Lisboa(s) escondida(s)
Lisboa crioula, Lisboa da miscigenação, um dos cartões-de-visita da capital portuguesa. Séculos de convivência entre Portugal e África deram vários frutos, apesar de não serem sempre doces.
A comunidade de imigrantes cabo-verdianos é a mais numerosa oriunda dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP). Começaram a chegar a Portugal nos anos 1960, como mão-de-obra para substituir os trabalhadores locais que emigravam para França, Alemanha ou que tinham ido para a guerra colonial. E assim se foram instalando em Lisboa.
António Brito Guterres é pesquisador e membro do DINÂMIA’CET – Centro de Estudos sobre a Mudança Socioeconómica e o Território e fala das consequências do abandono a que estas populações foram deixadas após a sua chegada.
“Tu deixas ao abandono uma certa população, ela integra-se pelo trabalho, de forma muito precária, sem qualificações. Mas sabes que é por aí que eles se integram e não ligas muito ao que se vai passando. E, ao mesmo tempo, deixas essas pessoas num estado de autopromoverem a sua forma de estar”, afirma o pesquisador.
Muitos dos imigrantes começaram a recriar em Lisboa os hábitos que tinham nos seus países de origem. Alguns bairros periféricos foram construídos por comunidades africanas, de etnia cigana e de outras minorias, recorrendo a um espírito de entreajuda.
“Isso implica movimentos como o “Djunta mon”. Montes de pessoas juntaram-se para criar os bairros. Havia sistemas de segurança social próprios das mulheres. Eu lembro-me [do bairro Pedreira dos] Húngaros e de outros bairros onde havia esse esquema”, recorda Guterres. “Imagina 12 mulheres que se juntavam e cada uma dava parte do seu salário para um bolo comum todos os meses e, nesse mês, esse dinheiro ia parar a uma delas. Porquê? Era a única maneira que elas tinham de, por exemplo, construir um andar extra”.
Requalificar e realojar
Os bairros informais cresceram rapidamente depois da revolução do 25 de Abril de 1974 e com a consequente vaga de “retornados” das antigas colónias africanas. Em 1993, foi criado o Programa Especial de Realojamento (PER), cujo principal objetivo era dotar os municípios das áreas metropolitanas de Lisboa e Porto de condições para erradicar as barracas existentes nestes bairros e realojar os seus ocupantes em habitações de custos controlados.
Na capital portuguesa, já quase não existem bairros informais. Em 2015, a maior parte dos realojamentos aconteceram na Amadora, em bairros como Santa Filomena, 6 de Maio, Estrela de África ou Estrada Militar. Em muitos destes bairros, vivem africanos e os seus descendentes.
Nestas comunidades de afrodescendentes há uma ansiedade de mudança. Mamadou Ba, dirigente do SOS Racismo, reconhece que, após mais de duas décadas de luta pelos direitos das minorias, “ficou muito por fazer. Não se entende porque, no século XXI, nós ainda, por exemplo, estejamos a discutir se a lei da nacionalidade, em Portugal, tinha de ser na base do direito de sangue ou no direito de solo”, afirma. “Não faz sentido que estejamos a discutir porque é que, até à terceira geração, uma parte [da população] esteja condicionada a uma legislação que a remete para uma circunstância de relação quase colonial”.
Racismo estrutural é uma realidade
Anabela Rodrigues, jurista e diretora do Grupo de Teatro do Oprimido, esclarece que “a lei 37/81 diz que quem nasce em território nacional não é português a não ser com determinadas condições”. Esta lei considera que os pais estrangeiros de uma criança nascida em Portugal tinham de estar legais em território nacional há, pelo menos, seis anos, para que a criança fosse considerada portuguesa. Alterada em 2006, a lei estabelece agora um mínimo de 5 anos e que os jovens, aos 18 anos, podem decidir pedir a nacionalidade portuguesa.
No entanto, têm de seguir o processo como qualquer outro estrangeiro não nascido em Portugal. Estas situações acabam por limitar a vida dos africanos e dos seus descendentes em Portugal. Alguns ativistas consideram-nas “racismo estrutural”, como é o caso de Flávio Almada, ou LBC, membro da direção do Moinho da Juventude, um projeto comunitário que existe na Cova da Moura há 30 anos.
“O racismo tem a ver com a questão do poder. Racismo mata. É uma violência organizada. É uma violência de Estado. É só ver como estão as comunidades daqui. A periferização da nossa comunidade. Sugere-se a pessoas com nacionalidade portuguesa que abandonem o país. Elas vão para onde? Elas nasceram cá”, afirma Flávio Almada.
Os afrodescendentes têm vindo a reclamar os seus direitos saindo à rua e demonstrando que não estão satisfeitos com os trabalhos precários que muitas vezes têm de manter e com atitudes preconceituosas extremas, inclusive por parte das autoridades.
“A sociedade tem que perceber que há uma coisa que assusta, que é a convicção, a certeza quando alguém diz que nós, africanos, temos de morrer e que, se pudessem, nos exterminavam”, diz LBC.
O ativista da Cova da Moura conta que foi torturado, após ter sido detido com outros cinco jovens daquele bairro. Deslocaram-se à esquadra de Alfragide para saber informações sobre um habitante do bairro, que tinha sido preso em fevereiro de 2015.
Na altura, a polícia acusou o ativista de ter agredido agentes com pedras e os cinco jovens que o acompanhavam de terem tentado “invadir” a esquadra. Muitas vozes juntaram-se para mostrar a sua indignação numa manifestação em frente à Assembleia da República portuguesa. A DW África tentou contactar o Ministério da Administração Interna (MAI), mas não obteve resposta. No entanto, segundo um comunicado do Governo português, o MAI instituiu processos disciplinares contra nove agentes da Polícia de Segurança Pública (PSP), na consequência dos incidentes que ocorreram na Cova da Moura, em fevereiro de 2015.
Representatividade no Parlamento
Em novembro do ano passado, foi empossado um novo governo, liderado pelo Partido Socialista (PS). António Costa, primeiro-ministro, surpreendeu ao nomear a angolana Francisca Van Dunem para o cargo de ministra da Justiça. Foi a primeira vez que uma mulher negra ocupou o cargo.
A nomeação foi considerada um ponto de viragem para os afrodescendentes e para a sua representatividade em espaços de poder. José Leitão, líder do PS na Assembleia Municipal de Lisboa e antigo Alto Comissário para as Migrações, acredita “muito na força dos símbolos. Penso que têm mais eficácia do que medidas administrativas. Porque, efetivamente, ninguém pode dizer que as pessoas ocupam um lugar por qualquer favor. Ocupam-no por direito e mérito próprio”. Os séculos de convivência entre africanos negros e portugueses brancos que contribuem para a imagem de uma Lisboa crioula e miscigenada podem estar a dar alguns frutos. Mas muitos ainda só conseguem sentir a sua doçura na dança e na música e não na convivência diária entre pessoas que partilham este mesmo espaço que é Lisboa.
Publicado originalmente no DW, a 07/04/2016.