbuns, o racismo acaba por ser exposto com afeto, carinho, amor até. E parece ser tratado como um membro da família que não se quer esquecer, tal como uma “mulher da Guiné” na moldura. O que cria dinâmicas de violência contínuas, e, por vezes, sem que os envolvidos se apercebam.

–––-

ÁLBUNS DE GUERRA de Tânia Dinis e Catarina Laranjeiro

12 de novembro às 19h no C.E.M - Centro em Movimento — Entrada Livre 

Álbuns de Guerra é uma criação artística sobre a Guerra Colonial, a partir das imagens e memórias partilhadas por mulheres da zona do Vale do Ave que, ao longo dos 24 meses de serviço militar dos então namorados, noivos ou maridos, materializaram a sua relação amorosa trocando fotografias, aerogramas e cartas. Combinando o carácter ficcional e documental do testemunho, com a presença material da correspondência guardada, estas mulheres são convidadas a reinterpretar as suas memórias e narrativas da Guerra Colonial, imaginando outras histórias, para além daquela que viveram. Mais do que o homem que foi para a guerra, interessa a mulher que ficou à espera e cujos amores de juventude são o fio condutor para uma outra história, mais privada e sensível, sobre este conflito global.

Coprodução Teatro Oficina, PACT e Associação Cultural Tenda de Saias I Apoio Fundação Calouste Gulbenkian

por Carla Fernandes
A ler | 2 Novembro 2021 | álbuns de guerra, Catarina Laranjeiro, colonialismo, exposição, Fotografia, guerra colonial, Portugal, pos-colonialismo